(Referência conclusiva sobre a principiologia registral)
666. Terminamos o que havíamos projetado para a primeira grande parte de nossos estudos sobre o direito registral imobiliário. Ultrapassamos já uma centena de artigos dedicados ao tema dos princípios registrais −ou, mais exatamente, aos princípios do registro de imóveis.
Parece agora oportuno, antes de passar à segunda parte desses estudos −que é relativa aos direitos reais−, fazermos uma pequena meditação conclusiva sobre o papel fundamental do conjunto dos princípios de que já tratamos.
O caminho de nossa meditação deve começar pelo aviso de que os princípios registral-imobiliários pouco têm a ver ou mesmo nada com a muito limitada e artificial construção da ideia de princípios jurídicos que Ronald Dworkin sustentou em sua tentativa −a meu ver, frustrada− de superar o normativismo então prevalecente.
Por mais se reconheça, com justiça e caridade, que Dworkin adversou o normativismo e, segundo alguns, foi até mesmo filiado a alguma espécie de iusnaturalismo −deontológico e construtivista (vidē, a propósito, o que pensa Rodolfo Vigo, no estudo “Una teoría distintiva ‘fuerte’ entre normas y principios jurídicos”), não se pode negligenciar o fato de que Dworkin, com seu neoprincipialismo, ficou a meio caminho de um renascimento da doutrina clássica do direito natural e terminou, muito possivelmente sem o querer, por tornar-se uma das fontes inspiradoras e referenciais do coevo hipersubjetivismo judiciário (em outras palavras, positivismo judicial, ativismo jurisdicional ou administrativo-judiciário etc.).
Chaïm Perelman, por muitos, observou, a propósito do tema e acertadamente, que, no day after da Segunda Guerra Mundial, teve-se com evidência palmar a falta de razoabilidade da equivalência entre direito e lei (normativismo cujo maior propugnador foi Hans Kelsen). Fez-se então voz corrente que dez entre dez juristas da segunda metade do século XX tinham por lema a expressão delenda Kelsen, e ainda antigos confessos positivistas, tal o caso expressivo de Gustav Radbruch, não puderam, disse Perelman, “continuer à déféndre la thèse que «la loi est la loi» et que le juge, en tout cas, doit s’y conformer” (Perelman, Logique juridique. Nouvelle rhétorique).
Mas ao reconhecimento de a lei injusta não ser direito −em verdade, a lei injusta sequer é lei, mas simples corrupção da lei (legis corruptio)− não seguiu um esperado consenso no reencontro de pilares metafísicos para estadear um regime objetivo e realista de distribuição do justo. Em vez de retornar à solidez do direito natural clássico, as tentativas de suplantação da estreiteza óbvia do normativismo kelseniano não passaram, em grande parte, de outras espécies de busca de normas não naturais ou, quando menos, não assumidas como naturais. E exatamente a abdicação de um expresso apoio dos princípios jurídicos em uma base metafísica −as rei naturæ, a natura rerum e as consequentes leges naturæ− levou a que, tal o caso de Dworkin, desses princípios como “normas elásticas” pudesse dizer-se que são também uma espécie de textualismo normativo combinado com o positivismo judicial.
667. Ora bem, há princípios entitativos −os que dizem respeito à constituição mesma dos entes−, gnosiológicos (princípios próprios do modo de conhecer) e operativos (que concernem ao agir e ao fazer), princípios que são emanantes da natureza das coisas.
Esses princípios −exatamente porque não dependem da subjetividade humana, senão que emergem da realidade objetiva e de modo universal− constituem o derradeiro e mais firme dos pilares da res iusta.
Já Aristóteles, nas sábias páginas do livro V de sua Ética a Nicômaco, assentara que o direito e a lei podem ser naturais ou positivos; aqueles, os naturais, tendo em toda parte a mesma força e não se sujeitando às opiniões humanas (1.134 b 20 et sqq.) são comuns a todos os homens, porque brotam da própria natureza. E, por isto, esse direito e essa lei −que se designam direito natural e lei natural− são válidos e obrigatórios para todos, anteriores e superiores a todos os pactos e a todos os convênios humanos, sejam acordos públicos, sejam acordos privados, porque aquilo que é comum a todos é exatamente “o conforme à natureza”, ou seja: aquilo que “por natureza é justo e injusto, ainda que, a propósito, não haja mútuo consenso ou acordo, tal como aparece dizendo a Antígona de Sófocles ser justo [por natureza], ainda que proibido [por lei positiva], enterrar Polinices” (Aristóteles. Retórica. 1.373 b 6-10).
