Marília tem 16 anos e dois filhos. É casada há quatro anos. Sim, cara leitora e caro leitor, a sua conta está certa: ela se casou aos 12 anos. A adolescente acorda, faz o café, lava roupa, faz o almoço, alimenta os filhos. Aí começa tudo de novo porque, com a chegada da tarde, tem que lavar a louça do almoço, varrer a casa que as crianças sujaram e fazer o jantar para o marido. Marília é matriculada na escola, no período noturno. Vai quando dá. Muitas vezes já está cansada e prefere ficar em casa mesmo, nas palavras dela. Marília mora no interior do Maranhão.
 
Daniela reside na periferia de São Paulo. Engravidou, se casou e parou de estudar aos 16 anos. Queria ser dançarina. Até começou a estudar a arte, mas parou quando virou esposa, porque o marido dizia que mulher casada não podia dançar. O que as pessoas iriam falar? Ele acreditava que mulher casada tinha que ficar em casa e cuidar dos filhos. Foi o que Daniela fez.
 
As histórias de Marília e Daniela, contadas por elas mesmas no documentário “Casamento Infantil”, dirigido pela cineasta Bárbara Cunha e produzido pela ONG Plan International, confirmam a triste liderança do Brasil entre os países da América Latina quando o assunto é casamento infantil. No ranking mundial, o país ocupa o quarto lugar, perdendo apenas para Índia, Bangladesh e Nigéria. Aqui, 36% das mulheres brasileiras se casam antes dos 18 anos, o que significam 550 mil casamentos por ano de meninas de 10 a 17 anos: 65 mil dessas meninas têm entre 10 e 14 anos.
 
Números como os citados acima representam muito mais do que a palavra “casamento”. Representam também abandono da escola, maternidade na infância/adolescência e aumento da violência doméstica. Como afirmou a jovem Marília, a prioridade para a adolescente que se casa são as tarefas domésticas e os filhos. Quando a dedicação exclusiva à casa e à maternidade é uma escolha da mulher, que tem idade e condições para decidir, é legítima, não há o que discutir. Mas quando essa situação é imposta por uma série de circunstâncias, o resultado é o pior possível.
 
E não é de hoje. A feminista americana Betty Friedan, umas das pioneiras na luta pelos direitos das mulheres, já denunciava, em 1963, a domesticidade forçada e suas consequências malignas sobre as mulheres. Nas páginas do seu livro mais famoso e polêmico, “A mística feminina”, Friedan critica o mito da realização doméstica da mulher americana no pós-guerra, após um período de emancipação feminina.
 
Para escrever o livro, ela entrevistou donas de casa em todo o país e mapeou a “volta para o lar” da mulher que vivia nos Estados Unidos após a Segunda Guerra. O perfil que encontrou foi de uma mulher entediada e insatisfeita com a vida atrás de um avental. E olha que, na época e contexto em que a obra foi escrita, nem se falava em violência doméstica. Ou em meninas obrigadas a virar donas de casa por viverem em situação de extrema pobreza. Ou do sofrimento que essas adolescentes e crianças experimentam ao serem empurradas para uma vida que não escolheram.
 
A boa notícia é que o casamento de menores de 16 anos pode ser proibido no Brasil. O projeto de lei da Câmara 56/2018 foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça e vai a plenário em regime de urgência. Se for aprovado em plenário, vai direto para sanção presidencial. É de conhecimento de todos que muitos desses casamentos não acontecem na Justiça, de maneira formal. Mas a restrição jurídica representa um passo para coibir o casamento infantil e, por consequência, a evasão escolar, a gravidez na adolescência e a violência doméstica. Todo tipo de esforço é válido.