Período de férias, mesmo na situação de pandemia vivenciada atualmente, resulta na procura do Poder Judiciário para a emissão de autorização de viagem para crianças e adolescentes que precisam transitar pelo país e fora, de maneira que profissionais do Direito e aqueles que atuam na rede de proteção buscam informações a respeito dos casos que exigem ou não intervenção do Poder Judiciário.
No capítulo relativo à Prevenção Especial do Estatuto da Criança e do Adolescente está prevista a regulamentação da autorização para viajar, mais especificamente nos artigos 83 e 85, consubstanciando uma restrição legítima ao seu direito de ir e vir (art. 16, I, do Estatuto) para garantia de sua proteção integral.
A expedição de autorização judicial para viagens dentro do território nacional só ocorre em último caso, da mesma forma que ocorre com as viagens internacionais regulamentadas pela resolução 131/2011 do CNJ, hipóteses nas quais a criança ou o adolescente brasileiro que viaja ao exterior desacompanhado, acompanhado por um dos genitores ou responsáveis ou, ainda, acompanhado de terceiros adultos e capazes, deve apresentar apenas autorização de viagem com firma reconhecida em duas vias.
A redação original do artigo 83 do Estatuto da Criança e do Adolescente destacava que nenhuma criança poderia viajar para fora da comarca onde reside, desacompanhada dos pais ou responsável, sem expressa autorização judicial. Logo, adolescentes poderiam viajar independentemente de autorização judicial.
Com a lei 13.812, de 16 de março de 2019, que instituiu a Política Nacional de Busca de Pessoas Desaparecidas, estabeleceu-se que também adolescentes menores de dezesseis anos naquelas circunstâncias dependeriam de autorização judicial para viajar, podendo os jovens a partir dessa idade realizar viagens nacionais sozinhos, desacompanhados de quaisquer dos pais ou responsável (art. 83 da lei 8.069/1990).
Ainda, crianças e adolescentes até 16 anos de idade incompletos podem viajar independentemente de autorização, acompanhadas dos pais ou responsável (tutor, guardião, curador) ou dos avós, ou parentes maiores de 18 anos, até terceiro grau (irmãos e tios), comprovando-se o parentesco ou vínculo (artigo 83, §1º, 'b', 1, do Estatuto).
Tratando-se de comarca contígua à da residência da criança ou do adolescente menor de 16 anos, se na mesma unidade da Federação, ou incluída na mesma região metropolitana, é dispensável autorização, conforme art. 83 §1°, 'a', do Estatuto.
Ocorre que aproximadamente seis meses após a alteração legislativa, considerando o vertiginoso aumento de procura por autorizações judiciais para viagem no território nacional, a resolução 295, de 13 de setembro de 2019 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) promoveu uma sensível modificação na regulamentação estatutária, caminhando para a extrajudicialização da autorização de viagem de crianças e adolescentes e tornando a intervenção do Poder Judiciário excepcional.
Com efeito, crianças e adolescentes até 16 anos que viajem desacompanhadas ou acompanhadas de terceiros maiores de 18 anos, podem ser autorizadas pelo pai, mãe ou responsável, por meio de escritura pública ou documento particular com firma reconhecida em cartório, com base na referida Resolução, cujo prazo será discriminado no documento, entendendo-se, no silêncio, que a autorização é válida por dois anos (arts. 2°, III e 3° da Res. 295/2019 do CNJ).
Embora o reconhecimento de firma na autorização seja dispensado pela Lei da Desburocratização (lei 13.726/2018) se os pais estiverem presentes no momento do embarque (art. 3°, VI), é prudente que se observe a exigência da Resolução 295/2019 do CNJ, mesmo porque em hipóteses de voos com escala ou no retorno da viagem, em que os pais não estarão presentes, poderá impedir o transporte e deflagrar transtornos diversos.
Importante frisar que o provimento 103/2020 do CNJ instituiu a Autorização Eletrônica de Viagem (AEV), cuja emissão será realizada por intermédio do Sistema de Atos Notariais Eletrônicos (e-Notariado), a partir de módulo específico para a emissão desse documento acessível pelo link www.e-notariado.org.br, que aguarda desenvolvimento pelo Colégio Notarial do Brasil.
