A sociedade está mudando. As relações sociais parecem modificar-se de forma constante e as mutações no Direito de Família são a forma mais latente dessa volatilidade do modelo sócio-familiar.
A união estável, por exemplo, em um intervalo de meio século passou a contar com amparo constitucional, todo um aparato civil, distanciando-se cada vez menos do casamento. A título de exemplo, é recentíssima a decisão do STF em RE 878.694, na qual se considerou o artigo 1.790 do Código Civil inconstitucional, equiparando, para fins sucessórios, os direitos do e da cônjuge ao companheiro e à companheira, que passam a contar com mesmo índice de quota parte na partilha1. Aliás, as coisas são tão estranhas que no final de 1994 a companheira ou companheiro já tinha o mesmo direito sucessório do cônjuge por força da lei 8.971/1994.
Ainda, em que pese o Brasil ter diversidade cultural e religiosa grande, o casamento permanece como instituição extremamente relevante para as famílias, sendo considerado por alguns como pressuposto para sua formação. O número de casamentos até cresceu na última década, apesar das relações durarem menos2. Com isso, outro índice familiar surgiu: o número de casais com filhos que passaram a exercer direito de guarda, sendo que o compartilhamento cresceu, inclusive por força de imposição legal3.
Nesse âmbito familiar de tantas mudanças e mais do que inovações, adaptações, é natural que surjam novas formas de afeto e, por consequência, de relações familiares. Os exemplos são vários. Aqui também é bom mencionar que a palavra “afeto” é preceito jurídico indeterminado, semanticamente vago, muito embora se tenha adotado a conotação de que o afeto não é um sentimento, e sim um cuidado exercido de forma constante e individual.
O casamento homoafetivo finalmente passou a contar com respaldo jurídico e ampla aceitação sócia. Não obstante a resolução 175/2013 do CNJ, ter pouco mais de quatro anos, já foram contabilizados mais de 15.000 casamentos entre pessoas do mesmo sexo.
A poliafetividade, por sua vez, também adentrou na pauta jurídica, e apesar da suspensão da permissão para lavratura de escrituras declaratórias dessa união nos Tabelionatos de Notas, está na pauta do CNJ para análise de sua regulamentação4. Aliás, diga-se de passagem, se três ou mais pessoas procuram um Tabelionato de Notas ou advogado para regularem suas relações familiares, é porque na prática tal tipo de união tem ocorrido. Como já dito em outros artigos, estranho o CNJ querer regular a atuação do tabelião que por força do art. 6º da lei 8.935/1994 apenas formaliza juridicamente a vontade das partes, estando sob princípio da autonomia privada. Aliás, tratando-se de escritura declaratória, como pode o tabelião se recusar a lavrá-la? As partes podem querer, inclusive, apenas que o tabelião reconheça que estão juntas sem atribuir qualquer efeito jurídico.
Por fim, tem-se a paternidade socioafetiva, em que as relações obrigacionais passaram a ser as mesmas da paternidade biológica. Nesse sentido, a maior inovação, inclusive, foi com o reconhecimento simultâneo de ambas pelo STF5.
Esses são exemplos de como o direito tem atuado no acompanhamento dessas relações que, como dito, estão permeados por afeto. No entanto, nem sempre esse sentimento está presente e mais: nem sempre se quer que exista o vínculo afetivo, havendo somente uma conjugação de interesses para um fim comum, sem qualquer relação amorosa entre as partes. E como forma sui generis de se ilustrar, conta-se com a recentíssima coparentalidade.
A coparentalidade ou parentalidade responsável (coparenting) é a relação entre pais de uma criança em que ambos se apoiam na criação do menor e em suas funções de “chefes de família”, compartilhando o poder parental e dividindo funções sem que necessariamente haja equilíbrio entre elas. Nesse sentido, as atribuições de cada um podem ser estipuladas contratualmente, mas sempre com as partes em consenso.
Explicando dessa forma pode se assemelhar à situação de um casal separado. Mas aí está a principal diferença: não há e nunca haverá qualquer perspectiva de que haja vínculo entre os pais. Os dois inclusive se conhecem com o escopo único de procriar, mas com a ressalva de não haver relacionamento, unicamente para satisfazer a pretensão de ter um filho e contar com alguém que auxilie na criação6.
