Embora a lei não preveja qual modalidade de agente de tratamento os titulares de serventia se enquadrem, isso está sendo feito pela regulamentação do Poder Judiciário
1. Introdução
Com a lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) vieram uma série de requisições novas para todos os agentes de tratamento de dados legitimarem suas atividades. A aplicação da lei aos notários e registradores é inconteste diante da previsão expressa do art. 23, § 4º da LGPD.
Embora a lei não preveja qual modalidade de agente de tratamento os titulares de serventia se enquadrem, isso está sendo feito pela regulamentação do Poder Judiciário. Como se vê das recentes normativas do TJ/SP (Provimento 23/20) e do TJ/ES (Provimento 45/21), os delegatários tem sido considerado controladores de dados pessoais.
Tendo isso em vista, é esperado que os notários e registradores sejam instados a adequarem seus processos internos à LGPD, em respeito aos direitos dos titulares, o que pode ser feito tanto pelas corregedorias judiciais, quanto pela própria Autoridade Nacional de Proteção de Dados Pessoais (ANPD).
Mas outra perspectiva que até então não se viu em regulamentações ou mesmo comentários doutrinários é a consideração de que os delegatários, como pessoas naturais, também são titulares de dados pessoais.
Esse é precisamente, o objetivo do presente artigo, que busca delimitar o direito dos delegatários como titulares de dados pessoais – mesmo que no exercício da delegação – e de como a Resolução 89/21¹ do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) viola este direito.
2. o delegatário como titular de dados pessoais
A LPGD conceitua o titular de dados pessoais como “pessoa natural a quem se referem os dados pessoais que são objeto de tratamento” (art. 5º, V, LGPD). Nesse conceito são perfeitamente enquadrados notários e registradores. Afinal, são particulares em colaboração com o poder público que recebem a delegação de serviços notariais e registrais em caráter pessoal, na forma do art. 236, caput, da Constituição Federal.
Não se aborda aqui a vida particular de notários e registradores, que como quaisquer pessoas são protegidos em seus direitos como pessoas naturais, sendo titulares de dados pessoais, consumidores e cidadãos. Quando um delegatário possui seus dados tratados por profissionais liberais, empresas ou pelo Estado, está na posição de titular de dados pessoais como qualquer outra pessoa natural estaria.
O que se está a mencionar neste artigo é a possibilidade de considerar notários e registradores como titulares de dados mesmo no exercício de sua atividade pública para a qual foram designados.
Assim como um servidor público não deixa de ser uma pessoa humana – e, portanto, um titular de dados pessoais – apenas porque está inserido nas estruturas da Administração Pública, assim também o agente delegado não deixa de ser titular de dados pessoais apenas porque recebeu uma delegação de serviços públicos.
Existe, é claro, uma diferença nessas posições. Com efeito, a atuação do servidor público é encampada no seio de uma personalidade jurídica que lhe transcende, isto é, o ente estatal em que está lotado. Por isso, não há dificuldades em perceber que o servidor é um titular de direitos como outro qualquer, sendo a personalidade jurídica à qual se vincula a responsável pelos atos que ele pratica no exercício de suas funções.
Coisa diversa ocorre com notários e registradores, pois prestam serviços públicos em sua própria conta e risco, sem estar no bojo de nenhuma personalidade jurídica, sendo pessoalmente responsáveis em questões trabalhistas, administrativas, tributárias e criminais.
Nesse sentido, existe uma concomitância entre as posições de cidadão e prestador de serviços públicos, ou entre controladores e titulares de dados pessoais. Sendo assim, entende-se que, para fins da LGPD, delegatários são titulares de dados pessoais, mesmo que no exercício da função notarial e registral.
A conclusão acima pode parecer excessivamente teórica, mas fato é que acarreta uma série de considerações práticas. Uma delas é de que, em face do Poder Judiciário, os delegatários são também titulares de dados pessoais, merecendo proteção nesse sentido.
3. A violação dos direitos dos delegatários pelo CNJ
Tendo essas considerações em mente, veja-se o que decidiu o CNJ no âmbito do Ato Normativo 0007427-48.2018.2.00.0000, que os agentes delegados precisam compartilhar em seus sites informações sobre ganhos e gastos.
A decisão deu origem à Resolução 389/21, que altera a Resolução 215/154 para criar a seguinte obrigação dos cartórios “criar o campo “transparência”, para dele constar, mensalmente: a) o valor obtido com emolumentos arrecadados, outras receitas, inclusive eventual remuneração percebida pelo responsável pela serventia e b) o valor total das despesas”.
Com efeito, a resolução dispõe sobre o acesso à informação e a aplicação da lei 12.527/11 no âmbito do Poder Judiciário. A Resolução 215/15 tem como motivação a necessidade de publicizar as contas públicas a fim de garantir “a transparência, a acessibilidade, a integralidade e a integridade das informações referentes à gestão administrativa e financeira da coisa pública”.
A publicidade dos valores obtidos com emolumentos já é feita há muitos anos, no portal da transparência do CNJ. Portanto, a divulgação do faturamento da serventia nos sítios eletrônicos de cada serventia não seria um problema. A discussão que ora se faz diz respeito ao item “b” do dispositivo acima mencionado, que determina o compartilhamento o “valor total das despesas” do cartório.
Entende-se que a equiparação dos agentes delegados com órgãos do Poder Judiciário é equivocada. Ao contrário destes últimos, o titular de serventia confunde-se com a atividade que realiza, na medida em que a delegação recai pessoalmente sobre ele. Afinal, o regime de responsabilização pessoal do delegatário pelos atos praticados em sua atividade não o despoja de seus direitos fundamentais (como a privacidade).
Noutro viés, trata-se de uma ingerência desmedida do Poder Judiciário em relação à administração em caráter privado da serventia, prevista no art. 236 da CF, pois a publicização de todas as despesas da serventia necessariamente limita a liberdade do agente delegado em gerir a atividade com independência.
Ademais, equiparação em relação aos integrantes do Poder Judiciário não é uma situação justa. A publicidade feita a respeito do Judiciário recai sobre órgãos, não sobre as pessoas. Embora sejam divulgados seus vencimentos de servidores e magistrados, estes não precisam divulgar suas contas pessoais.
Comentando a resolução e o julgamento que lhe deu origem, a Associação Nacional de Notários e Registradores (Anoreg/BR) manifestou-se em nota oficial.
Pelo teor dessa manifestação, percebe-se que o corpo diretivo da associação também discorda do que foi decido pelo CNJ, tendo inclusive buscado intervir no julgamento para evitar prejuízos a notários e registradores.
Diante disso, entende-se que, no caso, o direito dos delegatários como titulares estão sendo violados pela Resolução 389/21, a partir de uma equiparação equivocada e injusta, que pode também afetar os direitos dos agentes delegados e sua independência funcional.