1. Introdução
A “lavagem” de dinheiro, codificada na Lei nº 9.613/98, é modalidade criminosa que visa à ocultação de bens, direitos e valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal. O tipo penal da “lavagem” elenca em seus parágrafos diversas condutas essenciais para a capitulação desse crime, sem que seja necessário, para ocorrer sua efetiva consumação, que circulem na economia os bens ilícitos dotados de licitude, bastando a simples ocultação ou dissimulação de sua origem ilegal.
A inserção dessa lei no ordenamento jurídico brasileiro, em 1998, foi reflexo da adesão do país à Convenção das Nações Unidas para Repressão do Tráfico Internacional de Drogas e substâncias entorpecentes, ocorrida na cidade de Viena, Áustria, em 1988. Os signatários dessa Convenção ficaram obrigados a tipificar a conduta de “lavagem” de dinheiro nos seus ordenamentos internos, criando legislação específica para isso.
Vale aqui um comentário sobre as divergências doutrinárias acerca da independência ou não do crime previsto na Lei de “lavagem” diante de seu crime antecedente que deu proveniência aos bens ilícitos. Parte da doutrina defende a não existência de um crime de reciclagem de capitais e que este seria o mero exaurimento do crime anterior, não configurando independência suficiente para suscitar novas capitulações, condenações e apenações para a mesma conduta . Contudo, outra vertente percebe como a complexidade em “Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal” basta para que se configure novo crime, que pode e deve gerar condenação independente . Fica aberta a discussão e a reflexão, e volta-se para a análise intentada.
No Brasil, além de serem tipificadas as condutas descritas no art. 1º da Lei 9.613/98, foi criado o Coaf – Conselho de Controle de Atividades Financeiras – no art. 14 desse mesmo dispositivo legal. O Coaf é a Unidade de Inteligência Financeira do país “com a finalidade de disciplinar, aplicar penas administrativas, receber, examinar e identificar as ocorrências suspeitas de atividades ilícitas previstas nesta Lei, sem prejuízo da competência de outros órgãos e entidades” . É o órgão para o qual as pessoas físicas e jurídicas descritas no art. 9º da Lei de “lavagem” devem encaminhar as informações acerca de operações realizadas perante elas, no exercício de suas funções profissionais, que possam caracterizar, em alguma medida, tentativa de ocultação ou dissimulação de bens, valores e direitos ilícitos.
Importante salientar que o Coaf não é uma Unidade investigativa; suas competências são as de “receber, examinar e identificar as ocorrências suspeitas de atividades ilícitas; comunicar às autoridades competentes nas situações em que o Conselho concluir pela existência de crimes de “lavagem”, ocultação de bens, direitos e valores, de fundados indícios de sua prática ou de qualquer outro ilícito; coordenar e propor mecanismos de cooperação e de troca de informações que viabilizem o combate à ocultação ou dissimulação de bens, direitos e valores. O §1º do art. 14 da Lei também atribuiu ao COAF a competência de disciplinar e aplicar penas administrativas nos setores econômicos, previstos na mesma Lei, para os quais não haja órgão regulador ou fiscalizador próprio.” Dessa maneira, os papéis investigativos e judiciais dos crimes de “lavagem” cabem ao Ministério Público e à Polícia Federal, não ao Coaf.
Ademais, a Lei nº 9.613/98 foi modificada em alguns aspectos penais, processuais penais e administrativos pela Lei 12.683/12. Como exemplo de importante alteração, tem-se a exclusão do rol de condutas originalmente taxadas no art. 1º da Lei de “lavagem”: com a revogação dos incisos do art. 1º, toda infração penal que levantar bens ou direitos ilícitos pode ser conduta antecedente de “lavagem” de dinheiro.
A alteração que mais interessa a esse trabalho é a inserção de novas pessoas físicas e jurídicas à subordinação ao Coaf, no art. 9º da Lei 9.613/98. Dentre elas, estão as Juntas Comercias e os registros públicos (inciso XIII), não incluindo os Cartórios de notas e os de protesto.
Verifica-se, então, que por estarem os “registros públicos”, a partir de 2012, elencados no inciso XIII, art. 9º, da Lei 9.613/98, sujeitam-se esses tanto às obrigações de encaminhar ao Coaf informações pertinentes quanto às sanções oriundas do não cumprimento de suas atribuições. Destarte, pode-se dizer que os Cartórios de Registro nacionais foram promovidos a auxiliares legais no combate à “lavagem” de dinheiro. Desenvolver-se-á, no texto que segue, ideias pertinentes a esse auxílio e à suas consequências.
