(Princípio da legalidade -Vigésima-sétima parte)
Des. Ricardo Dip
473. Antes de passarmos à tratativa da revisão do juízo de qualificação registral (para o quadro brasileiro, processo de dúvida do registro: arts. 198 et sqq. da Lei n. 6.015/1973), cabe articular aqui uns poucos parágrafos sobre dois temas: o da (comumente assim −e talvez mal− designada) categoria da “inconstitucionalidade superveniente” e o das antinomias no campo da “crise de legalidade”.
474. Ressente-se de alguma perseverante controvérsia na jurisprudência doutrinária e pretoriana o caráter que se deva reconhecer quanto à antinomia entre uma norma e outra que, sendo-lhe posterior (ius superveniens), seja de natureza constitucional.
É dizer que se trata da antinomia ou oposição entre uma norma constitucional sobrevinda a outra norma, seja esta última infraconstitucional ou constitucional.
A questão, em resumo, está em saber se há nesta hipótese uma inconstitucionalidade superveniente −que levaria, no plano da atuação do registrador, à inviabilidade de seu reconhecimento no território da qualificação− ou se, em vez disto, estar-se-ia diante de uma eficácia revogatória tácita, assim a que se exprime pelo aforismo lex posterior derrogat priori? Vale dizer que se trate de escolher entre dois critérios de exclusão do conflito normativo aparente: ou o da lex superior ou o da lex posterior.
A matéria é bastante controversa, mas, entre nós, consagradas discussões na Suprema Corte federal (p.ex., ADI 2, Relator o Min. Paulo Brossard; ADI 438, Relator Min. Sepúlveda Pertence, com ressalva de entendimento) desaguaram na prevalência da tese de que a lei posterior −ainda que seja a constitucional− tem o efeito de revogar a norma antecedente (ou, se assim se preferir, a eficácia de caducá-la), sem, todavia, render ensejo a um conflito de constitucionalidade. Adotou-se o critério de que é ao tempo a quo da vigência da norma infraconstitucional que se avalia sua compatibilidade com a normativa constitucional então contemporânea.
A discussão, portanto, adotada essa tese, situa-se no domínio de uma crise subconstitucional, de sorte que não se inibe possa o registrador reconhecer, no âmbito da qualificação registral, a revogação (ou a caducidade) da norma anterior oposta ao ius superveniens, ainda quando este seja de caráter constitucional.
475. Já se avista, pois −e por maioria de razão−, que as antinomias normativas não empolgantes, diretamente, de uma norma constitucional também se submetam à competência da qualificação registrária, de tal sorte que o registrador há de aplicar, na função mais típica de seu ofício −a de qualificação−, os critérios de direito posto quanto às revogações normativas (seja a derrogação, seja a ab-rogação), o que implica um juízo de suas vigência e eficácia, bem como, em dados casos, sobre um possível efeito repristinatório de normas antecedentes.
Para a situação do Brasil, tenha-se em conta o que dispõe a agora designada Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (antes: Lei de Introdução ao Código Civil), objeto do Decreto-lei n. 4.657/1942 (de 4-9) e da Lei n. 12.376, de 30 de dezembro de 2010.
Apontem-se, por sua importância em nosso tema, as disposições contidas nos três parágrafos do art. 2º dessa Lei de Introdução:
§ 1º- A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior.
§ 2º- A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior.
§ 3º- Salvo disposição em contrário, a lei revogada não se restaura por ter a lei revogadora perdido a vigência.
É manifesta a dificuldade que, muitas vezes, acompanha a verificação do efeito revogatório (ou de caducidade) extraível da aplicação da lei póstera, quando se trate de revogação tácita (§ 1º), ou de aferir a efetividade de regulação integral da matéria pelo ius superveniens (id., parte final do § 1º), ou ainda de cogitar do confronto entre uma norma geral e outra, anterior, especial (porque lex posterior generalis non derogat priori speciali), o que põe à mostra não só a complexidade da praxis de qualificação registral, mas também a necessidade de educá-la de modo paciente (trata-se da educação da virtude da prudência) e ainda a de julgá-la, moral e juridicamente, com adequado temperamento, uma vez que se move ela em terreno inçado de obstáculos e próprio da dialética, assim entendida, a parte da lógica que se movimenta no plano dos juízos e discursos prováveis.
(Peço licença para, em um rápido excurso, visitar matéria análoga, em que se desvela a necessidade de aferir cum granu salis o “erro” ou “ilegalidade” das decisões prudenciais, as de qualificação registrária inclusive. Trata-se de um julgado do Superior Tribunal brasileiro de Justiça –REsp 721.190–, em que se fez ver, com precisão, que, se toda ilegalidade encerrasse improbidade, seria “inafastável a conclusão inaceitável de que os errores in judicando e in procedendo dos magistrados implicam sempre e sempre improbidade, o que sobressai irrazoável”).
476. Passemos agora a cuidar ro tema do processo de revisão da qualificação registral, que, no Brasil, corresponde à dúvida prevista na Lei n. 6.015, de 1973.
Trataremos, seguidamente, embora de modo conciso, de responder às seguintes indagações:
(i) por que se usa aqui a expressão “processo de dúvida” e não, em vez disto, “procedimento de dúvida”, como parece ser predominante nas referências jurisprudenciais de doutrina e judiciárias?
(ii) Quais as acepções do termo “dúvida” no território do direito registral?
(iii) Qual a natureza do processo de dúvida: cuida-se de processo jurisdicional-contencioso, voluntário ou administrativo?
