A juíza de Direito do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ/SP), Aline Aparecida de Miranda, iniciou a carreira como Juíza Substituta da 44ª Circunscrição Judiciária, com sede em Guarulhos. Depois, foi Juíza Titular da Vara Única da Comarca de Itariri, quando, dentre diversas outras funções, exerceu a corregedoria permanente de três serventias extrajudiciais. Na sequência, foi promovida ao cargo de Juíza Auxiliar da Capital e, em seguida, atuou perante a 1ª Vara de Registros Públicos da Capital. Após quase dois anos na 1ª VRP, passou a atuar na 3ª Vara da Fazenda Pública da Capital, onde permaneceu até fevereiro de 2021, momento em que foi convocada para a assessoria da Presidência da Seção de Direito Público pelo desembargador Paulo Magalhães da Costa Coelho, onde está até a presente data.
Em entrevista exclusiva ao Jornal do Notário, a magistrada que assina uma coluna na nova Revista de Direito Notarial (v.3 n.1), explica como tem percebido o fluxo de processos no TJ/SP, discorre sobre como enxerga o papel do notário na aferição da manifestação de vontade das partes, analisa a importância do incentivo a discussões e estudos sobre a rotina dos notários e registradores no âmbito judicial e opina sobre o panorama das instituições jurídicas após a pandemia. “A transposição da atividade notarial para o campo virtual nunca se fez tão necessária quanto no cenário atual de obstáculos e adversidades impostos pela pandemia de Covid-19”, pontuou. “A Revista de Direito Notarial, por acolher a escrita de diversos profissionais dedicados ao tema, entrega ao leitor perspectiva variada e crítica sobre o assunto, o que fomenta a reflexão e amplia o conhecimento”. Leia ao lado a entrevista na íntegra:
Jornal do Notário: A senhora poderia nos traçar um breve relato sobre a sua trajetória profissional? Quando e como iniciou a aproximação com a atividade extrajudicial?
Aline Miranda: Antes de qualquer declaração, registro meus agradecimentos ao CNB/SP pelo convite a esse espaço de tanto prestígio. Sobre minha trajetória profissional, aprovada no 185º Concurso de Ingresso na Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, iniciei a carreira como Juíza Substituta da 44ª Circunscrição Judiciária, com sede em Guarulhos. Após, fui Juíza Titular da Vara Única da Comarca de Itariri, quando, dentre diversas outras funções, exerci a corregedoria permanente de três serventias extrajudiciais, o que me motivou a buscar mais conhecimento sobre os registros e as notas. Na sequência, fui promovida ao cargo de Juíza Auxiliar da Capital e logo tive a felicidade de ser convidada pela Dra. Tânia Mara Ahualli a atuar perante a 1ª Vara de Registros Públicos da Capital. Pela especificidade temática, nessa fase foi possível uma verdadeira imersão nos assuntos afetos à atividade extrajudicial. Além da rotina na Vara de Registros, era frequente o contato com registradores e notários, sobretudo nos eventos acadêmicos, como no tradicional Encontro de Direitos Reais, Direito dos Registros e Direito Notarial, realizado na Faculdade de Direito de Coimbra, em Portugal. Após quase dois anos na Vara de Registros Públicos, passei a atuar na 3ª Vara da Fazenda Pública da Capital, onde permaneci até fevereiro de 2021, momento em que tive a honra de ser convocada para a assessoria da Presidência da Seção de Direito Público pelo Desembargador Paulo Magalhães da Costa Coelho, onde estou até a presente data. De todo modo, meu contato com a atividade extrajudicial se mantém, principalmente no campo acadêmico. Conclui a pós-graduação lato sensu em Direito Notarial e Registral da Escola Paulista da Magistratura e em 2021 ingressei no Programa de Pós-Graduação stricto sensu da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, sob orientação do Professor Doutor Fernando Dias Menezes de Almeida, com projeto de pesquisa interdisciplinar de Direito Administrativo e Direito Notarial e Registral.
Jornal do Notário: Ao longo de sua carreira, como a senhora tem percebido o fluxo de processos no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo? Considerando que a Lei n° 11.441 já possibilitou a lavratura de quase 3 milhões de atos extrajudiciais desde 2007, qual o papel dos cartórios de notas para o desafogo do judiciário?