Na relação de coparentalidade, não há os aspectos românticos, sexuais, emocionais ou financeiros dos relacionamentos adultos. Há apenas relação de paternidade e/ou maternidade com a criança7. A prática usual é que as pessoas se conheçam de alguma forma, se relacionem e aí procriem. Na coparentalidade não há essa relação horizontal homem-mulher. Ambos estabelecem contato com o fim de procriar, por meio de concepção artificial ou natural.
No facebook podem ser encontrados pelo menos 4 grupos de coparentalidade com mais de uma centena de pessoas em cada um deles, sendo que um dos grupos conta com mais de 1.500 membros. Na descrição, todos apresentam um mesmo perfil: os que não encontraram um parceiro ou uma parceira para formar uma família. No entanto, não é o mesmo que produção independente, uma vez que nessa não há conhecimento ou vínculo algum com o parceiro, que será apenas o fornecedor do gameta para que seja realizada a produção. Ademais, na produção independente forma-se uma família monoparetal, já que o “fornecedor” de material genético não participa do processo de criação da criança. Na coparentalidade ambos participam do processo formador da criança.
Na coparentalidade ou parentalidade responsável e planejada, no entanto, como dito, há o vínculo, o que se revela, inclusive, como essencial. Isto porque, apesar de pai e mãe não terem relação afetiva alguma, ambos se relacionarão como pais da criança, convivendo conjuntamente, ainda que em residências separadas e sem qualquer espécie de afeto entre si. Por não haver vínculo emocional entre os ascendentes da criança, torna-se muito mais fácil e simples o processo de criação.
A ideia é realizar o sonho de ter um filho, sem a necessidade de buscar um relacionamento, e evitar conflitos inerentes à complexidade das relações familiares, tornando-as mais objetivas e atinentes somente ao menor.
Ainda, é visto como uma forma de resguardar o menor contra a alienação parental8, por exemplo, síndrome caracterizada pela manipulação nociva da criança por um de seus genitores, fazendo com que ela acredite que o outro não é bom para sua formação; tenha medo, e passe a nutrir sentimentos ruins pelo pai ou mãe.
Por não haver qualquer sentimento, como dito, entre os ascendentes que apenas se uniram com a finalidade da procriação, a referida síndrome de alienação parental fica descartada, na medida em que as partes previamente estabeleceram todas as regras para o bom desenvolvimento da criança, na medida em que apenas se uniram para esse fim. Logo, não haverá qualquer interesse de um dos ascendentes em denegrir a imagem do outro perante a criança. Ainda no mesmo sentido, a criança tem tudo para se sentir amada na medida em que é o epicentro da relação dos ascendentes. Ela não surgiu por acaso, como em muitos outros relacionamentos, e nem de maneira acidental.
A descrição do grupo com maior número de participantes na rede social é precisa: “Essa nova configuração familiar não se trata de produção independente, mas sim de uma parceria de parentalidade (coparentalidade) firmada entre um homem e uma mulher que tem o desejo de compartilhar o amor, educação e criação de uma criança em comum de forma extremamente planejada e responsável”.
A novidade traz consigo inúmeros questionamentos quanto à sua regulação pelo direito, na medida em que haverá uma simultânea família monoparental (art. 226, §4§/CF), sem qualquer relação jurídica patrimonial, alimentar ou de outra ordem entre os ascendentes, havendo regulação apenas de compartilhamento de guarda em relação à criança, além dos alimentos e outros efeitos próprios do poder familiar.
Sem adentrar nos aspectos sociológicos quanto à escolha mútua de “parceiro”, avança-se o debate para outro tópico bastante importante: os aspectos contratuais que podem reger essa relação, especialmente quanto à guarda, visitação e questões decisórias que incidirão na vida do filho.
O contrato deverá ser feito antes mesmo da reprodução, incluindo previsão quanto ao método, custo e outras especificidades pertinentes aos contratantes, por instrumento particular ou escritura pública. Alguns advogados entendem que deve ser feito na modalidade “contrato de geração de filhos”, para que se garanta mínimos direitos, como guarda compartilhada, registro da criança, sustento, convivência familiar9, entre tantos outros efeitos jurídicos que poderão ser analisados em outra coluna.
Vale ressaltar, contudo, que as disposições contratuais não representam garantia absoluta contra eventuais conflitos, por exemplo, no que toca à formação moral da criança. Pode haver, em certa altura, divergência quanto à religião que será sugerida à criança.