1.1. Breves exposições sobre as alterações pela Lei 12.683/12
A alteração com maior pertinência ao desenvolvimento deste trabalho é a relativa ao acréscimo do inciso XIII, no art. 9º da Lei em comento, visto que trata dos Cartórios de registro. Contudo, outras alterações pontuais merecem aqui destaque pela sua importância na caracterização do branqueamento de capitais .
Fala-se do enquadramento do Brasil na 3ª geração de países com relação ao crime de “lavagem” de dinheiro, devido à exclusão do rol de crimes originalmente existentes no art. 1º. Os países de 3ª geração, nesse aspecto, são aqueles que consideram qualquer infração penal (crime ou contravenção) como passíveis de suscitarem bens ilícitos que possam acarretar “lavagem” de dinheiro. Já os países de 2ª geração são aqueles que, como o Brasil (até 2012), a Alemanha e Portugal, apresentam um rol taxativo de crimes que podem anteceder a conduta de conferir licitude aos bens ilegais. Por fim, caracterizam-se como de 1ª geração – chamados assim porque apresentaram as primeiras leis no mundo que caracterizam o crime em análise – os Estados que preveem apenas o tráfico de drogas como crime antecedente ao crime de reciclagem.
Sobre as alterações processuais penais, elencam-se, aqui, como interessantes modificações (no art. 4º) a permissão expressa da alienação antecipada de bens e o impedimento de bens mesmo após comprovada a licitude dos bens investigados, para reparação dos danos e para o pagamento de prestações pecuniárias, multas e custas decorrentes da infração penal. Ademais, nas palavras do Juiz Federal Márcio Cavalcante,
“O§ 1º do art. 4º previa que o sequestro e a apreensão deveriam ser levantadas (perderiam eficácia) se a ação penal não fosse proposta pelo Ministério Público no prazo de 120 dias. Essa previsão foi retirada pela Lei n. 12.683/2012. Isso significa que não existe mais prazo para intentar a ação penal, salvo se a medida assecuratória implementada foi o sequestro porque nesse caso o Código de Processo Penal estabelece prazo de 60 dias, dispositivo que deverá ter aplicação no caso dos processos por crime de lavagem considerando que não há mais regra específica na Lei n. 9.613/98.”
Há ainda alterações importantes na esfera administrativa, que é prevista na Lei de “lavagem” dos arts. 9º ao 17. No parágrafo 2º do art. 12 houve a permissão da tipificação culposa de infração administrativa por não envio ao Coaf de informações pertinentes a ações que possam caracterizar ato ilícito referente ao crime em comento. Portanto, todas as pessoas físicas e jurídicas subordinadas diretamente ao Coaf podem ser administrativamente sancionadas por esse não encaminhamento advindo de culpa stricto sensu. Tradicionalmente, discutia-se o dolo eventual nesse aspecto, utilizando-se da “Teoria da Cegueira Deliberada” . Entretanto, com o acréscimo expresso do termo “culpa” no art. 12, silenciou-se tal discussão no que concerne ao crime de “lavagem” de dinheiro.
Modificação polêmica pela Lei 12.683/12 foi o acréscimo do art. 17-D à Lei 9.613/98. Diz esse dispositivo que: “Art. 17-D. Em caso de indiciamento de servidor público, este será afastado, sem prejuízo de remuneração e demais direitos previstos em lei, até que o juiz competente autorize, em decisão fundamentada, o seu retorno.” Grande foi a discussão acerca da inconstitucionalidade dessa previsão de afastamento cautelar apenas por indiciamento (instituto penal que, pela não exposição de seus requisitos e formalidades no Código de Processo Penal, é pouco utilizado). Em verdade, houve uma Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta pela Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), sob o nº4911, com relatoria do ministro Ricardo Lewandowski , mas a análise aprofundada do mérito da questão não interessa para os fins deste artigo.
