Introdução
Com vigor iniciado em 3/2/2020 (apesar de ter sido editado em 1/10/2019), o Provimento nº 88, do Conselho Nacional de Justiça, que regulamentou a atuação dos notários e registradores no combate à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo, causou severas mudanças nos procedimentos administrativos do extrajudicial.
O ano de 2020 foi deveras atípico a toda população, em decorrência do cenário pandêmico atual, o que forçou os órgãos do Poder Judiciário a regulamentar situações impensáveis num passado não tão distante. Em razão da atribuição do CNJ de expedir provimentos e outros atos normativos destinados ao aperfeiçoamento das atividades dos serviços extrajudiciais e da premente necessidade de regulamentação dos recentes acontecimentos, diversos provimentos foram editados e influenciaram significativamente o trabalho diário dos responsáveis pelas serventias extrajudiciais.
Como se isso não bastasse, a entrada em vigor do provimento em questão impactou significativamente a rotina administrativa extrajudicial, trazendo à tona inúmeros debates, dúvidas e mudanças na execução dos atos notariais e registrais. Quanto aos notários, por exemplo, o respaldo do Colégio Notarial do Brasil – Conselho Federal (CNB/CF), das seções estaduais e dos estudiosos da área, auxiliou e aliviou sobremaneira a densidade e a responsabilidade das novas atribuições. Com este artigo, objetivamos, então, analisar como se desenvolveu o ano de 2020 em relação a essa nova atribuição para a atividade notarial e registral, com intuito de auxiliar os profissionais do Direito encarregados de concretizar os ditames da norma em evidência.
Inicialmente, para que se compreenda o campo de atuação dos notários e registradores no programa de PLD/FT, é preciso definir com clareza as infrações penais cuja prática se pretende evitar. Conforme o texto do próprio provimento, são estabelecidas normas gerais sobre as obrigações previstas nos arts. 10 e 11 da lei 9.613/1998 (alterada pela lei 12.683/2012), relativas à prevenção de atividades de lavagem de dinheiro – ou a ela relacionadas – e financiamento ao terrorismo.
Quanto ao fato típico de lavagem de capitais, seu conceito legal encontra-se no art. 1º da lei 9.613/1998. Com viés de melhor entender a figura, Renato Brasileiro de Lima expõe, de maneira concisa, que lavagem de dinheiro é “o ato ou o conjunto de atos praticados por determinado agente com o objetivo de conferir aparência lícita a bens, diretos ou valores provenientes de uma infração penal” (2015, p. 288).
Em palestra ministrada em 17/2/2020 para a Associação dos Registradores Imobiliários do Paraná – ARIPAR, Rafael Brum Miron, que é procurador da República, coordenador criminal do MPF e coordenador adjunto da Ação 12/2019 da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e a Lavagem de Dinheiro – ENCCLA – ação que culminou justamente na edição do provimento sob análise – conceituou e distinguiu o crime de financiamento ao terrorismo do crime de terrorismo, previsto no art. 2º da lei 13.620/2016. Miron esclarece que o financiamento ao terrorismo é toda forma de auxílio para o terrorismo, e pontua que, até aquela data, não havia no Brasil uma ação penal sequer envolvendo referido delito.
É oportuno destacar que a atuação dos notários e registradores é de substancial importância, uma vez que são particulares em colaboração com o Estado altamente gabaritados, que contam com conhecimento teórico e com saber prático especializado para auxiliar no propósito específico da norma.
Feitas essas breves considerações, passamos efetivamente à análise do provimento e de seus desdobramentos, com foco tanto nos conhecimentos teóricos indispensáveis à compreensão desse ato normativo, como nos casos práticos mais recorrentes.
Atuação dos notários e registradores – Análise do Provimento n. 88/2019 do CNJ
Inicialmente, é relevante consignar que o provimento sob análise se aplica não apenas aos titulares dos serviços notariais e de registro, mas também aos interinos e aos interventores. Ademais, o provimento estabelece normas gerais de atuação direcionadas a todas as especialidades do serviço extrajudicial elencadas no art. 5º da lei 8.935/1994 (Estatuto dos Notários e Registradores), com exceção dos Ofícios de Registro Civil das Pessoas Naturais (RCPN) e dos Ofícios de Registro de Distribuição (RD), contemplando, ainda, as autoridades consulares com atribuição notarial e registral. Há uma razão para essa previsão constante do artigo 2º do provimento: as duas especialidades excluídas não possuem atribuições ligadas diretamente a operações econômicas e financeiras, não sendo, assim, relevantes ao sistema brasileiro de PLD/FT.
