Do regime de separação total de bens e sucessão em tempos de covid-19
Toda vez que me debruço para estudar temas ligados ao Direito ou mesmo à Psicologia, sempre me vem em mente a frase que costumeiramente uso em ambas as profissões: o Direito evolui como os fatos da vida.
Deste modo, esta proposta tem base em algumas leituras – referenciadas ao final -, que me propus a fazer tendo como objetivo primordial o estudo pontual do Regime de Separação Total de Bens quando não obrigatório; mas, o deliberado por livre disposição de vontade entre os cônjuges e suas consequências face ao Direito Sucessório.
De igual forma, o tecnicismo na escrita será o menor possível, pois o objetivo é que o texto seja de fácil entendimento por leigos ou por profissionais habituados ao trato com o jurídico.
Pois bem, o Regime de Separação Total de Bens, adotado por livre disposição de vontade entre os cônjuges, é aquele onde mediante pacto antenupcial ou em caso de contratos de uniões estáveis o casal opta pela incomunicabilidade total dos bens. O que equivale dizer, segundo Maria Berenice Dias, a “ausência de um regime patrimonial, pois o que existe são acervos separados”.
Segundo a mesma autora, o casamento não repercute na esfera patrimonial dos cônjuges, podendo cada um gravar de ônus real, ou alienar o seu patrimônio. Mas, a nossa reflexão vai além, pois, ainda que o patrimônio tanto anterior, quanto presente ou o adquirido futuramente de cada um não integre o do outro, há algo pontual no que respeita à sucessão.
Parênteses: em caso de sucessão, o cônjuge sobrevivente não poderá figurar como inventariante. Ponto a destacar, a obrigação alimentar (dever de mútua assistência) persiste; caso haja necessidade. Feche-se parênteses!
Retomando, o que se discute é a questão da autonomia da vontade, que em alguns casos já tem sido apreciada no sentido de sua relativização. O entendimento é o de que não se poderia reconhecê-la absoluta uma vez que seria inadmissível o enriquecimento de um dos cônjuges em detrimento do outro pois isto não se compatibiliza com a “essência do casamento”, como sustenta Dias.
Ressalva seja feita que estas ponderações ainda estão ligadas a casos de dissolução da sociedade conjugal. Vamos adiante. Interessante posicionamento sobre o tema é anotado por Márcio Martins Bonilha Filho
Disto se depreende que podem os cônjuges, por escritura pública, manifestar o desejo de afastar a incidência da Súmula 377. Isto, converge com o preconizado pelo exercício da autonomia privada. Mas, isto como se pontuou nos casos de separação obrigatória.
Entendemos que na separação total de bens, a mesma aplicação da não incidência da referida Súmula possa se dar. Por livre opção dos cônjuges.
Se possível para o mais rígido, inexorável para o mais ameno. Pois está a se tratar de autonomia da vontade tanto quanto. De gestão de patrimônio individual. Fosse diversa a vontade dos nubentes, poderiam fazer a escolha do regime de bens de modo diverso.
Disto isto, adentramos na parte sucessória. A vida tem de encarar a morte. E o Direito regular as questões relativas à ordem sucessória. Pois bem, dentro deste sistema, como fica a posição do cônjuge sobrevivente em face dos herdeiros do falecido quando casados sob o Regime da Separação de Bens. Seja ela a Convencional ou a Obrigatória?
Detalhe: estamos, neste ensaio, focando tão somente em um determinado Regime de Bens. Importante salientar que o novo Código Civil estabeleceu que cônjuge e companheiro são herdeiros em concorrência com descendentes ou ascendentes, quebrando com a paridade entre cônjuge e companheiro, uma vez que prevê regras distintas. E, ainda, beneficiou o cônjuge e o companheiro em face dos ascendentes e descendentes, pois estes perderam pela subtração de parte da herança. E, além disso, a Fazenda Pública deixou de ser herdeira.
Pois bem, como pondera Oliveira Leite, o desejo das partes “consolidado no pacto antenupcial, inexiste dúvida quanto a intenção (…) na manutenção da mais integral separação de patrimônios durante e após o casamento.”
Ocorre que temos uma nova ordem de sucessão hereditária. E neste aspecto o ponto nevrálgico deste ensaio: se o cônjuge sobrevivente passa ou não a concorrer com os descendentes na herança!
Na separação obrigatória isto não se dá. Poderíamos concluir que no regime de separação legal ou convencional, estaria estabelecida a concorrência do cônjuge sobrevivente com os demais descendentes?
Decorre disto, o entendimento de necessidade premente de alteração na norma; ou ainda, de uma interpretação mais teleológica (levando-se em conta o seu fim prático), de se entender que a supressão do termo “obrigatória” levaria a concluir que estabelecido o regime de separação de bens pelos nubentes, o cônjuge sobrevivente de modo algum concorreria com os descendentes.
Não se deve olvidar que o Direito evoluiu para dar mostras que os afetos são mais valorosos que a consanguinidade. Porém, impende salientar que se os titulares de determinados bens detêm a certeza de que devem permanecer com determinada família; não há que se falar em priorizar o afeto em detrimento da consanguinidade. De outra forma todo um empenho muitas vezes de anos para a construção de um determinado aporte patrimonial foi sim povoado de muito afeto e por vezes mais desinteressado e desprovido de interesses que circundam as atuais relações líquidas.
Um pequeno recorte para ilustrar, proveniente do STJ – ministro Villas Bôas Cueva para dizer da necessidade de alteração no texto de lei:
Assim, trazemos o entendimento de Siqueira e Araujo Junior, “caso o regime seja o da separação total de bens, não (vislumbramos) correta a inserção do cônjuge nos herdeiros necessários, pois de forma expressa e manifesta, os cônjuges demonstraram sua insatisfação em conjugar e unificar patrimônios. (…) Entendemos haver uma incompatibilidade entre a lei e a vontade dos cônjuges, que neste caso deve prevalecer como exceção no direito de família e sucessório, pois ambos protegem a família e evitam possíveis fraudes ao sistema sucessório e a estrutura familiar.“
Já finalizando, o artigo 1.829 do Código Civil dispõe que:
Por exclusão, a concorrência somente se dá se a opção dos cônjuges for a comunhão parcial de bens (se o autor da herança deixou bens particulares).
E, neste sentido tem se direcionado a jurisprudência. Que não sendo o objetivo deste ensaio colacioná-la; finalizamos com o nosso entendimento de que o único regime que permite a concorrência do cônjuge sobrevivente com os herdeiros é o da comunhão parcial de bens quando o autor da herança deixou bens particulares.