Ainda, se a criança ou adolescente tiver passaporte válido, com autorização expressa para viajar ao exterior desacompanhado(a), é viável sua circulação em território nacional (art. 2°, IV, da Res 295/2019 do CNJ).
Registre-se, por derradeiro, que para a viagem nacional é exigido a partir dos 12 anos de idade completos documento de identificação com foto, com base no art. 3º da resolução ANTT nº 4.308/2014 e art. 16, caput e §3°, da resolução ANAC 400/2016. Nesse caso, a autorização a princípio não é hábil para suprir a ausência da documentação, por ausência de previsão normativa para tanto, a não ser que haja demonstração concreta de que a restrição desses normativos da ANTT e da ANAC possam vulnerar o conteúdo essencial do direito fundamental à liberdade (ir e vir).
Na situação em que a criança viaja com o pai e/ou a mãe adolescente(s), entende-se que estão desacompanhados, sendo necessária autorização judicial ou de pessoa capaz que os represente, consoante entendimento do Conselho Nacional de Justiça exarado na Consulta n° 000214-20.2020.2.00.0000. Nesse caso, “a autorização para que o adolescente viaje não supre a necessidade de autorização para que seu filho, menor de idade (sic), também viaje”.
Dessa forma, caso a emissão de autorização de viagem pelos pais ou responsáveis não seja possível por algum motivo ponderoso, somente assim será necessária a autorização judicial de viagem, o que reflete a excepcionalidade atual da expedição desse documento pelo Poder Judiciário.
Se de um lado a lei 13.812/2019 elasteceu demasiadamente a exigência de autorização judicial para a viagem nacional, de outro a Resolução n° 295/2019 do CNJ conformou a situação à res. 131/2011 do mesmo órgão, que trata da viagem internacional e não estabelece requisitos tão rígidos.
Interessante que a legislação que deflagrou as sucessivas alterações normativas procura prevenir o desaparecimento de pessoas, fenômeno que envolve o tráfico humano, o que é repudiado pela Convenção sobre os Direitos da Criança (art. 35) e objeto da Lei da Busca Imediata (lei 11.259/2005), que inseriu no Estatuto da Criança e do Adolescente o dever de as autoridades realizarem a investigação incontinenti em havendo desaparecimento de crianças e adolescentes (art. 208, §2°, do Estatuto).
Ora, o que pensar, contudo, de situações como adoções ilegais, sobretudo na perspectiva criminosa do art. 238 da lei 8.069/1990, em que há entrega do filho mediante paga ou recompensa? Seria possível cogitar a autorização da mãe e/ou do pai para que o filho recém-nascido viajasse com terceiros que pretendessem adotá-lo?
Não há dúvidas que situações anômalas podem ocorrer, conquanto não se possa presumir a má-fé que, caso seja subjacente, deve ser combatida por outros meios, não devendo se prescindir, por outro lado, da perspectiva preventiva. O próprio Conselho Nacional de Justiça pode aproveitar a janela de oportunidades criada pelo Pacto Nacional da Primeira Infância e pelo recém instituído 'Prêmio Prioridade Absoluta' (res. 355/2020), para difundir boas práticas voltadas à promoção dos direitos da criança e do adolescente no âmbito do Sistema de Justiça, inclusive no tocante a mecanismos de prevenção ao desaparecimento do público infantoadolescente.
O Plano Nacional da Primeira Infância é propositivo na redução a zero do tráfico de crianças e de adoções ilegais, o que pode ser aferido no trânsito desse público no território nacional pelas autoridades e empresas de transporte, sem prejuízo a necessária articulação intersetorial prévia para prevenir situações irregulares.
A responsabilidade compartilhada pela proteção integral das crianças e dos adolescentes pela família, sociedade e Estado exige organização, devendo-se inserir na 'bagagem' não só a documentação devida para a concretização da viagem, mas também o cuidado necessário para que todos os seus direitos fundamentais sejam garantidos.