Entretanto, quando houver acumulação com outras atribuições, poderão se sujeitar à incidência do provimento, como se verifica, em São Paulo, com os Registradores Civis que têm competência para reconhecer firmas, lavrar procurações e autenticar documentos públicos e particulares, o que decorre da previsão contida na lei 4.225/84 c/c art. 52 da lei 8.935/1994. Não obstante, mesmo em São Paulo, surgiram divergências quanto ao cadastramento dos Oficiais de Registro Civil das Pessoas Naturais das Sedes, que possuem as atribuições notariais supramencionadas, e a recomendação foi no sentido de que deveria sim se proceder ao cadastramento e à alimentação do sistema, com a realização das devidas comunicações.
Compreendido quem são os agentes colaboradores aos quais o provimento se destina, o próximo passo para a compreensão da sistemática PLD/FT no âmbito das serventias extrajudiciais é sempre estar atento ao objetivo da novel normatização, que é a prevenção e o auxílio no combate a determinadas infrações penais, dando prevalência à interpretação teleológica ou finalística, sem desprezar a interpretação literal.
No que tange ao objeto da fiscalização, o provimento sob estudo determina que os notários e os registradores devem avaliar a existência de suspeição nas operações ou propostas de operações de seus clientes, dispensando especial atenção àquelas incomuns. Entende-se por “operações” os atos e negócios jurídicos efetivamente formalizados pelos tabeliães e/ou registrados pelos oficiais de registro. Quanto às “propostas de operações”, o provimento não traz uma análise da amplitude dessa expressão, deixando a cargo dos operadores do Direito proceder à interpretação que mais se coaduna com o objetivo de prevenir a prática dos crimes de lavagem de dinheiro e de financiamento ao terrorismo. Nesse ponto é que surgem as principais dúvidas e, naturalmente, algumas divergências de posicionamento, especialmente no tocante aos atos com qualificação notarial negativa, atos notariais declarados incompletos (com ausência de assinatura de alguma das partes), atos notariais extraprotocolares, atos com qualificação registral negativa, apontamentos para mero exame e cálculo e atos de averbação.
Miron sustenta que as comunicações de propostas de operações são subsidiárias, de maneira que somente deve haver a comunicação se o ato não for efetivamente realizado, pois, do contrário, o ato finalizado é que deverá ser objeto de comunicação. Quanto às situações envolvendo os atos supracitados, o autor afirma que devem ser analisados atos incompletos realizados por notários, postulações de registros com nota de diligência e pedidos de exame e de cálculo, dentre outros casos. Joaquim Cunha Neto, ex-diretor de Inteligência Financeira e Supervisão do COAF, também defende que atos incompletos se enquadram no conceito de “proposta de operações”, devendo a comunicação ser realizada, mas desde que existam dados suficientes para tanto, conforme expôs no “Curso Prático sobre o Provimento nº 88 do CNJ: Registro de Operações Realizadas e Implementação de Rotina ou Sistema de Detecção das Operações Suspeitas”.
Relativamente aos atos com qualificação notarial negativa, pensamos que se aplica o mesmo raciocínio dos atos notariais incompletos, ou seja, havendo suspeição e elementos suficientes, a comunicação à UIF deverá ser realizada. No caso de atos com qualificação registral negativa e apontamentos para mero exame e cálculo, como já existe um título que formaliza a operação ou a proposta desta, fica mais evidente o enquadramento na norma e a necessidade de comunicação.
No mais, observa-se que o provimento faz referência expressa a “atos notariais protocolares” nos artigos 9º, 13, 30 e 33, deixando claro que a norma se aplica somente a referidos atos. Fernando Domingos Carvalho Blasco (2019, p. 27) complementa consignando que os atos extraprotocolares – como a autenticação de cópia, o reconhecimento de firma, o apostilamento, a carta de sentença e a certificação digital – “não são aptos, por si, a criarem negócios jurídicos e, por isso, as etapas para confecção deles são simples e efêmeras, não permitindo a compreensão do negócio ou ato jurídico que enseja a necessidade da atuação notarial, nem tendo o notário acesso analítico efetivo aos documentos de suporte ao instrumento cujas firmas devam ser reconhecidas.” Assim, a atuação notarial estaria restrita, basicamente, às escrituras públicas, às atas notariais e às procurações.
