(O registro de imóveis e os títulos materiais inscritíveis: a hipoteca – parte 15)
 
Des. Ricardo Dip
 
796. O vigente Código civil brasileiro alude, em diversos dispositivos, à especialização da hipoteca (vidē arts. 1490, 1497 ꟷcaput e §§ 1º e 2ºꟷ e 1498). Por igual, já nosso Código civil anterior indicara várias vezes a necessidade de especializar-se a garantia hipotecária (cf. arts. 418, 819, 824, 828, 830, 839, 840 e 845).
 
Em ambos esses Códigos havia referência ao que se deve compreender fundamentalmente na especialização da hipoteca: lê-se no art. 1.424 do atual Código civil norma também abrangente do penhor e da anticrese que a eficácia da hipoteca exige declaração (i) do valor do crédito, sua estimativa, ou valor máximo; (ii) o prazo fixado para pagamento; (iii) da taxa dos juros, se houver; (iv) do imóvel dado em garantia, com suas especificações (cf., infra, a antecipadamente cônsona doutrina de Affonso Fraga). Não era essencialmente diversa a previsão do Código civil anterior, cujo art. 846 previa contivesse a inscrição hipotecária, além do nome, o domicílio e a profissão do credor e do devedor, (i) a data, a natureza do título, o valor do crédito e o da coisa ou sua estimação, assinada entre as partes, o prazo e os juros estipulados, bem como (ii) a situação, a denominação e as características do imóvel garante.
 
Estes preceitos moldam-se à tradição jurídica brasileira. Já ao tempo do Império, a Lei n. 1.237 (de 24-9-1864), depois de prever, com exceções, a exigência da especialização das hipotecas (§ 10 do art. 3º), indicara dever a hipoteca convencional “ser especial, com quantia determinada e sobre bens presentes”, vedando, expressamente, a seguir, as hipotecas gerais e incidentes sobre bens futuros (cf. art. 4º), ressalvadas, entretanto, as hipotecas legais em prol das mulheres casadas, dos menores e dos interditos. No § 11 de seu art. 3º essa lei reportou-se a ulterior regulamento quanto à forma da especialização, e no § 24 de seu art. 9º prescreveu que a inscrição das hipotecas convencionais e a das legais especializadas mencionasse, entre outros requisitos, (i) “o valor do credito ou a sua estimação ajustada pelas partes” e (ii) “a situação, denominação e caracteristicos do immovel hypothecado”.
 
Pelo Decreto n. 3.453, de 26 de abril de 1865, baixou-se o regulamento para a execução da Lei n. 1.237, do qual regulamento consta a instituição de um livro designado com o n. 2 destinado à inscrição das hipotecas convencionais e das hipotecas legais especializadas (cf. n. 2 do art. 13 e art. 26), livro este que se completa com outro destinado às hipotecas gerais ou privilegiadas anteriores à execução da Lei n. 1.237 (este livro denominava-se “auxiliar do n. 2” cf. art. 31). A imperatividade da especialização das hipotecas sempre salvaguardadas as exceções legais vinha também indicada no regulamento editado com o Decreto n. 3.453, cujo art. 119 dizia que, sob pena de nulidade, a quantia garantida por essa hipoteca devesse “ser determinada ou estimada”, além de a garantia exigir-se recaída “sobre immoveis especificados e existentes ao tempo do contracto”. Adiante, em seu art. 121, o regulamento dispôs consistir a especialização hipotecária (i) na determinação do valor da responsabilidade (o valor garantido) e (ii) designação dos imóveis dos responsáveis que ficam, pois, especialmente hipotecados (especialmente hipotecados, é dizer, de maneira específica, determinada, e não como que sujeitos à hipoteca geral).
 
Averbe-se que a mesma regulativa previa o procedimento judicial para a especialização hipotecária, procedimento iniciado “por meio de petição na qual a parte deve demonstrar e estimar o valor da responsabilidade, e designar e estimar o immovel ou immoveis que hão de ficar especialmente hypothecados” (art. 162), cabendo ao juiz tanto o arbitramento do valor da responsabilidade, quanto a avaliação do imóvel ou imóveis designados (id.; cf. ainda arts. 163 e 164), ao fim proferindo-se sentença (art. 171), em que está o juiz, além do arbitramento do valor da responsabilidade, obrigado a especificar “a denominação, a situação, e caracteristicos dos immoveis, que vão ser inscriptos” (at. 172).
 
Revogada a Lei n. 1.237 pelo Decreto n. 169-A/1890 (de 19-1), seguiu-se a edição de regulamento para executar-se a nova normativa, o que se deu com texto aprovado pelo Decreto n. 370, de 2 de maio de 1890. Prevendo o § 10 do art. 3º do Decreto n. 169-A que “as hypothecas legaes de toda e qualquer especie em nenhum caso valerão contra terceiros, sem a indispensavel formalidade da inscripção e especialisação”, o regulamento baixado com o Decreto n. 170, depois de anunciar, em seu art. 116, devessem “ser necessariamente especializadas para se poderem inscrever, e, inscriptas, valer contra terceiros, todas as hypothecas legaes, salva a hypothese do art. 195, paragrapho unico” (essa hipótese é a de dispensa de registro quando se trate de termos de tutela e curatela ou de bens de “diminuta importância e exíguo rendimento”), dispôs em seu art. 117: “A especialização consiste: § 1º Na determinação do valor da responsabilidade. § 2º Na designação dos immoveis dos responsaveis, que ficam especialmente hypothecados”.
 