Finalmente, também em 2012 houve a inserção dos registros públicos como legalmente subordinados à autoridade do Coaf. Como já dito no tópico “1” deste trabalho, essa modificação trouxe a possibilidade de os Oficiais de registro serem administrativamente sancionados pelo não envio de informações à Unidade de Inteligência Financeira nacional. As sanções administrativas, por sua vez, estão previstas no art. 12 e envolvem a advertência, o pagamento de multa pecuniária e a cassação ou suspensão da autorização para exercício da atividade profissional. Sobre os notários, examinaremos neste artigo que a existência de uma central nacional de atos notariais e a comunicação das procurações lavradas por pessoas jurídicas à Junta Comercial já afasta a necessidade de sua inclusão desses agentes públicos no rol taxativo do art. 9º da Lei 9.613/98.
2. A previsão culposa e a possibilidade de assunção da posição de garantidor
Com a permissão da aplicação de sanção administrativa a atos praticados de maneira culposa pelos agentes taxados no art. 9º da Lei 9.613/98, abre-se a possibilidade de discussão de modalidade de “lavagem” de dinheiro por omissão imprópria das pessoas físicas e jurídicas elencadas na Lei. Esse tipo de conduta se caracteriza, de acordo com o art. 13, parágrafo 2º, do Código penal, pela existência do dever do agente de impedir o resultado, quando ele tenha por lei a obrigação de cuidado, proteção ou vigilância, ou de outra forma assumiu a responsabilidade de evitar o resultado, ou ainda que ele próprio crie o risco de ocorrência do resultado com seu comportamento anterior.
Excluindo a necessidade do dolo na ação, uma desatenção ao dever objetivo de cuidado de enviar informações ao Coaf, na esfera administrativa, associada ao art. 13 do Código Penal, pode caracterizar uma situação de omissão imprópria da pessoa que não fez o correto encaminhamento. Isso porque pode considerar-se que a “lavagem” de capitais só foi consumada pela ignorância do Coaf em relação às transações suspeitas ocorridas e não relatadas a ele (impedindo, assim, sua ação direcionada ao impedimento da continuação da realização da conduta criminosa), demonstrando-se um nexo de causalidade entre a omissão do agente e a consumação do crime.
Nesse sentido, forte é a discussão acerca da responsabilidade advinda da omissão relevante nos casos de compliance , que abrange tão somente as instituições financeiras e as empresas de capital aberto, não incluindo os registros públicos, objetos deste trabalho. Portanto, diante da escassez doutrinária nacional acerca do tema desejado, aplicar-se-á de forma analógica as ideias e os conceitos relativos à possibilidade de responsabilidade de garantidor no compliance.
Segundo Bottini e Badaró, a definição do dever de instituir mecanismos internos para “evitar a prática de lavagem de dinheiro” (nos termos do art. 10, III) estabelece apenas uma “obrigação de contribuir com as autoridades de investigação – sistematizando informações e informando atividades suspeitas – e não o dever de impedir práticas de lavagem” . Portanto, não haveria uma atribuição expressa, na Lei 9.613/98, do dever de garantia e do dever de se abster de praticar conduta que possa caracterizar o crime. Dessa forma, condutas que não sejam dolosamente comissivas não teriam o condão da caracterização criminosa. Na mesma linha, veja-se o seguinte aresto:
HABEAS CORPUS. PROCESSO PENAL. COMPETÊNCIA. JUSTIÇA FEDERAL. CRIME DE GESTÃO FRAUDULENTA DE INSTITUIÇÃO FINANCEIRA E “LAVAGEM” OU OCULTAÇÃO DE BENS, DIREITOS E VALORES. CONEXÃO. ARTIGO 76, INCISO III, DO CPP. ENUNCIADOS 122 DO STJ E 704 DO STF. AÇÃO PENAL.TRANCAMENTO. POSSIBILIDADE. INÉPCIA DA DENÚNCIA. (…) 3. Não se observa na narrativa ministerial a existência de qualquer indicativo de relação entre o paciente e as práticas de gestão fraudulenta de instituição financeira ou mesmo de sua eventual participação no crime de “lavagem” de dinheiro; inviável, pois, a instauração da persecutio criminis perante o juízo, se ausente aquele mínimo necessário de convicção do dominus litis – que se traduz, por óbvio, na apresentação, na peça vestibular acusatória, de indícios suficientes da autoria e materialidade; 4. Ordem parcialmente concedida para trancar a ação penal em relação ao paciente, no que toca aos crimes previstos nos artigos 4º da Lei 7.492/86 (“gestão fraudulenta de instituição financeira”) e 1º, inciso V e §4º, da Lei 9.613/98 (“lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores”), posto que, no ponto, mostra-se inepta a denúncia oferecida, nos termos do artigo 43, inciso III, do Código de Processo Penal.” (Grifos nossos).
