Depois da decisão do STF, onde avançamos e para onde precisamos ir?
 
Há 10 anos o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, no julgamento conjunto da ADPF no 132 e da ADI no 4.277 (ajuizada originariamente como ADPF no 178-1), pelo reconhecimento da união estável entre casais do mesmo sexo.
 
Um dos argumentos justificadores da decisão foi a necessidade de conferir interpretação conforme a Constituição Federal ao artigo 1.723 do Código Civil, que trata do instituto da união estável, excluindo qualquer significado que impeça o reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar.
 
Outro pilar de sustentação foi o artigo 3º, inciso IV, da Constituição Federal, que trata da vedação de qualquer discriminação em virtude de sexo, raça e cor. Para o relator, ministro Ayres Britto, no mesmo sentido, ninguém pode ser diminuído ou discriminado em função de sua preferência sexual.
 
Como exemplo, no Direito Previdenciário, passou-se a vislumbrar a concessão de benefício de pensão por morte também nos casos de pares homoafetivos; no Direito Sucessório, os companheiros homoafetivos passaram a figurar na linha sucessória prevista pelo Código Civil e; no Direito do Trabalho, seus doutrinadores começaram a se debruçar sobre questões como as licenças maternidade e paternidade, tendo em vista, principalmente, que agora que os casais homoafetivos também poderiam se valer do instituto da adoção.
 
Portanto, percebe-se que o posicionamento do STF foi uma “virada de chave” para assegurar não apenas o reconhecimento da união estável entre pares homoafetivos, mas também garantir a efetividade de outros direitos da população LGBTQIA+.
 
Em 2013, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou a Resolução no 175, cuja finalidade era assegurar a impossibilidade de recusa do serviço registral em celebrar o casamento ou a conversão de união estável em casamento de pessoas homoafetivas.
 
Popularmente, na época em que o STF julgou a ADPF no 132 e a ADI no 4.277, uma pesquisa do Ibope demostrou que 55% dos brasileiros eram contra a união estáveis entre homossexuais.
 
Para melhor análise da situação, cabe mencionar que a pauta não se solidificou somente no Brasil, representando um fenômeno que ganhou força globalmente. Atualmente, 28 países reconhecem o casamento entre pessoas do mesmo sexo e 34 países reconhecem a união estável entre pares homoafetivos. Dos 28 países que reconhecem o casamento entre pares homoafetivos, 22 passaram a reconhecer o instituto entres os anos de 2010 e 2020 e dos 34 países que reconhecem a união estável entre pares homoafetivos, 13 passaram a reconhecer o instituto entre os anos de 2010 e 2020.
 
Montenegro foi o último país que versou sobre o tema. Foi publicada uma declaração que garante direitos aos casais formados por pessoas do mesmo sexo em 2020. Contudo, a legislação somente entrará em vigência em julho deste ano.
 
Dentro da Academia Brasileira o reconhecimento das famílias homoafetivas continuou sendo assunto controvertido. Conforme levantamento realizado por Lívia Gonçalves Buzolin, Maria Helena Diniz (2017), Silvio de Salvo Venosa (2014), Carlos Roberto Gonçalves (2012) e Regina Beatriz Tavares da Silva (2014) se filiam ao conceito de família orientado na finalidade de procriação, a partir de um casal formado por indivíduos de sexos distintos. De outro lado, Maria Berenice Dias (1997), Rodrigo da Cunha Pereira (2012), Sérgio Resende de Barros (2002), Luiz Edson Fachin (2003), Daniel Sarmento (2008), Caio Mário da Silva Pereira (2017), definem família como um grupo de pessoas unido pelo afeto e como lugar de realização pessoal.
 
A população LGBTQIA+ vem exercendo seu direito assegurado pelo STF, buscando o reconhecimento formal de suar uniões. Conforme dados da Associação dos Notários e Registradores do Brasil (Anoreg), de maio de 2003 (quando entrou em vigor a norma do CNJ) até abril de 2020 o Brasil já havia registrado mais de 52 mil casamentos entre pessoas do mesmo sexo.
 