Aline Miranda: Percebo que a variação do fluxo de processos acompanha o ritmo das demandas que se impõem ou que se superam na sociedade em geral, ainda forte no Brasil a cultura da judicialização. O número total de atos extrajudiciais praticados até então é positivo, não se nega. Pelo indicador referido já é possível notar que quase 3 milhões de pleitos que poderiam ter sido ajuizados em foro de família e sucessões foram direcionados à via administrativa. Contudo, com as ressalvas aos obstáculos financeiros decorrentes das custas e emolumentos, noto que grande parte da sociedade ainda desconhece a via extrajudicial, sua celeridade e a multiplicidade de atos que comporta, o que demonstra a necessidade da expansão das informações sobre os serviços extrajudiciais, para que não mais se reduza a atividade notarial, por exemplo, ao reconhecimento de firma. O acesso a essa informação parece ainda escasso quando nos damos conta da ausência de lições específicas sobre atividade extrajudicial nas faculdades de direito. Quando muito, em regra, o tema notarial e registral apenas tangencia as disciplinas de direito civil e de direito processual civil, de modo a não se difundir esse conhecimento com a amplitude desejada, não obstante a edição de sucessivos textos legais que promovem a desjudicialização. A propósito, vale lembrar que, como sustenta o desembargador Ricardo Dip, o fenômeno da desjudicialização (ou, de forma mais precisa, a “desjudiciarização”, que significa excluir do Judiciário) não se confunde na essência com o desafogo do Judiciário. Respeitado o entendimento sobre tratar-se de objetivo ou justificativa da desjudicialização, entendo que a diminuição da distribuição de ações é consequência da desjudicialização, na medida em que, por esse movimento, o tratamento das situações não litigiosas é direcionado à “magistratura da paz jurídica” (exercida por notários e registradores públicos), permanecendo os litígios na magistratura judicial, ou seja, acomodam-se as situações nos terrenos em que, por sua natureza, devem mesmo estar. Assim, a redução de feitos desprovidos de litígio distribuídos no Judiciário é uma consequência, é um reflexo de se repousar cada demanda em seu devido lugar.
Jornal do Notário: Como a senhora enxerga o papel do notário na aferição da manifestação de vontade das partes?
Aline Miranda: A qualificação da vontade das partes é o coração da atividade do notário latino, pois é na qualificação que em maior medida se vale do exercício de sensibilidade como ponto de partida para alcançar, ao final, com a técnica e a prudência notarial, a segurança jurídica do ato, quando possível realizá-lo. Antes do aperfeiçoamento do ato notarial, o tabelião, mesmo na presença de advogado, dialoga, aconselha e assessora os interessados, de modo a examinar a viabilidade jurídica do que se pretende tutelar, negando-se à prática caso identificado algum óbice, como vício de vontade. O notário não é mero documentador, tampouco mero executor de comandos ordenados por particulares. Insubstituível por máquinas justamente em razão dos atributos da qualificação, o tabelião se empenha na interpretação das demandas e no exame do contexto em que apresentadas. Esse exercício sensível, cauteloso e prudente é o pilar da fé pública que recai sobre os atos notariais e sustenta a fé do notário, ou seja, o juízo de credibilidade que ostenta perante a sociedade. A meu ver, a qualificação é o que mantém a higidez do sistema notarial.
Jornal do Notário: Qual é a importância do incentivo a discussões e estudos sobre a rotina dos notários e registradores no âmbito judicial? Qual o papel da Revista de Direito Notarial (RDN) dentro dessa esfera?
