Carros largados em algum quintal ou abandonados na oficina, sem que o responsável apareça para buscá-los, acumulando licenciamentos vencidos e multas não pagas, parecem fadados a virar sucata.
 
Com o passar do tempo, os débitos podem facilmente superar o valor de mercado do veículo, inviabilizando, aparentemente, seu resgate e a respectiva regularização para que um dia volte a rodar.
 
Saiba que esses veículos “sem dono” nem documentos, cuja propriedade não é reivindicada durante determinado período, podem ser legalizados e ganhar novo proprietário.
 
O novo dono pode, inclusive, transferir a documentação para o próprio nome sem ter de arcar com o pagamento de nenhuma dívida administrativa relacionada a tributos, taxas e multas de trânsito não quitadas até então.
 
Dá para reivindicar a propriedade de um veículo nas condições descritas acima por meio da abertura de ação judicial de usucapião de bem móvel, explica o advogado Eduardo Malheiros, especialista em contratos e direito imobiliário.
 
Segundo o especialista, existem dois tipos de usucapião. O primeiro é ordinário, no qual se exige que o solicitante apresente justo título, ou seja, algum tipo de comprovação de que o antigo proprietário repassou o bem de boa-fé ao requerente há pelo menos três anos – não se trata da ATPV (Autorização para Transferência de Propriedade do Veículo).
 
O segundo tipo é extraordinário, que dispensa a exigência de apresentar o justo título, contudo requer a comprovação de que o carro está há cinco anos, no mínimo, sob a guarda do solicitante.
 
Essa modalidade é a mais utilizada para o regate e a regularização de automóveis sem nenhum documento e/ou com placa amarela, por exemplo, cuja transferência de propriedade costuma ser complicada. Por essa razão, tem sido a mais utilizada por colecionadores de carros antigos.
 
Posse do carro não pode ter contestação
 
“Independentemente do tipo de usucapião, exige-se que a posse do bem móvel seja mansa ou pacífica, ou seja, não tenha nenhum tipo de oposição. Além disso, o solicitante deve comprovar que detém o veículo dentro do prazo exigido de forma ininterrupta”, esclarece Malheiros.
 
Dessa forma, destaca o advogado, automóveis com comunicado ativo de roubo ou furto ou alvos de mandado de busca e apreensão, por atraso ou não quitação do respectivo financiamento, não são elegíveis ao ingresso de ação de usucapião.
 
“O solicitante precisa comprovar à Justiça que o veículo não se encontra nas situações descritas. Caso haja essas pendências, o prazo de três ou cinco anos não começa a ser contabilizado”.
 
Ao mesmo tempo, é natural questionar o que fazer com eventuais multas e outros débitos administrativos vinculados ao carro. Em geral, essas pendências, ainda que inscritas na dívida ativa, expiram dentro de cinco anos.
 
Mesmo que um ou mais débitos do tipo estejam vigentes, eles não são repassados ao novo proprietário, em caso de o pedido de usucapião ser deferido – destaca o advogado Pietro Toaldo Dal Forno, especializado em direito civil e professor da Fadisma (Faculdade de Direito de Santa Maria).
 
“Basta apresentar ao Detran a decisão judicial e solicitar a transferência de propriedade sem qualquer custo. Além disso, o novo dono recebe o bem sem nenhuma dívida”, pontua Dal Forno.
 
O advogado complementa, informando que, se houver alienação fiduciária e a última parcela do financiamento tiver vencido há mais de cinco anos, cabe pedido de usucapião – desde que não haja mandado de busca e apreensão.
 
Colecionador recorreu a usucapião para salvar Dodge
 
O colecionador paulista Alexandre Badolato, que tem o maior acervo de modelos Dodge nacionais do Brasil, é um adepto do usucapião.
 
Ele conta que já regularizou e restaurou dois carros da marca por meio desse instrumento jurídico e aguarda para que a posse de outros complete cinco anos, a fim de requerer a respectiva propriedade legal.
 
Um dos automóveis que ele salvou de virar sucata e hoje integram sua coleção é o Dodge Magnum 1981 que estava há muitos anos abandonado na oficina de um mecânico parceiro, já falecido.
 
“O dono nunca mais apareceu. Depois de seis, sete anos eu e esse mecânico decidimos dar entrada com ação de usucapião. Banquei todas as despesas do processo e combinamos que, quando o pedido fosse deferido, eu pagaria ao mecânico a diferença para inteirar o valor do carro. Deu certo, o documento saiu no nome desse parceiro e em seguida fizemos a transferência para o meu”, relata.
 
O outro carro “salvo” por Badolato via usucapião foi um Dodge Dart 1967 com fabricação norte-americana, que, segundo ele, pertenceu à frota da Embaixada da Argentina e cujo dono já tinha morrido, mas o veículo não foi incluído no respectivo inventário.
 
De acordo com o colecionador, o sedã estava abandonado em um pátio de Brasília (DF) quando ele decidiu comprá-lo para restaurar, em 2005.
 
“O Dart não tinha documento e o jeito que encontrei para legalizá-lo foi por usucapião. Peguei o recibo do vendedor e já reconheci firma, para começar a contar os cinco anos da aquisição. Trouxe o carro para São Paulo, entrei com o processo e iniciei a restauração”.
 
Um dos exemplares do Dart mais raros, do primeiro ano de produção nos EUA e anterior à nacionalização do modelo, em 1969, o carro hoje pertence ao acervo de Badolato e voltou à velha forma.
 
“Só não concordo que a gente deveria ficar ocupando os tribunais para tratar de carro velho e lidar com uma situação que poderia ser facilmente resolvida por meio de ato administrativo. Porém, é o que temos neste momento”.