Seja por corte de custos ou para fugir da solidão, pandemia impulsiona casais a dividirem o mesmo teto; planejamento e contrato estabelecendo as ‘regras do jogo’ são fundamentais para evitar dores de cabeça
 
As décadas passaram, a sociedade evoluiu e hoje um casal não precisa mais da benção religiosa ou do reconhecimento do Estado para dividir o mesmo teto. E a pandemia do novo coronavírus deve acelerar ainda mais essa mudança de comportamento. Seja pelo corte de despesas por causa da crise econômica ou para fugir da solidão imposta pelas medidas de confinamento, está se tornando mais comum que casais que não necessariamente sentem o desejo de oficializar o matrimônio se juntem para adquirir o imóvel próprio. E o momento nunca esteve tão oportuno. Números da Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC) mostram que as vendas de apartamentos no terceiro trimestre do ano passado subiram 23,7% na comparação com o mesmo período de 2019. Já o Painel do Mercado Imobiliário, produzido pela plataforma Kenlo, aponta que a venda de apartamentos usados cresceu 52% em 2020. Porém, há uma série de considerações que deve ser levada em conta antes de seguir adiante.
 
Especialistas em planejamento financeiro e direito da família apontam a necessidade de tomar decisões preventivas para evitar futuras dores de cabeça. A principal delas é ter em mente que um dia este relacionamento vai chegar ao fim, seja pela separação do casal ou com a morte de um dos lados. A aquisição de um bem por um casal, mesmo que não tenha o relacionamento chancelado pelo cartório, é um indício de união estável, o que já cria um arcabouço jurídico próprio para a uma futura ruptura do relacionamento. Pela ótica do direito de família, a união estável é uma situação que não obrigatoriamente precisa ser reconhecida de forma oficial. Ou seja, mesmo que o casal não tenha declarado perante a Justiça que mantém esse tipo de relacionamento, a forma que eles convivem já pode se caracterizar como união estável, e implicar todas as consequências jurídicas que isso envolve. “A união estável se caracteriza pela união pública estável e duradoura, com o intuito de gerar família. Pelos direitos patrimoniais que ela cria, se esse imóvel for comprado por uma das partes durante a união, vai ter que ser dividido quando houver a separação”, afirma Camila Zynger especialista em direito da Família e Sucessões, do Neves De Rosso e Fonseca Advogados. O namoro qualificado é, juridicamente, o passo anterior à união estável, e dentro dele não há obrigações patrimoniais. Porém, a linha que separa os dois tipos de relacionamento é tênue. “É muito difícil distinguir entre os dois quando as pessoas moram juntas. Um casal pode ter um namoro qualificado, e dentro de poucos dias se tornar uma união estável. É uma situação nova e que no fim quem vai decidir é a Justiça”, diz a advogada.
 
A formulação de um contrato entre as partes é a melhor forma de garantir a harmonia numa futura separação. O documento, que pode ser confeccionado por qualquer advogado e reconhecido em cartório, deve contar com o que o educador financeiro Reginaldo Domingos chama de “regras do jogo.” A expressão pode ser vista como uma forma menos romântica de deixar registrada as condições de separação do casal. As opções mais tradicionais são as divisões totais ou parciais de bens. A primeira indica que cada parte do casal tem o seu próprio matrimônio, e que ele será mantido desta forma após a separação. Já a separação parcial indica que tudo o que for conquistado por qualquer uma das partes a partir do início da relação será dividido entre os dois ao fim do relacionamento. “Esse tipo de situação não pode ser vista de forma emocional, tem que ser pela razão. Por isso um advogado irá contemplar todas essas questões de uma forma fria. A paixão, muitas vezes, não enxerga como um todo, e para isso é preciso ter uma visão de 360º”, afirma.
 
A compra de um imóvel segue a mesma linha. Apesar do ensejo das duas partes em adquirir o bem, é preciso deixar claro quanto cada um está investindo, de que forma será feito o parcelamento do imóvel e como ficará dividida a propriedade. “Nisso entra a questão de renda, se quem ganha mais irá pagar a maior parte. Ou se um fica responsável por pagar a entrada, enquanto o outro fica com as prestações. Também é preciso levar em consideração outros custos, como IPTU, manutenção. Essas regras precisam estar muito claras, de preferência com uma cláusula que já tenha a premissa da separação. No mundo da educação financeira, esse tipo de atitude evita um problema maior que leva a mais traumas ou perda de patrimônio”, explica. A pandemia forçou as pessoas a permanecerem mais tempos em casa, e nunca a necessidade de um lar confortável foi tão latente. Rejane Tamoto, planejadora financeira CFP da Planejar, chama a atenção para os motivos que levam o casal a procurar um imóvel próprio. A decisão de desembolsar as economias acumuladas ao longo de uma vida deve ser muito bem preparada e nunca tomada por impulso ou desejo imediato. “Ainda estamos em meio uma pandemia, e um imóvel pode se tornar a válvula de escape. É preciso muito cuidado ao tomar grandes decisões em um curto espaço de tempo”, explica. Para evitar cair em armadilhas, a especialista indica uma série de reflexões antes de tomar a decisão final, como a possibilidade de mudança da cidade, estado ou até mesmo país, e qual o fôlego financeiro que o casal tem. “É preciso colocar na conta todos os custos, e também deixar uma reserva de emergência. Muitos casais compram o imóvel próprio e zeram tudo. É importante deixar um dinheiro guardado para situações inesperadas”, afirma.