Por fim, no tocante às averbações, verifica-se que o ato normativo em evidência, nos artigos 9º e 13, fala em “registro com conteúdo econômico”. Uma interpretação teleológica dos dispositivos conduz à conclusão de que o provimento trata do registro em sentido amplo, de modo a abarcar tanto o registro em sentido estrito como as averbações, desde que estas apresentem conteúdo econômico.
Antes de mais nada, é preciso saber que o Conselho de Controle de Atividades Financeiras – COAF é a Unidade de Inteligência Financeira (UIF) do Brasil, e possui atribuições de receber, examinar e identificar ocorrências suspeitas de atividade ilícita e, ato contínuo, comunicar às autoridades competentes para instauração de procedimentos.
Com a entrada em vigor do provimento, a primeira ação tomada pelos tabeliães e registradores foi escolher e indicar o Oficial de Cumprimento no Portal do CNJ. A figura do Oficial de Cumprimento surge com o objetivo de centralizar a identificação dos casos de comunicação automática e os trabalhos de última análise dos casos suspeitos, realizando as comunicações e atuando como sendo o primeiro contato com os agentes estatais. O provimento não deixa claro quem seria, dentro da organização da serventia, o oficial de cumprimento a ser indicado. O CNB/CF, em uma de suas lives sobre o assunto, esclareceu que o tabelião deveria indicar o responsável por implementar as políticas de PLD/FT e que este seria alguém de sua confiança, com conhecimentos necessários para desempenhar a função. O delegatário será sempre responsável por todos os atos e comunicações, mas há serventias em que o seu porte inviabiliza a atuação presencial daquele em todos os setores, sendo necessário que a figura do Oficial de Cumprimento seja outra que não ele próprio. Em serventias de pequeno ou médio porte, em geral, o oficial de cumprimento informado no Portal do CNJ é o próprio titular/responsável pela serventia. Certo é que os notários e registradores são solidariamente responsáveis com os Oficiais de Cumprimento na execução dos seus deveres – aplicando-se a mesma regra para interinos e interventores (art. 8º, § 3º).
Quanto às comunicações propriamente ditas, existem duas espécies de comunicações de operações e de propostas de operações que os notários e registradores deverão fazer à UIF: as comunicações automáticas e as comunicações de operações suspeitas. As primeiras estão previstas nos artigos 23, 25, 27 e 36 do citado provimento e independem de qualquer análise subjetiva por parte do agente colaborador, bastando o enquadramento na norma. Já as comunicações de operações suspeitas exigem uma análise cautelosa pelo agente colaborador, a fim de não gerar comunicações desnecessárias.
Nesse contexto, os elementos descritos no art. 5º do provimento em questão (partes envolvidas, valores, forma de realização, finalidade, complexidade, instrumentos utilizados ou falta de fundamento econômico ou legal), bem como as situações fáticas mencionadas nos incisos do artigo 20 (indicativos genéricos) e dos artigos 24, 26, 28 e 35 (indicativos específicos de cada uma das especialidades do serviço extrajudicial abrangida pelo provimento), trazem um verdadeiro norte à atividade investigativa a ser desempenhada pelo notário e pelo registrador, uma vez que contemplam situações aparentemente consideradas incomuns e que, por isso, devem despertar atenção e, ato contínuo, desencadear uma verificação diligente e perspicaz.
Como não se tem a pretensão de esgotar o tema – o que, inclusive, não seria possível por meio de um artigo – tampouco se objetiva focar em uma única especialidade, se procederá à abordagem das tipologias mais incidentes que envolvem a atuação notarial ou registral, bem como das situações que exigem o conhecimento de expressões, listagens ou cadastros típicos do sistema PLD/FT, as quais estão expostas basicamente no art. 20 do provimento, que contempla os “red flags” ou “sinais de alerta” genéricos.