Em sentido contrário, ensina Blanco Cordero que
“(…) se puede decir que los representantes ante ao SEPBLAC constituyen un eslabón esencial en la denominada cadena antiblanqueo, cuyo objetico esencial es prevenirlo y facilitar su investigación. Ellos son el origen de la presentación de las comunicaciones de operaciones sospechosas de estar vinculadas al blanqueo de capitales, y les corresponde una tarea de vigilantes de dicha cadena (gatekeepers) (Verhage, 2009 a, 119). Son ellos quienen deciden, desde su especial posición en la instituición, si se deben comunicar determinadas operaciones al SEPBLAC , lo que puede suponer el inicio de una investigación policial o judicial por la comisión de un delito.” (Grifos nossos.)
Nota-se que o penalista espanhol relaciona a obrigação de prevenir o crime ao superior hierárquico responsável pelas instituições subordinadas ao envio de informação à Unidade de Inteligência Financeira respectiva. Nessa visão, perfeitamente cabível seria a condenação por conduta omissiva imprópria em relação ao crime de “lavagem” desses responsáveis. Sobre esse ponto, proferiu a Ministra Carmen Lúcia a seguinte decisão, na qual elenca como uma garantia da ordem pública a interrupção de conduta criminosa:
A necessidade de se interromper ou diminuir a atuação de integrantes de organização criminosa, enquadra-se no conceito de garantia da ordem pública, constituindo fundamentação cautelar idônea e suficiente para a prisão preventiva. (HC n.95.024/SP, Primeira Turma, Relª Ministra Cármen Lúcia, DJe de20/2/2009).
Ainda nessa segunda argumentação, já entendeu o Superior Tribunal de Justiça que:
PENAL E PROCESSUAL. CORRUPÇÃO PASSIVA, LAVAGEM DE DINHEIRO, CRIME CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO. AÇÃO PENAL ORIGINÁRIA. LEI 8.038/90. DEFESA PRELIMINAR. RECEBIMENTO DA PEÇA ACUSATÓRIA. ATO DECISÓRIO. NECESSIDADE DE FUNDAMENTAÇÃO. NULIDADE. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA. PROVA PRÉ-CONSTITUÍDA DE INOCÊNCIA DO RÉU. TRANCAMENTO. (…) Comprovado de plano, por meio de prova pré-constituída, que o denunciado não mais era diretor-financeiro da empresa investigada, ao tempo das infrações narradas na denúncia, não pode ser responsabilizado por fato delituoso ao qual não deu causa. Inteligência do artigo 13 do Código Penal. (HC 29.937/RJ, Rel. Ministro PAULO MEDINA, SEXTA TURMA, julgado em 09/12/2005, DJ 11/06/2007, p. 378).
Veja que, neste caso, a não responsabilização do agente se deu por sua não ocupação do cargo de diretor-financeiro. Do contrário, se ainda ocupasse esse cargo, o denunciado seria passível de responsabilização por sua posição de garantidor assumida.
Importante salientar que o afastamento da possibilidade de condenação pela modalidade omissiva imprópria não interfere na tipificação da conduta por participação colaborativa na prática do crime.
Diante do exposto, na ausência de assentamento jurisprudencial acerca da possibilidade ou não de condenação por “lavagem” de dinheiro omissiva imprópria nos casos de pessoas elencadas na Lei (diferentes das instituições financeiras e das empresas de capital aberto), instaura-se a dúvida quanto ao tratamento do tema no caso concreto. Por essa insegurança jurídica, acrescenta-se – à opinião contrária à inclusão dos Cartórios de notas no rol taxativo do art. 9º da Lei 9.613/98 – o fato de que tal inserção traria grande e desnecessária insegurança de atuação aos tabeliães (assim como já traz aos Oficiais de Registro). Essa não necessidade será explorada no tópico abaixo.