Segundo dados mais recentes do IBGE, 9.520 casais homoafetivos se uniram formalmente em 2018, representando um aumento de 61,7% em relação a 2017, ano em que 5.887 casais do mesmo sexo se uniram. O casamento entre pares homoafetivos representou 0,9% do total de casamentos registrados no país em 2018[5]. Curiosamente, as Estatísticas do Registro Civil de 2019, disponibilizadas no Sistema IBGE de Recuperação Automática (SIDRA), somente registro casamentos entre cônjuges masculino e feminino.
 
Até o presente momento, os maiores esforços para salvaguardar os direitos da população LGBTQIA+ foram provenientes do Poder Judiciário, especialmente do STF. Mesmo com a redução das desigualdades e a promoção da inclusão social integrando os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Organização das Nações Unidas, o Poder Legislativo não parece ter uma diretriz clara.
 
De 2011 para cá, houve algumas tentativas no Poder Legislativo de insurgência em face dos direitos da população LGBTQIA+. O Projeto de Lei Complementar no 6.583/2013, que ainda carece de votação, adota o conceito excludente de família, reconhecendo que somente a família baseada na conjugalidade e filiação foi reconhecida na Constituição Federal. O Projeto aguarda deliberação do recurso na mesa diretora da Câmara dos Deputados.
 
De outro lado, autuado como Projeto de Lei do Senado no 470/2013, encabeçado pelo Instituto Brasileiro do Direito de Família (IBDFAM), chamado de Estatuto das Famílias, reconhece expressamente em seu artigo 68 o reconhecimento da união homoafetiva e a adoção por pares homoafetivos. O Projeto foi arquivado ao final da Legislatura.
 
Já em 2016, o Projeto de Lei no 4.931/2016 tinha como fim autorizar terapias que auxiliassem nas mudanças de orientação sexual, apesar de a Resolução no 1/1990 do Conselho federal de Psicologia proibir terapias de reversão sexual em pessoas LGBTQIA+. O projeto foi arquivado em janeiro de 2019. No entanto, em 2017 o grupo Psicólogos em Ação obteve sentença favorável, na Justiça Federal do Distrito Federal, para praticar terapias análogas à “cura gay”. Somente em abril de 2019, no julgamento da Reclamação no 31.818, a ministra Cármen Lúcia, no âmbito do STF, concedeu liminar ao pedido do Conselho Federal de Psicologia para que a Resolução no 1/1990 fosse cumprida na íntegra.
 
O próprio fato de o Poder Legislativo não se posicionar, seja a favor ou contra da união dos casais homoafetivos representa o quanto o tema ainda continua controverso no meio social.
 
Cabe ainda mencionar o fato de o Brasil ser um país onde a lei escrita recebe muito prestígio, diferentemente do que ocorre no sistema de Common Law. Apesar de o Brasil cada vez mais apresentar um sistema de Civil Law com temperamentos de Common Law, com os precedentes judiciais ganhando mais força, a lei escrita ainda é o seu pilar mais imponente.
 
Em outras palavras, sendo o Poder Legislativo o principal legitimado a amparar direitos e implementar políticas públicas, urge o seu reconhecimento para assegurar socialmente estas uniões de uma vez por todas.
 
Há, portanto, que se refletir até que ponto as críticas sobre o possível ativismo judicial da Corte Suprema se convalidam, tendo em conta que o Poder Legislativo denota dificuldade na promoção dos direitos desta minoria.
 
A mais calorosa discussão sobre o tema no âmbito da Corte Constitucional tratou do julgamento conjunto da ADO no 26 e do MI no 4.733, em 2019, que culminou na criminalização da homofobia através da equiparação ao crime de racismo, previsto na Lei no 7.716/89. Outro avanço recente foi o julgamento da ADI no 5.543, em 2020, que firmou ser inconstitucional a proibição de doação de sangue por homens homossexuais.
 
O próprio fato de o Poder Legislativo permanecer silente sobre os direitos da população LGBTQIA+, restando ao STF assegurar a efetivação destes, confirma a complexidade do tema e ilustra o quanto a discussão no meio social amplo ainda representa um campo minado. O diálogo é necessário e a população LGBTQIA+ carece de políticas públicas para que deixe, de uma vez por todas, de figurar à margem da sociedade.