Tem-se, pois, que, a despeito da precipitada (e não raro tumultuária) produção legislativa que se seguiu à inesperada proclamação da república no Brasil, em 1889, manteve-se, quanto à especialização da hipoteca, exatamente aquilo que já era consagrado na legislação imperial antecedente, ou seja, a determinação tanto do valor pecuniário garantido, quanto dos imóveis onerados pela garantia.
 
Ainda agora a Lei brasileira n. 6.015/1973 preserva, ainda que em caráter geral, os requisitos tradicionais para a inscrição hipotecária: assim é que exige (também) para o registro da hipoteca a indicação do “valor do contrato, da coisa ou da dívida, prazo desta, condições e mais especificações, inclusive os juros, se houver” (n. 5 do inc. III do § 1º do art. 176), e, como esse registro acorrerá à matrícula, nela se terá “a identificação do imóvel” (n. 3 do inc. II do § 1º do mesmo art. 176), além de sua adequada individualização no título correspondente (art. 225 da Lei).
 
797. A doutrina brasileira firmou-se nestes dois elementos.
 
Disse Lafayette que a especialização hipotecária tem por fins (i) “reduzir a responsabilidade garantida pela hipoteca a valor monetário, certo e determinado” e (ii) “individuar e estimar o imóvel ou imóveis sobre os quais tem de recair a hipoteca”.
 
Não diversamente ensinou Serpa Lopes, para quem os requisitos da especialização visam a “um duplo objetivo: a individuação do crédito e a do imóvel”, observando que isto permite “uma verificação imediata da responsabilidade pela qual o imóvel preferencialmente responde”, com o efeito de fomentar o crédito imobiliário.
 
De maneira mais estendida, Affonso Fraga observou que a especialização hipotecária, dizendo tanto respeito à obrigação principal, quanto ao imóvel prestado à garantia, exige, ali, que (i) se declare o valor da obrigação sua estimativa, (ii) o termo assinado para o pagamento e (iii) a taxa de juros, se estipulados; e, quanto à especificação do imóvel garante, disse Fraga que devam ser indicados (i) sua denominação, (ii) suas características, (iii) suas confrontações e (iv) sua situação.
 
Saliente é o relevo econômico da especialização hipotecária, qual a da “justa proteção do crédito, considerada em relação aos particulares e em relação do público”, designadamente propiciando “o conhecimento perfeito que se pode ter do valor disponível da coisa dada em garantia” (Serpa Lopes). Com efeito, a segurança jurídica resultante da adequada especificação do privilégio satisfativo de cada garantia hipotecária reflete-se benignamente não só no mercado imobiliário (ou seja, no âmbito das transações que tenham os imóveis por objeto), mas, diante do rotineiro comportamento de aversão ao risco (Steven Shavell), também no mercado de capitais (é dizer, na aplicação financeira com garantia hipotecária-Díez-Picazo).
 
Este relacionamento entre o valor do crédito garantido e o imóvel garante demanda ainda, contudo, avaliar (i) o tema da variação do crédito, quer a variação valorativa (p.ex., fluência de juros, tanto que estipulados, pagamentos parciais), quer a variação nominal (indexação ou, muitos raramente, desindexação), e (ii) o tema da extensão objetiva da hipoteca, porque o imóvel garante não é um bem estático, mas dinâmico, suscetível de modificações sejam naturais, sejam voluntárias.
 
Esses temas, de notório relevo jurídico e econômico, apresentam algumas complexidades.
 
Se, de um lado, parece que a variação valorativa do crédito curso de juros estipulados e pagamentos de parcelas seja, em geral, facilmente apreendida pela só consideração da incidência das taxas dos juros aplicáveis e a prova dos pagamentos parciais (mas esta confirmação de pagamentos nem sempre é isenta de dificuldades), já, de outro lado, a variação nominal do crédito é prenhe de problemas, sobretudo no ambiente de economias instáveis nas quais sejam comuns os fenômenos indexatórios (ao par dos menos frequentes quadros desindexatórios; cf. Omar Barbero, Jorge Peyrano, Gurfinkel de Wendy), definindo-se, a final (i.e., ao tempo do pagamento), a quantidade pecuniária das obrigações, tornando desvaliosa de fato ou quase isto a antiga distinção entre obrigações monetárias simpliciter (obrigações fixadas num dado quantum pecuniário) e obrigações de valor (em que se aponta um quid abstrato, mensurável em dinheiro in solutione, ou seja, quando do pagamento final). É intuitiva a percepção de que a labilidade do valor monetário interfira na relevância da hipoteca para o fomento do crédito, na medida em que haja a flutuação do quantum da dívida garantida, estorvo que se reduz, em princípio, mediante a previsão, legal ou convencional, dos indexadores aplicáveis, sem embargo de não se apartar de todo a dificuldade resultante dos custos (de tempo, dinheiro e incerteza) da intervenção judicial, mormente em períodos de sua propensão ativista.
 
Passemos agora ao exame do tema da extensão objetiva da hipoteca.