(iv) Qual a diferença entre “dúvida direta”, “dúvida inversa” e “dúvida doutrinária”?
(v) Deve falar-se em “revisão” ou “requalificação” no processo de dúvida?
(vi) Como se processa, em síntese, segundo o direito posto brasileiro, a dúvida direta, seja em sua etapa antejudicial, seja no Judiciário, incluso na fase recursória?
(vii) Destacadamente, é correta a afirmação de que a dúvida registral seja um processo documentário?
(viii) Com o advento do Código de processo civil brasileiro de 2015, persistem as razões que interditavam a preclusão das decisões interlocutórias no processo de dúvida registral, bem como a intervenção de terceiros na fase pré-sentencial do feito?
(ix) Admite-se o amicus curiæ no processo de dúvida?
(x) Pode julgar-se uma dúvida parcialmente procedente, em face da rejeição de parcela dos motivos da qualificação negativa original?
(xi) Por que podem o juiz, na sentença, ou o tribunal, no acórdão relativo ao processo de dúvida, acolher motivos para denegar o registro solicitado, mas não podem, entretanto, superar fundamentos de recusa registral com os quais concordou o suscitado?
(xii) Cabe recurso contra acórdão em processo de dúvida?
(xiii) Por que o processo de dúvida tende a debilitar-se, ao menos no que diz respeito à hipótese referente aos títulos de origem judicial?
477. Foi por meio do Decreto n. 3.453, de 23 de abril de 1865, que se instituiu o processo de dúvida registral no direito brasileiro:
Art. 68. Os officiaes do registro não podem examinar a legalidade dos titulos apresentados antes de tomarem nota da sua apresentação e de lhes conferirem o numero de ordem, que lhes compete em razão da data da mesma apresentação.
Art. 69. Tomada a nota da apresentação, e conferido o numero de ordem, o official, duvidando da legalidade do titulo, póde recusar o seu registro, entregando-o á parte com a declaração da duvida que achou para que esta possa recorrer ao Juiz de Direito (a ênfase não é do original).
Predominava, então, o conceito de “dúvida” em um sentido substantivo ou material −de recusa, negativa, denegação−, admitindo-se essa recusa pelo registrador “quér o titulo lhe pareça nullo, quér lhe pareça falso, ou sobre elle occorra qualquer duvida” (art. 74 do Dec. n. 3.453). Sublinhee-se que a normativa apontava para a ideia de um recurso judicial idôneo a solver o conflito instaurado quanto à inscrição pretendida (na mesma direção, o Decreto regulamentador n. 370, de 2-5-1890, art. 66).
O Código civil de 1916 pouco inovou no tema (art. 834: “Quando o oficial tiver dúvida sobre a legalidade da inscrição requerida, declará-la-á por escrito ao requerente, depois de mencionar, em forma de prenotação, o pedido no respectivo livro”), e o Decreto n. 18.542/1928 (de 18-12) previu que
Tomada a nota da apresentação e conferido o numero de ordem, o official, duvidando da legalidade do titulo ou de sua validade, poderá recusar-lhe registro, entregando-o immediatamente á parte com a declaração da duvida que achou para que ella possa recorrer ao juiz competente, averbando logo a entrega e a duvida, em resumo, no Protocollo e declarando no termo de encerramento diario o numero de linhas deixadas em branco no Protocollo para tal fim, a respeito de cada titulo impugnado (art. 207; já não se fala expressamente em recurso judicial: cf. art. 209, e muito relevante, neste Decreto, é a regra de que “a denegação do registro não impedirá, porém, o uso do processo contencioso competente” −par. único do art. 210).
Houve, na sequência, o interregno da estadualização −rectius: provincialização− do processo civil, emergindo, em 1939, o Decreto n. 4.827 (de 9-11), dispondo, em resumo,
− que o registrador “verificará a legalidade e a validade do título, procedendo ao seu registo, se o mesmo estiver em conformidade com a lei” (caput do art. 215),
− verificação essa que se havia de efetivar “no prazo improrrogável de cinco dias”, podendo exigir que o apresentante pusesse o documento “em conformidade com a lei, concedendo-lhe, para isso, prazo razoável” (§1º do art. 215).
− Com isto, “não se conformando o apresentante” ou não podendo satisfazer a exigência do oficial do registro, deveria ser “o título, com a declaração da dúvida, remetido ao juiz competente para decidi-la” (§1º do art. 215).
− Na linha de norma antecedente, “a denegação ao registo não impedirá, porém, o uso do processo contencioso competente” (par. único do art. 218).
Saliente-se que, nos termos também já enunciados no Decreto n. 18.542/1928 (par. único do art. 211), também no Decreto n. 4.827/1939 se previu que leis locais poderiam estabelecer recursos para as decisões do processo de dúvida, “sempre sem prejuízo do processo contencioso, a que os interessados poderão recorrer” (art. 220).
O Código de processo civil brasileiro de 1939 pouco inovou no tema da dúvida, mas, além de estendê-la ao campo do protesto de letras e títulos (art. 731), admitiu a convocação facultativa do promovente do registro de parcelamento (§ 3º do art. 345), o que acarretava o ensejo de um meio de prova oral no processo da dúvida (porque o fim desta previsão, no entender de Pontes de Miranda, era a tomada de depoimento pessoal do promovente do parcelamento).
Enfim, veio a Lei n. 6.015, de 1973, e à sua luz prosseguiremos versando o tema da dúvida registral.