3. A função notarial
A função notarial apresenta, simultaneamente, várias características, constituindo função jurídica, cautelar, técnica, rogatória, pública e imparcial. É função jurídica, pois quem a realiza é um profissional do Direito. O notário tem a missão de moldar a vontade das partes à lei. Deve também zelar pela autonomia da vontade daqueles que o procuram, assegurando a igualdade, bem como a livre manifestação da vontade, devendo recusar-se a praticar o ato no caso de verificar que a vontade está eivada de algum vício . A função cautelar se manifesta na prevenção de futuros litígios, evitando demandas sobre o assunto objeto do ato no qual ele intervém, sendo importante instrumento de pacificação social. O notário, no exercício regular de sua função, previne os riscos que a incerteza jurídica possa acarretar aos seus clientes. A qualidade técnica refere-se ao respeito aos institutos jurídicos que regulamentam a matéria. A atuação do tabelião depende da perfeição do tecnicismo, exigindo conhecimento por parte do profissional dos institutos jurídicos e dos modos de realização do Direito: trata-se da observância da técnica jurídica. Trata-se de função rogatória porque o tabelião não pode agir de ofício, mas apenas se solicitado pelo interessado. Sobre a imparcialidade, é a característica segundo a qual o notário deve conduzir sua atividade com de forma a garantir a igualdade e eqüidistância de todas as partes envolvidas no negócio que reclama a sua intervenção, devendo essa imparcialidade ir além mesmo das partes, pois o notário tem um dever também perante terceiros não vinculados diretamente, dentre os quais o Estado. (BRANDELLI, 1998, p. 128 – 132)
A publicidade do ato notarial é aquela dada a pessoa determinada que possa ter algum interesse naquele ato, sendo denominada publicidade passiva. Nesse tipo de publicidade, o notário ou registrador aguarda o pedido feito pelo interessado e disponibiliza a informação mediante a expedição de certidões ou ainda, mais recentemente, mediante o lançamento de dados em centrais (no caso dos Notários, a CENSEC – Central Notarial de Serviços Eletrônicos Compartilhados ), onde tal informação resta disponível aos órgãos públicos ou às pessoas que dela necessitem.
Walter Ceneviva ensina: “A publicidade legal própria da escritura notarial registrada é, em regra, passiva. Está aberta aos interessados em conhecê-la, mas cognoscível por todos ante a oponibilidade afirmada em lei.” (CENEVIVA, 2014, p. 43)
Loureiro também esclarece que a publicidade é atividade que tem como objetivo a “cognoscibilidade”, afirmando que o melhor termo é cognoscibilidade e não conhecimento, porque o efetivo conhecimento dependerá da atitude e da vontade do destinatário em conhecer aquilo a que é dada publicidade. Assim, a publicidade assegura um conhecimento potencial, presumido. (LOUREIRO, 2014, p. 22)
A publicidade passiva contrapõe-se à publicidade ativa, em que o notário ou registrador age para dar publicidade geral, publicando em jornal uma informação. A publicidade ativa é a exceção em se tratando de registros públicos. Ceneviva esclarece que:
“Assim é com a publicidade do loteamento, prevista na Lei n. 6766/79 – Lei do Parcelamento do Solo Urbano, cujo art. 19 impõe a divulgação ativa do empreendimento, para assegurar aos terceiros o direito de impugnarem o pedido de registro. No mesmo sentido, a incorporação condominial (Lei n. 4.591/64 – Lei dos Condomínios e Incorporações, arts. 62 e 32, § 3º).” (CENEVIVA, 2014, p. 43)
A publicidade é um instrumento de garantia de eficácia dos atos notariais e registrais, oferecendo maior segurança ao que se acha produzido ou registrado, posto que, tendo sido lavrado ou registrado o ato, está ele à disposição de todos para conhecimento e conferência. (VELOSO, 2017, p. 114)
Com a existência da CENSEC, podemos afirmar que a cognoscibilidade do ato notarial está maior, sendo possível, por meio de acesso ao referido banco de dados, localizar um ato notarial lavrado em qualquer parte do território nacional.
Assim, tendo em vista as características da função notarial, podemos afirmar que somente deverá ser praticado um ato se o notário verificar que se trata de ato regular, conforme a lei, que não esteja eivado de nulidade e que esteja adequado à vontade das partes. Obviamente, podem existir ilicitudes que não sejam perceptíveis pelo notário, como, por exemplo, uma coação ou uma simulação da qual ele não tenha conhecimento. Nesses casos, a publicidade do ato garante que os interessados possam agir para afastar a ilegalidade.