Isto porque em ocorrendo a judicialização, por haver menor, necessariamente contará com a intervenção do Ministério Público. Nos casos de guarda, alimentos, visitação, por exemplo, ou mesmo questões como mudança de escola, o juiz decidirá com base nos parecer de equipe multidisciplinar, bem como, com base no parecer do parquet. Isso não significa que o contrato ou a escritura de coparentalidade não tenha qualquer efeito, muito pelo contrário, denotando uma postura a ser assumida, inclusive no que toca à aferição da boa-fé, nos moldes do art. 422 do Código Civil. O juiz fará seu juízo com base também nesse documento, poderá analisar interesses externalizados nas disposições contratuais, o que outrora fora combinado e ponderará os fatos e provas, privilegiando sempre o melhor interesse da criança (art. 227 da Constituição Federal).
A coparentalidade é uma novidade em terras brasileiras, sendo que em outros países já é uma realidade. Além dos mencionados grupos em redes sociais, nos Estados Unidos já há um site com aplicativo, o Modamily10, que é voltado para pessoas solteiras que querem ter filhos e contar com a coparentalidade.
No Modamily as pessoas criam um perfil com foto e especialmente informações provenientes de um questionário que é dividido em estilo de vida, caráter e categorias de estilo de pais. Quanto mais perguntas a pessoa responder, o site garante a maior precisão para a escolha do parceiro a fim de propriciar uma melhor gestação e desenvolvimento da criança. Dessa forma, o site une os candidatos, que podem conversar, se conhecer melhore e verificar as verdadeiras afinidades, tudo visando o desenvolvimento harmônico da criança. Há ainda um pequeno aparato com links de leis e questões que devem ser estipuladas no co-parenting agreement, como a reprodução, parto, amamentação, vacina, escola, responsável inclusive por definir o cumprimento de obrigações econ^micas referentes à criança11.
Em suma, a coparentalidade já é uma realidade em alguns países do mundo e está adentrando as fronteiras da terrae brasilis. Ao direito cabe mais uma vez olhar cuidadosamente para a questão, seja pelo fato de envolver relações complexas, seja por ter uma criança em desenvolvimento como o principal agente nessa nova formulação familiar.
É possível concluir que o operador do direito deve estar atento às novas realidades sociais e fazer com que a norma jurídica venha a tutelar adequadamente essa nova opção e modelo de família para que a criança atinja o desenvolvimento integral e participe de uma melhor sociedade neste século XXI.
Fiquem com Deus!
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1 STF equipara herança em união estável com a de casamento.
2 Cresce número de casamentos, mas uniões duram menos, aponta IBGE.
3 Quanto dura em média um casamento antes do divórcio no Brasil?
4 Corregedoria analisa regulamentação do registro de uniões poliafetivas.
5 STF decide que pais biológicos e afetivos têm as mesmas obrigações com filhos.
6 Frizzo GB, Kreutz CM, Schmidt C, Piccinini CA, Bosa C. O conceito de coparentalidade e suas implicações para a pesquisa e para a clínica. Rev Bras Cresc Desen Hum 2005; 15(3):84-94.
7 Feinberg M. The internal structure and ecological context of coparenting: A framework for research and intervention. Parenting: Science and Practice 2003;3: 95-131.
8 A síndrome de alienação parental (SAP) é uma disfunção que surge primeiro no contexto das disputas de guarda. Sua primeira manifestação é a campanha que se faz para denegrir um dos pais, uma campanha sem nenhuma justificativa. É resultante da combinação de doutrinações programadas de um dos pais GARDNER, R.A. (1998). The Parental Alienação Syndrome (=A Síndrome de Alienação Parental), Segunda Edição, Cresskill, NJ: Creative Therapeutics, Inc. Disponível em
9 Revista Super Interessante aborda Coparentalidade.
10 Modamily.
11 Modamily.
Some of the situations that you might want to address might include:
1.Who will be present during labor and birth?
2.Will you have a natural birth or an elective C-Section?
3.How will you name your baby?
4.If the baby is a boy, will you circumcise him or not?
5.Will you vaccinate your baby, or not?
6.Will you breastfeed your baby and for how long?
7.With this in mind what will the custody arrangements be?
8.Will you hire a baby nurse or nanny?
9.Who is responsible for paying for what?
10.Will you send your child to a public or private school?