O art. 20, inciso I, do provimento, traz a previsão de “operação que aparente não resultar de atividades ou negócios usuais do cliente ou do seu ramo de negócio”. Torna-se oportuno, então, definir quem são considerados clientes. Blasco (2019, p. 35-36) traz uma definição clara e concisa de clientes ao esclarecer que são “as pessoas que, a qualquer título, seja parte, interveniente ou declarante, sejam qualificadas nos atos notariais ou registrais. A única diferença, de fato, é que, no caso de registro de imóveis e de protesto, também é cliente o apresentante”. A fim de facilitar futuramente a análise de clientes, o provimento estabelece que o CNB/CF criará e manterá o Cadastro Único de Clientes do Notariado – CCN (art. 30, caput) – o qual, aliás, já foi implementado por meio da Plataforma do e-Notariado (Provimento n. 100/2020, do CNJ) e teve sua alimentação iniciada no mês de novembro de 2020. Com alimentação retroativa à data de publicação do Provimento n. 88/2019 e com cargas quinzenais, os tabeliães e registradores com atribuição notarial alimentarão o CCN, fazendo constar os dados pessoais dos usuários do sistema extrajudicial.
Outra expressão importante trazida pelo provimento é “beneficiário final”, cujo conceito consta do art. 4º, inciso III, nos seguintes termos: “a pessoa natural em nome da qual uma transação é conduzida ou que, em última instância, de forma direta ou indireta, possui, controla ou influencia significativamente uma pessoa jurídica, conforme definição da Receita Federal do Brasil (RFB)”. Também existe previsão no sentido de que o CNB/CF criará e manterá o Cadastro Único de Beneficiários Finais – CBF (art. 31, caput), que, aliás, será uma das funcionalidades do e-Notariado (art. 10, XIII, do Provimento n. 100/2020, do CNJ) – cadastro esse que também já se encontra em funcionamento. A preocupação com a identificação de beneficiários finais se justifica pela grande utilização de pessoas jurídicas para esconder o real beneficiário de uma operação, como bem ressaltado por Rafael Brum Miron. No que tange às providências que devem ser tomadas por notários e registradores, primeiramente deve se proceder à consulta ao CNB e a outros cadastros disponíveis, bem como ao exame da documentação apresentada para a prática do ato (art. 9º, § 8º), Se, ainda assim, persistir a indefinição acerca da pessoa que se enquadra como beneficiário final, o provimento recomenda que se deve colher declaração dos interessados e deixa claro que a ausência dessa informação não obstará a prática do ato notarial ou registral (art. 9º, § 9º).
Já os incisos V e VII do art. 20 do provimento elencam “operações envolvendo pessoas jurídicas domiciliadas em jurisdições consideradas pelo Grupo de Ação contra a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento do Terrorismo (Gafi) de alto risco ou com deficiências estratégicas de prevenção e combate à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo” ou “operações envolvendo pessoa jurídica cujo beneficiário final, sócios, acionistas, procuradores ou representantes legais mantenham domicílio nessas jurisdições”. Trata-se de duas listas que constam do site do Gafi e que são atualizadas periodicamente. Atualmente, permanecem como jurisdições de alto risco o Irã e a Coréia do Norte. Já a segunda listagem é mais extensa, sendo consideradas jurisdições com deficiência estratégica os seguintes países: Albânia, Barbados, Botsuana, Camboja, Gana, Jamaica, Maurício, Mianmar, Nicarágua, Paquistão, Panamá, Síria, Uganda, Iêmen e Zimbábue. Em 18/12/2020, Bahamas foi excluída desta última lista, porquanto foram corrigidas as deficiências estratégicas que haviam sido identificadas pelo Gafi em 2018.
Tem-se, ainda, as “operações envolvendo países ou dependências considerados pela RFB de tributação favorecida e/ou regime fiscal privilegiado, conforme lista pública” (art. 20, VI). A relação desses países consta da Instrução Normativa n. 1.037/2010, da Receita Federal do Brasil, que também é frequentemente atualizada.
Também é preciso dar especial atenção às pessoas investigadas ou acusadas de terrorismo e/ou sancionadas pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas (ONU) (art. 9º, § 1º, III, “j”), que constam de listagem pública de pessoas naturais e de pessoas jurídicas e entidades, com links de acesso disponibilizados no sítio eletrônico do Ministério da Justiça e de Segurança Pública.
Mas uma cautela ainda maior deve ser dispensada às operações ou propostas de operações envolvendo pessoa exposta politicamente (PEP), bem como com seus familiares, estreitos colaboradores ou pessoas jurídicas de que participem (art. 9º, § 1º, III, “k” c/c art. 16, caput). A Resolução Coaf n. 29/2017 não apenas evidencia quem são as pessoas expostas politicamente, como também deixa claro que essa condição perdura até cinco anos contados da data em que a pessoa deixou de se enquadrar como tal. Especialistas em inteligência financeira reconhecem a dificuldade de cumprimento dessa recomendação e sustentam que devem ser empreendidas diligências razoáveis, como a consulta ao cadastro eletrônico de pessoas expostas politicamente do Siscoaf e a outros bancos de dados a que o notário ou registrador tenha acesso, a análise do título ou documento apresentado e a verificação de informações prestadas pelos próprios interessados, seja por meio de declaração ou mesmo de uma conversa informal. Inclusive, pensamos que uma consulta com o nome das partes envolvidas em sites de busca, como o Google, também se mostra recomendável, já que a pesquisa é rápida e de fácil acesso a todos.