4. Os Provimentos ns. 18, 42 do Conselho Nacional de Justiça no contexto do enfrentamento à “lavagem” de dinheiro
No ano da promulgação da lei 12.683, qual seja, 2012, foi emitido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) o provimento n. 18, que criou a CENSEC – Central Notarial de Serviços Eletrônicos Compartilhados, que tem como objetivos (elencados nos incisos I a V de seu art. 1º):
“[…]
I. interligar as serventias extrajudiciais brasileiras que praticam atos notariais, permitindo o intercâmbio de documentos eletrônicos e o tráfego de informações e dados;
II. aprimorar tecnologias com a finalidade de viabilizar os serviços notariais em meio eletrônico;
III. implantar em âmbito nacional um sistema de gerenciamento de banco de dados, para pesquisa;
IV. incentivar o desenvolvimento tecnológico do sistema notarial brasileiro, facilitando o acesso às informações, ressalvadas as hipóteses de acesso restrito nos casos de sigilo.
V. possibilitar o acesso direto de órgãos do Poder Público a informações e dados correspondentes ao serviço notarial.”
A atualização desse banco de dados deve ser feita quinzenalmente, de forma sistemática, pelos Tabeliães de Notas e Oficiais de Registro que detenham atribuição notarial (arts. 7º, 8º e 9º do Provimento n. 18), ficando sujeitos à fiscalização pelo Colégio Notarial do Brasil – Conselho federal (art. 14). Ademais, o acesso à CENSEC é livre, integral e gratuito, como disposto no art. 19 desse provimento, podendo ser estendido a “todos os órgãos do Poder Judiciário e do Ministério Público, bem como os órgãos públicos da União, Estados, Distrito Federal e Municípios que delas necessitem para a prestação do serviço público de que incumbidos.”
Percebe-se, então, que todas as informações referentes às transações realizadas nos Cartórios notariais são enviadas quinzenalmente à plataforma CENSEC. Portanto, a sujeição desses cartórios ao envio de informações ao Coaf, situação debatida neste trabalho, mostra-se desnecessária, vez que os dados lançados já podem ser acessados pelas autoridades de investigação da “lavagem” de dinheiro no país, quais sejam, o Ministério Público e a Polícia Federal, além da análise pelo próprio Coaf. Além disso, tais autoridades têm habilidade, conhecimento e treinamento superiores aos dos tabeliães para reconhecerem situações que possam caracterizar tentativa de “lavagem”. Com o acesso ao CENSEC, elas podem manusear os dados disponíveis de maneira muito mais hábil do que o simples envio de suspeitas proposto na Lei 12.683/12.
Além da criação do CENSEC, em 2014 o CNJ emitiu o Provimento n. 42 que “Dispõe sobre a obrigatoriedade do encaminhamento e da averbação na Junta Comercial, de cópia do instrumento de procuração outorgando poderes de administração, de gerência dos negócios, ou de movimentação de conta corrente vinculada de empresa individual de responsabilidade limitada, de sociedade empresarial, de sociedade simples, ou de cooperativa, expedida pelos Tabelionatos de Notas.”
A lavratura de procurações que outorgam poderes para terceiros (conhecidos popularmente como “laranjas”) no intuito de desvincular ações de administradores/gerentes de empresas (por vezes, inclusive, “empresas fantasmas”) que possam ser percebidas como ilícitas é prática delituosa comum entre aqueles que tentam concluir uma “lavagem” de dinheiro. Com a obrigatoriedade do encaminhamento dos tipos supracitados de procuração expedidos pelos Tabelionatos de notas, “no prazo máximo de três dias contados da data da expedição do documento”, a percepção de procurações fraudulentas é facilitada pela vinculação de dados oriundos das Juntas Comerciais com os dos Cartórios. Essa associação das informações nas Juntas pode evidenciar de forma clara situações que possam caracterizar “lavagem” de dinheiro. Portanto, frisa-se a não necessidade de subordinação direta dos Cartórios de notas ao Coaf, uma vez que o envio de dados às Juntas já se mostra eficiente e satisfatório para o combate desejado ao crime em questão.