668. Os princípios registrais de que tratamos até aqui, embora articulados frequentemente por autores positivistas (é o caso gráfico do emérito doutrinador que foi Jerónimo González), provêm do ius gentium (direito das gentes), quer dizer: de um direito que, sem embargo de plasmado sobre circunstâncias históricas e consistindo em uma dada mescla de preceitos naturais e positivos, é um direito “principalmente natural” (Santiago Ramírez), porque se infere de conclusões imediatas dos primeiros princípios da razão prática (mais exatamente, da sindérese) e são fruto de consolidação costumeira.
Daí que não se devam entender os princípios hipotecários ao modo ativista com que, não raras vezes, aplica-se o método dos princípios de Dworkin. E por igual não há fundamento razoável em alçar-se simples técnicas novas ao posto de novos princípios positivos para mesclarem-se aos que se consagraram no ius gentium, porque aquelas não são frutos maduros do costume.
Em resumo, o registro imobiliário −resultante benigno do notariado latino− não é um experimento súbito, mas uma entidade gestada ao largo de séculos. O registro de imóveis não é uma simples empresa nacional, a que legisladores, por mais bem intencionados hajam de supor-se, queiram dar um toque de peculiaridade e folclore. Estamos, diversamente, a tratar de uma instituição pública −ainda que não estatal−, de uma instituição vívida da comunidade, de um ente intermédio entre o estado e o indivíduo, corpo intermediário esse que tem uma função estruturante da sociedade política e dota-se de um significado modulador das ações sociais, com o dever de atuar normas expressivas de boa parte das exigências fundamentais da comunidade.
Daí que os princípios hipotecários sejam os alicerces que, recolhidos da caracterização histórica da instituição registrária −e, por isso mesmo, reconhecendo-se esses princípios como conaturais do registro de imóveis−, não podem ser naufragados aos talantes de desconstruções de turno.
O progresso que se espera obter nas entidades de registro público é só o próprio da aclimação às circunstâncias do tempo e do espaço concreto em que devam elas atuar, mas bem se advertindo que progresso não é sinônimo de qualquer mudança, progresso não é o equivalente ao slogan reiterado e falacioso de que “toda mudança é um bem”. Ao revés, a mudança legítima é apenas a dos atos e dos modos que circundam a substância, e mudança que precisamente se admite para conservar e melhorar a essência e não para aniquilá-la ou prejudicá-la (cf. Romano Amerio).
Tenha-se aqui o exemplo atualíssimo do “registro eletrônico”. O bom uso dos meios tecnológicos sempre foi −e a ainda o é− algo benfazejo à satisfação da praxis registral. Mas se esses meios são propícios a destruir os registros ou a desvirtuá-los de sua finalidade, já não se terá aí a consideração de seu “bom uso”. Esse “bom uso” é o que faz falta frequentemente às discussões sobre o tema. Muitos parecem exaurir a publicidade −é só disto que em larga parte das vezes se trata−, dizia eu: muitos aparentam esgotar a publicidade quanto aos recursos tecnológicos em referir-lhes os magnos atributos, seu papel de relevo na execução de tarefas técnicas, na elaboração documental, abdicando-se, no entanto, da análise da importante função prudencial que se assina aos registradores.
Bem se vê do que se cuida: os registradores e os notários não são simples mecânicos do direito, artífices de documentação, operários especializados em textualizar escrituras ou inscrever nos fólios; não!, não são e nunca foram calcadores de letras em papéis, nem catadores de teclas de máquinas de datilografia. Não podem agora converter-se em amanuenses eletrônicos, sem serem reduzidos à singela (e dispensável tarefa) de acrescentando sua proba assinatura a documentos eletrônicos, abdicarem de sua autoridade, porque a ratio essendi das notas e dos registros é a segurança jurídica e não a segurança documental.
Se é verdade, e é-o certamente, que a segurança documentária, na vida política, é uma parte potencial da segurança jurídica, esta última vai muito além daquela, porque a segurança jurídica só é verdadeiramente segurança quando se ordena a realizar o justo concreto, e saber, em cada caso, quid est res iusta −o que é a coisa justa− demanda a virtude da prudência jurídica; esta, por sua vez, não pode substituir-se pelo só fenômeno da existência documental, ou seja, pela mera confirmação de que um documento existe, de que foi rapidamente elaborado, de que foi econômico em gastos, de que foi cômodo na realização, de que está guardado nas nuvens, numa caixa-forte do Forte Knox ou numa cela do blockchain.
Sempre interessará saber, sempre enquanto o homem for animal racional, se, para além do an sit do documento (de sua existência), seu conteúdo é justo. E a justiça, ela não é virtude de robôs, não é qualidade de bits, não emana do jogo de algarismos, senão que se apetrecha pelo reinado da prudência e se realiza, caso a caso, pela reta disposição da vontade de cada homem.
Os princípios registrais são princípios do registro que, prestado humanamente, serve humanamente. São princípios para um humanismo registral, princípios para o bem comum dos que convivem na sociedade política.