Passando efetivamente à análise dos casos suspeitos, observa-se que, no Brasil, grande parte das suspeições gira em torno de casos relacionados principalmente com a subvalorização ou a supervalorização dos imóveis. Os valores declarados pelas partes como sendo o montante pago pelas aquisições imobiliárias não raras vezes são utilizados como subterfúgio para dar impressão de licitude ao ganho imobiliário decorrente da operação ou para esconder ganho de capital, podendo consistir, ainda, em pagamento em imóveis de vantagens indevidas. Entretanto, não se pode desconsiderar que os cadastros de imóveis, em muitos municípios brasileiros, apresentam valores extremamente defasados, o que faz com que os valores declarados pelas partes sejam, de fato, muito diferentes dos valores utilizados para fins tributários.
Operações com intermediação de terceiros também são recorrentes e é justamente nesse contexto que surgem os “laranjas”, os “testas de ferro” e as “offshores”. Nessas situações, objetiva-se primordialmente esconder o verdadeiro beneficiário final do negócio jurídico realizado. Essa prática pode ser verificada em situações como a utilização de procuração com amplos poderes de administração conferidos a pessoa natural sem relação alguma com a pessoa jurídica a ser gerenciada – nesse caso, geralmente o mandatário é quem aufere efetivamente os lucros da sociedade, a qual foi criada apenas para encobrir aquele – bem como a partir de operações diversas, inclusive no ramo imobiliário, envolvendo pessoas cujos recursos financeiros não são compatíveis com a operação realizada – o que se denota, não raras vezes, da sua qualificação e de seu perfil social – dentre outros casos.
Não menos comuns são as técnicas de lavagem de capital consistentes em operações com pagamento de elevado valor em espécie, em vendas sequenciais de bens envolvendo as mesmas partes, em operações que não guardam compatibilidade com o capital social ou com o ramo de atividade de uma pessoa jurídica, em emissão fraudulenta de títulos de crédito seguido de protesto da dívida e de pagamento em espécie no Tabelionato de Protesto. A maioria dessas situações destacadas são verificadas com tanta frequência que passaram a ser previstas, inclusive, como objeto de comunicação automática.
Apenas analisando um dos casos de comunicação automática no que se refere a atividade do Tabelião de Notas e do Registrador Imobiliário, a fim de tecer uma breve crítica, analisaremos a operação em que se verifica a diferença entre os valores declarados como pagamento e os valores avaliados pelo fisco acima de 100%. Nesses casos, aos notários e registradores não é dada qualquer discricionariedade quanto a necessidade de realizar a comunicação ao COAF. Em breve pesquisa informal com notários e registradores, verificamos que esse é o motivo predominante de comunicações, pois, em geral, os valores avaliados pelo Fisco, conhecidos como valores venais, são extremamente defasados e não condizem com a realidade do mercado. Em situações, por exemplo, em que temos um terreno em uma área valorizada, que possui valor venal de R$30.000,00 e valor da operação de R$100.000,00, mesmo o notário sabendo que o valor real da operação é o valor correto, não havendo qualquer outra situação de suspeição, em situações que o cliente é conhecido, mesmo assim, por expressa previsão no Provimento n. 88/2019, o notário fará a comunicação ao COAF quando da lavratura da escritura pública e o registrador também comunicará a mesma operação quando do registro do título. Dessa forma, o sistema do COAF, provavelmente, ficará abarrotado com comunicações que não possuem qualquer ilicitude, mas que estão sendo realizadas por mero cumprimento da norma.
Situações suspeitas quanto à origem do dinheiro, a recusa das partes em fornecer os dados requeridos pelo tabelião/registrador, indícios de operações fictícias, cláusulas incomuns na prática do mercado também são abordadas no art. 20 (incisos VIII, IX, X, XI e XII) como sinais suspeitos, que merecem a atenção do oficial de cumprimento quando da análise do caso concreto.