Diante do exposto, sedimenta-se o entendimento sobre a não necessidade de subordinação direta dos Notários do país ao Coaf, posto que já existem comunicações de todos os atos praticados perante os Notários de todo o país, acessíveis pelos órgãos investigativos e analistas de dados descritos na Lei 9.613/98. Os Notários do Brasil já são parceiros do Estado na prevenção ao crime de lavagem de dinheiro.
Cabe, no entanto, solicitar que seja regulamentada a responsabilidade do Notário que está à frente do Cartório quanto ao lançamento dos dados na CENSEC, posto que se trata de função onde a troca de titulares é comum. Deve ficar claro que o novo Notário que assumir um cartório tem a obrigação de lançar na CENSEC, nos prazos previstos pelo CNJ, os atos por ele praticados . Os atos anteriores, que já deveriam ter sido lançados no sistema pelo Notário anterior, se não o foram, devem ser objeto de análise pelo Colégio Notarial do Brasil – CNB, e também pelo CNJ e pela Corregedoria do Estado-membro para que sejam adequadamente lançados no sistema, pois não é possível que um novo concursado se veja penalizado por obrigação que não é sua. De qualquer forma, esse ônus por lançamento de dados, se vier a ser atribuído ao novo delegatório, tem um custo alto e deve ser esclarecido quando do oferecimento do cartório a concurso público. Por outro lado, como o lançamento dos dados no sistema é essencial, deve haver um regramento específico para possibilitar que essa informação seja fornecida.
5. Conclusão
A “lavagem” de dinheiro no Brasil, reflexo da adesão do país à Convenção das Nações Unidas para Repressão do Tráfico Internacional de Drogas e substâncias entorpecentes, foi codificada na Lei nº 9.613/98, sendo o tipo penal correspondente à modalidade criminosa que visa à ocultação de bens, direitos e valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal. No Brasil, além de serem tipificadas as condutas descritas no art. 1º da Lei 9.613/98, foi criado o Coaf – Conselho de Controle de Atividades Financeiras – no art. 14 desse mesmo dispositivo legal.
Nesse trabalho foram examinados tanto o tipo penal da lavagem de dinheiro quanto a inserção dos “registros públicos” à subordinação ao Coaf, no art. 9º da Lei 9.613/98 de forma que estão sujeitos tanto às obrigações de encaminhar ao Coaf informações pertinentes quanto às sanções oriundas do não cumprimento de suas atribuições, podendo ser afirmado que os Cartórios de Registro nacionais foram promovidos a auxiliares legais no combate à “lavagem” de dinheiro.
Foi verificado que, no Brasil, qualquer infração penal (crime ou contravenção) são passíveis de suscitarem bens ilícitos que possam acarretar “lavagem” de dinheiro, sendo permitido pela lei (no art. 4º) a alienação antecipada e o impedimento de bens para reparação dos danos e para o pagamento de prestações pecuniárias, multas e custas decorrentes da infração penal.
Sobre a esfera administrativa, estudou-se a tipificação culposa de infração administrativa por não envio ao Coaf de informações pertinentes a ações que possam caracterizar ato ilícito referente ao crime de lavagem de dinheiro. Assim, todas as pessoas jurídicas e físicas subordinadas diretamente ao Coaf, inclusive Oficiais de Registro – inseridos na lei em 2012, podem ser administrativamente sancionadas por esse não encaminhamento advindo de culpa stricto sensu.
Por fim, tendo em vista as obrigações que já existem para os Notários em virtude dos Provimentos ns. 18 e 42, do Conselho Nacional de Justiça, concluiu-se que os Notários do Brasil já são parceiros do Estado na prevenção ao crime de lavagem de dinheiro, sendo, portanto, desnecessária a inserção dos Tabeliães no rol taxativo do art. 9º da Lei 9.613/98. No entanto, é preciso que seja regulamentada a responsabilidade do Notário que está à frente do Cartório quanto ao lançamento dos dados na CENSEC, ficando claro que o novo Notário que assumir um cartório tem a obrigação de lançar na CENSEC, nos prazos previstos pelo CNJ, os atos por ele praticados, mas que, os atos anteriores, que já deveriam ter sido lançados no sistema pelo Notário anterior ou pelo interino, se não o foram, devem ser objeto de um regramento específico para possibilitar que essa informação seja fornecida.
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