Algumas regras da lei 14.118/21, instituidora do Programa Casa Verde e Amarela, impactam decisivamente nos institutos jurídicos da guarda de filhos e do direito de propriedade
Início de ano, últimos dias de recesso judiciário e profusão de normas: a combinação desses elementos desafia a comunidade jurídica, mais uma vez, a conhecer e interpretar novos regramentos.
São objeto de nossa atenção alguns dispositivos da lei 14.118, de 12/1/21 (que institui o Programa Casa Verde e Amarela e altera diversas leis) que tendem a impactar em diversas dinâmicas ligadas ao Direito de Família.
Eis o texto em análise, comparado com o teor da pretérita legislação vigente até o advento da nova lei
Programa Casa Verde e Amarela (lei 11.418/21) |
Programa Minha Casa, Minha Vida (lei 11.977/09) |
Art. 13. Os contratos e os registros efetivados no âmbito do Programa Casa Verde e Amarela serão formalizados, preferencialmente, em nome da mulher e, na hipótese de esta ser chefe de família, poderão ser firmados independentemente da outorga do cônjuge, afastada a aplicação do disposto nos arts. 1.647, 1.648 e 1.649 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil). | Art. 35. Os contratos e registros efetivados no âmbito do PMCMV serão formalizados, preferencialmente, em nome da mulher. |
Art. 14. Nas hipóteses de dissolução de união estável, separação ou divórcio, o título de propriedade do imóvel adquirido, construído ou regularizado pelo Programa Casa Verde e Amarela na constância do casamento ou da união estável será registrado em nome da mulher ou a ela transferido, independentemente do regime de bens aplicável, excetuadas as operações de financiamento habitacional firmadas com recursos do FGTS. | Art. 35-A. Nas hipóteses de dissolução de união estável, separação ou divórcio, o título de propriedade do imóvel adquirido no âmbito do PMCMV, na constância do casamento ou da união estável, com subvenções oriundas de recursos do orçamento geral da União, do FAR e do FDS, será registrado em nome da mulher ou a ela transferido, independentemente do regime de bens aplicável, excetuados os casos que envolvam recursos do FGTS |
Parágrafo único. Na hipótese de haver filhos do casal e a guarda ser atribuída exclusivamente ao homem, o título da propriedade do imóvel construído ou adquirido será registrado em seu nome ou a ele transferido, revertida a titularidade em favor da mulher caso a guarda dos filhos seja a ela posteriormente atribuída. | Parágrafo único. Nos casos em que haja filhos do casal e a guarda seja atribuída exclusivamente ao marido ou companheiro, o título da propriedade do imóvel será registrado em seu nome ou a ele transferido. |
O novo regramento chama atenção em alguns pontos:
- Enquanto a legislação anterior determinava que em caso de divórcio ou dissolução de união estável o título de propriedade do imóvel seria registrado no nome da mulher ou a ela transferido (ressalvando dessa regra apenas as hipóteses de utilização de recursos do FGTS ou as situações em que a guarda dos filhos fosse atribuída exclusivamente ao marido/companheiro), a nova lei insere a curiosa expressão “preferencialmente” no texto – tal inclusão implica na alteração da legislação anterior, especialmente porque não traz critérios objetivos para dizer quando serão os imóveis registrados em nome da mulher ou em nome do homem;
- A lei utiliza o termo “chefe de família”, expressão em desuso há anos: as relações familiares não mais são pautadas por relações hierárquicas de chefia. A expressão acabará sendo considerada como um critério subjetivo que padece de critérios para o estabelecimento de seu adequado sentido;
- A lei mantém as duas exceções criadas pela norma anterior (e que já traziam algumas discussões, conforme será visto adiante), acrescentando a esdrúxula possibilidade de alteração da propriedade vinculada à alteração da guarda dos filhos. A hipótese é ruim em muitos sentidos, que aqui sintetizamos:
a) a regra legal prevê guarda compartilhada, situação não abordada pela nova lei;
b) a vinculação da possibilidade de alteração da guarda à mudança da propriedade gera ofensa à proteção constitucional da propriedade, pois cria uma hipótese de expropriação sem qualquer relação com a função social da propriedade;
c) a lei não aborda situações decorrentes de guarda de fato;
d) o fato de a propriedade “acompanhar” a pessoa guardiã, podendo ser transferida em caso de mudança, gera instabilidade e insegurança;
e) além disso, o interesse na propriedade poderá ensejar postura calculista para contemplar o patrimônio e não pleito de guarda baseado na genuína intenção de cuidar melhor dos filhos incapazes, que poderão ser instrumentalizados como “moeda de troca”.
- A lei cria um dever de indenização não previsto na lei anterior, conferindo ao marido (já que a mulher terá preferência no registro) o direito de cobrar perdas e danos pela propriedade que não ficou registrada em seu nome, ou seja, deixou não apenas de ser protetiva à mulher, como criou um dever indenizatório!
Para bem compreender como os temas poderão ser aplicados, vale conferir como foram apreciados alguns casos julgados com base na lei pretérita (lei 11.977/09, sobre o programa Minha Casa, Minha Vida). Como se notará, a aplicação da lei anterior já causava dúvidas significativas.
Em caso julgado pelo Tribunal de Justiça catarinense, o pai detentor da guarda provisória da filha pediu a reintegração urgente no imóvel no curso da ação de dissolução de união estável e foi contemplado.
Em outra situação levada a juízo, o Tribunal Regional Federal da 1a. Região entendeu que, não havendo filhos e nem ciência sobre razões do abandono do bem, não caberia excluir a mulher da posição de titular do contrato, não se podendo concluir pelo desinteresse no imóvel pelo fato de tê-lo abandonado.
Por fim, em caso julgado pelo Tribunal de Justiça do Sergipe, constou no acórdão que a regra sobre o registro do bem no nome da companheira “não diz que o homem não terá qualquer direito ao imóvel, devendo ser aplicada a regra do Código Civil segundo a qual os companheiros terão direito a 50% dos bens adquiridos durante a constância da união.
Como se nota, as decisões encontradas abordaram as questões de maneira diversa daquela estipulada pela nova legislação, sempre preservando a manutenção do registro do bem no nome da mulher por força da expressa previsão legislativa então existente.
A nova legislação, portanto, além de representar retrocesso em relação à proteção da mulher e do patrimônio familiar, contém hipótese de ofensa à Constituição no que toca à possibilidade de alteração da propriedade vinculada à alteração da guarda.
Apesar de considerarmos que as dúvidas expostas nesse breve artigo não encontrarão respostas claras tão cedo e precisarão ser alvo de debates e definições adiante, servindo as pessoas em conflito – infelizmente – como verdadeiras “cobaias” do atual sistema normativo, esperamos que estas primeiras impressões possam contribuir para a aplicação adequada das novas regras.