Patrícia Presser faz interessante análise sobre os atos notariais de venda e compra de imóveis que possuem como compradores pessoas menores de idade. Necessário seria, nesses casos, indicar a origem do dinheiro, uma vez que o menor, sem auferir renda, teria que justificar o negócio jurídico por meio de um alvará judicial ou mediante a realização da doação do numerário utilizado para a compra do imóvel. Em São Paulo, as próprias Normas de Serviço Extrajudicial da Corregedoria-Geral da Justiça trazem a necessidade de cumprir tais requisitos na lavratura de escrituras públicas de venda e compra de imóveis por menor de idade.
Uma situação recorrente no âmbito notarial, consoante já anteriormente mencionado, é a utilização de procurações com poderes de administração, gerência e movimentação financeira outorgadas por empresários individuais ou sociedade empresárias. Mesmo em serventias menores, essa prática é constante e, na maioria dos casos, os procuradores são pessoas estranhas ao quadro social ou ao quadro de empregados da sociedade. Os Tabelionatos de Notas já possuem a obrigação de comunicar as Juntas Comerciais quanto da lavratura desses instrumentos, conforme Provimento CNJ nº 42/2014, de modo que, em regra, essa informação já é repassada ao órgão competente na fiscalização das sociedades empresárias e empresários individuais. Agora, verificada essa operação, haverá a necessidade de apuração pelo oficial de cumprimento de outros indicativos para fins de eventual comunicação ao COAF. Portanto, a outorga de procuração, por si só, não gera comunicação automática. Essa disposição enaltece o conhecimento jurídico e a análise do caso concreto feita pelos notários e registradores. Não sendo caso de comunicação automática, a prudência, o conhecimento do usuário do sistema e outros fatores serão levados em consideração para que comunicações desnecessárias não sejam remetidas.
O COAF realizou um estudo acerca das técnicas utilizadas no Brasil no processo de lavagem de recursos obtidos por meios ilícitos e elaborou uma coletânea de casos práticos, cuja leitura se recomenda, pois a análise de casos pretéritos permite identificar mais facilmente os sinais de alerta presentes em situações cotidianas consideradas suspeitas. Também se mostram relevantes os ensinamentos de Rafael Bezerra Ximenes de Vasconcelos, Diretor de Supervisão do COAF, ministrados na live “Provimento 88: Como repassar informações para o Coaf”, do canal Registro de Imóveis do Brasil, no sentido de que os elementos objetivos e subjetivos aparecem potencialmente conjugados nas operações efetivamente ligadas aos crimes de lavagem de dinheiro e de financiamento ao terrorismo. No mais, Joaquim Cunha Neto, no Curso Prático sobre o Provimento nº 88 do CNJ, realizado pelo Colégio Notarial do Brasil – Conselho Federal, destaca que é preciso pensar em fases. Primeiramente, deve-se utilizar um sistema automatizado (no caso de serventias de médio ou grande porte) ou estabelecer rotinas para detecção dos sinais de alerta (para serventias de menor porte). Após, é preciso separar e analisar.
É interessante também que a análise de eventual suspeição da operação ou da proposta de operação seja feita durante a própria qualificação notarial ou registral, a fim de otimizar o serviço. E é bom que se tenha em mente que o provimento não cria novos requisitos para a formalização dos atos e negócios jurídicos e que não se negará a realização de um ato registral ou protesto por falta de elementos novos ou dados novos, estipulados no provimento (art. 42).
Constatada a existência de operações ou de propostas de operações que devem obrigatoriamente ser comunicadas à UIF independentemente de análise ou de qualquer outra consideração, ou apurada a existência de situações que podem configurar indícios da ocorrência de crimes de lavagem de dinheiro ou de financiamento do terrorismo, conforme análise subjetiva feita pelo notário ou pelo registrador, a comunicação será efetuada em meio eletrônico no site da UIF, por intermédio do Sistema de Controle de Atividades Financeiras – SISCOAF, link de acesso (art. 15, parágrafo único, do provimento), mediante o preenchimento de dados essenciais constantes de um formulário, sem envio de cópia do ato praticado em sua integralidade – o que poderá ser solicitado futuramente pela UIF. Nesse ponto, destaca-se a existência do “Manual operacional SISCOAF 2” elaborado pelo COAF com o intuito de facilitar a utilização do referido sistema.