Aline Miranda: Registradores e notários atuam na prevenção de litígios, enquanto os juízes atuam, em regra, na solução de litígios. Cada um em sua medida, assim, trabalha em prol da segurança jurídica, que é interesse do indivíduo e da sociedade. Por essa identidade, a aproximação entre juízes e delegatários da atividade registral e notarial pode resultar em diálogo profícuo ao alcance mais célere de soluções, sobretudo no que toca a questões que transpassam o judicial e o extrajudicial. Vale dizer que o exercício da corregedoria permanente não impede, de modo algum, a comunicação entre juízes e delegatários, no interesse público da prestação do serviço de modo mais eficaz e eficiente, pois o espaço de apuração de eventual irregularidade permanece preservado. Essa aproximação, além de tudo, aperfeiçoa as discussões e estudos sobre a rotina dos notários e registradores no âmbito judicial, pois amplia o conhecimento pelos magistrados dos desafios enfrentados na atividade extrajudicial, fornecendo-lhes norte para aprimoramento do tratamento regulamentar de operacionalização do serviço. A Revista de Direito Notarial, por acolher a escrita de diversos profissionais dedicados ao tema, entrega ao leitor perspectiva variada e crítica sobre o assunto, o que fomenta a reflexão e amplia o conhecimento.
Jornal do Notário: Diversas alterações adaptações foram necessárias no setor extrajudicial por conta da pandemia de Covid-19. A mais recente delas foi a Autorização Eletrônica de Viagem (AEV), que entrou em vigor no dia 2/8. Que avaliação geral a senhora faz dessas últimas novidades dentro da atividade notarial (e-Notariado)?
Aline Miranda: A transposição da atividade notarial para o campo virtual nunca se fez tão necessária quanto no cenário atual de obstáculos e adversidades impostos pela pandemia de Covid-19. Essa transformação, inevitavelmente, seria impulsionada pelo desenvolvimento tecnológico e pela adesão da sociedade às vias digitais. A realidade pandêmica, no entanto, acelerou sobremaneira o atendimento a essa demanda, pois não obstante as restrições impostas, a sociedade viva em nenhum momento deixou de buscar a continuidade das atividades econômicas e do movimento de mercado. Nessa esteira, a prática notarial a distância, como opção e não como única via, apresenta-se como passo de modernização e acompanhamento da instituição às transformações sociais. Cuida-se para que os atos praticados pela plataforma e-Notariado permaneçam revestidos de segurança jurídica, com a superação de obstáculos espaciais. A Autorização Eletrônica de Viagem, por exemplo, pode ser emitida de forma totalmente remota e apresentada de forma digital, no celular de um dos viajantes, sem obstar, por outro lado, a opção pela via tradicional e pelo documento impresso. A via eletrônica, portanto, vem como alternativa que se adequa ao ritmo de evolução tecnológica, sem subtrair do interessado a faculdade de valer-se dos meios tradicionais.
Jornal do Notário: A senhora acredita que o panorama das instituições jurídicas será permanentemente reestruturado após a pandemia?
Aline Miranda: Com o devido respeito a posicionamentos diversos, penso ser precoce, ao menos neste momento, a conclusão sobre reestruturação permanente das instituições jurídicas após a pandemia. A resiliência e a superação de obstáculos nos levaram a novas formas de organização do trabalho e da prestação dos serviços em geral, é verdade. Os esforços foram inúmeros e o empenho, sobretudo pelos setores de estrutura técnica e tecnológica, foi imensurável para que se viabilizasse a continuidade das atividades. Porém, analisando-se em contexto geral, não se perde de vista que muitas dessas inovações foram adotadas sem ampla discussão antecedente e sem estudos seguros sobre seus impactos na qualidade do serviço – o que não se mede necessariamente apenas a partir de números estatísticos de forma isolada. Parece prudente, portanto, aguardar a resposta da sociedade após a pandemia sobre a aceitação e a perpetuação, em tempos de normalidade, das novidades agora implantadas, para identificar se as instituições jurídicas serão, mesmo, reestruturadas.
Jornal do Notário: Como a senhora vê o futuro do notariado?
Aline Miranda: O notário continuará a ostentar a confiança da sociedade se permanecer em constante movimento, sem perder de vista as transformações sociais e as novas demandas. A atividade notarial, como ensina Leonardo Brandelli, é uma criação social e sua história se confunde com a história do Direito e da própria sociedade. Acrescento que deve desenvolver-se, portanto, em ritmo semelhante, absorvendo as novas tecnologias, com a manutenção de sua essência, sem perder-se no tempo.