No mais, é de suma importância o preenchimento do campo “informações adicionais”, pois é nele que o oficial de cumprimento irá justificar a comunicação feita, devendo ser preenchido mesmo nos casos sujeitos à comunicação automática. Constará desse campo os motivos pelos quais a comunicação está sendo enviada e os elementos analisados pelo oficial. Nas palavras de Miron, não se pode pensar simplesmente em cumprir com um dever legal ao se fazer uma comunicação; mais que isso, é preciso ter em mente que uma comunicação de qualidade será realmente útil ao COAF no combate, principalmente, aos crimes de lavagem de dinheiro.
Quanto ao prazo para realização de comunicações à UIF, o Provimento n. 88/2019, do CNJ, inicialmente, trouxe a previsão de que as comunicações deveriam ser efetuadas no dia útil seguinte à prática do ato notarial ou registral. Entretanto, a Associação de Notários e Registradores do Brasil – ANOREG-BR, nos autos do Pedido de Providências n.0006712-74.2016.2.00.0000, em tramitação na Corregedoria Nacional de Justiça, formulou pedido de ampliação do prazo, em razão da necessidade de análise para verificação das operações suspeitas com qualidade e efetivo monitoramento e ao argumento de que recente norma expedida pelo Banco Central (Circular n. 3.978, de 23/1/2020)?ampliou o prazo para envio das comunicações pelas instituições financeiras. Ato contínuo, o mencionado provimento foi alterado pelo Provimento n. 90/2020, do CNJ, que estabeleceu os seguintes prazos: 60 (sessenta) dias para o exame de operações e/ou propostas de operações que dependem de análise e 45 (quarenta e cinco) dias para o exame de operações e/ou propostas de operações que independem de qualquer exame por parte de notários e registradores, destacando-se que a comunicação, em ambos os casos, deverá ser realizada no dia útil seguinte à conclusão da análise. Como bem pontuado por Miron, a concessão de um prazo razoável para análise do ato feita pelo Oficial de Cumprimento significou importante alteração pois possui o intuito de qualificar melhor as comunicações enviadas ao COAF.
Além das comunicações positivas acima mencionadas, existe o dever de comunicar a não ocorrência de comunicações (comunicações negativas) à Corregedoria-Geral da Justiça estadual ou do Distrito Federal, a cada seis meses, mais especificamente até o dia 10 dos meses de janeiro e julho, conforme art. 17, caput, do provimento sob análise.
Oportuno destacar o dever de manter o sigilo com relação a quaisquer comunicações realizadas, sendo expressamente vedado o compartilhamento de informação com as partes envolvidas ou com terceiros, com exceção do Conselho Nacional de Justiça – CNJ (art. 18 do provimento) e, evidentemente, da própria UIF – o que objetiva justamente não frustrar a investigação de infrações criminais e até mesmo evitar responsabilização administrativa, civil e criminal decorrente da divulgação de dados pessoais e de condutas praticadas pelas pessoas envolvidas que apenas supostamente podem caracterizar infração penal. É nesse contexto que Rafael Brum Miron ressalta que não devem ser divulgadas informações sobre comunicações realizadas em virtude de requerimento de autoridades policiais ou de requisições do Ministério Público, tampouco devem ser prestadas informações nesse sentido à Corregedoria-Geral da Justiça ou ao órgão correcional local. Afinal, o provimento é claro ao excepcionar apenas o CNJ. Já quanto à conduta do agente colaborador em relação ao cliente, o autor salienta que o dever de sigilo não impede o aconselhamento feito para esclarecer sobre a ilegalidade de determinado ato e para evitar a prática deste, desde que não haja intuito de burlar as normas de comunicação, e revela a importância de se evitar excesso de diligências para identificar o cliente e a operação, pois esse comportamento poderá caracterizar a prática de alerta ao cliente.
Por fim, é relevante abordar como notários e registradores devem proceder em caso de dúvida acerca da efetiva necessidade de comunicar ou não uma operação suspeita previamente analisada. O IRIB, em seu Manual do COAF, soltou a diretriz de que, em caso de dúvida, o registrador dever realizar a comunicação, uma vez que o provimento traz a previsão de sanção pra a hipótese de descumprimento do dever de comunicar, mas dispõe que não será responsabilizado aquele que lança uma comunicação de boa-fé. Por outro lado, a orientação do CNB/CF é no sentindo de que a dúvida deve ensejar uma análise mais profunda dos elementos do ato, de suas partes e