Busca-se esclarecer, através da sistemática legal de incorporação de imóveis em pessoa jurídica, a inaplicabilidade do RE 796.376 na tentativa de legitimar a tributação de ITBI sobre a diferença entre valor histórico e de mercado
 
O Supremo Tribunal Federal, ao julgar o RE 796.376, fixou a tese de que “A imunidade em relação ao ITBI, prevista no inciso I do § 2º do art. 156 da Constituição Federal, não alcança o valor dos bens que exceder o limite do capital social a ser integralizado”.
 
Como este sintético enunciado de tese não explica com suficiência o entendimento adotado pela Suprema Corte nos autos do RE 796.376, diversos Municípios tem invocado este precedente para, aplicando-o em total desarmonia com seu real teor e com seus fundamentos, burlar a imunidade tributária prevista no inciso I do § 2º do art. 156 da Carta Magna.
 
Com efeito, muito embora a Suprema Corte nada tenha dito neste sentido, os Fiscos municipais tem recorrentemente utilizado o RE 796.376 para tributar a diferença entre o valor arbitrado pelos sócios para fins de integralização e o valor de mercado, venal, avaliado ou qualquer outro superior ao escolhido pelo contribuinte na incorporação imobiliária, impondo, assim, considerável limitação da imunidade de ITBI.
 
Urge, portanto, que a comunidade jurídica esclareça os aspectos envolvidos no tema de repercussão geral 796 e, desta forma, combata eventuais inconstitucionalidades na relação entre contribuintes e Fiscos municipais, sendo este o escopo do presente artigo, que buscará explicar, em suma, a sistemática legal de incorporação de imóveis em pessoa jurídica e o descabimento da postura adotada pelos Municípios em relação ao RE 796.376.
 
O Código Civil, ao tratar sobre o direito empresarial, fixa as regras gerais sobre a constituição de sociedades limitadas e faculta, no inc. III do art. 997 cumulado com o art. 1.054, que o capital social da empresa compreenda “qualquer espécie de bens, suscetíveis de avaliação pecuniária”.
 
Por este motivo, aqueles que pretendem constituir uma sociedade limitada podem escolher os bens que, em troca da participação societária a ser adquirida, transferirão para a pessoa jurídica a título de integralização de capital social.
 
Quando se opta por integralizar capital social através de bens imóveis, tem-se uma transmissão de propriedade imobiliária que, não fosse o art. 156, §2º, inc. I, da Constituição Federal, constituiria fato gerador de ITBI, conforme previsão do inc. II do art. 35 do Código Tributário Nacional.
 
Nesta hipótese, tem-se que os bens imóveis utilizados para fins de integralização deixam de compor o patrimônio do respectivo sócio, que, em contraprestação, passa a ter quotas da sociedade em quantidade correspondente ao valor da incorporação imobiliária.
 
Esta operação, conquanto imune de ITBI, causa relevantes efeitos fiscais, sendo o principal deles relativo à Declaração do Imposto sobre a Renda da Pessoa Física (DIRPF) do sócio que está realizando a integralização, na qual deixará de constar determinado bem imóvel e passará a constar quotas da empresa cujo capital social recebeu a propriedade imobiliária.
 
Ocorre que quando a integralização não é feita em dinheiro, cabe aos sócios estimar o valor dos bens conferidos ao capital social, conforme prevê o §1º do art. 1.055 do Código Civil. A própria doutrina ensina que “Se a integralização é feita pela conferência de bens, os sócios lhes atribuirão um valor estimado, não havendo a exigência da apresentação de laudo de avaliação, como ocorre na sociedade anônima (art. 8º da Lei n. 6.404/76)”.
 
Ora, como este valor de incorporação é atribuído pelos sócios, é possível que ele seja arbitrado em montante superior ao que consta na DIRPF do sócio que está realizando a integralização, de forma que este contribuinte, para o Fisco federal, terá obtido aumento patrimonial legalmente chamado ganho de capital, tributável via IRPF.
 
A título de exemplo, pode-se pensar em um contribuinte que, antes de integralizar capital social pela conferência de bens, declarava em sua DIRPF um imóvel de R$ 100.000,00. Nesta hipótese, se os sócios atribuírem este mesmo valor para fins de incorporação na pessoa jurídica, este contribuinte, em suas DIRPFs posteriores, apenas trocará R$ 100.000,00 em bem imóvel por R$ 100.000,00 em participação societária, sem obter, perante o Fisco federal, qualquer aumento patrimonial.
 
Se, por outro lado, os sócios pactuarem que o valor de incorporação do imóvel será superior a R$ 100.000,00, pode-se dizer que, para o Fisco federal, estar-se-á trocando um bem de R$ 100.000,00 por participação societária de maior valor, o que ensejaria o aludido ganho de capital, tributável via IRPF.
 
Neste sentido, a lei 9.249/95, nos §§ 1º e 2º do art. 23, dispõe sobre as formas com que uma pessoa física pode transferir seus bens a pessoas jurídicas em integralização de capital, a saber, pelo valor histórico (constante na DIRPF) ou por montante superior a ele:
 

Art. 23. As pessoas físicas poderão transferir a pessoas jurídicas, a título de integralização de capital, bens e direitos pelo valor constante da respectiva declaração de bens ou pelo valor de mercado.
 
§ 1º – Se a entrega for feita pelo valor constante da declaração de bens, as pessoas físicas deverão lançar nesta declaração as ações ou quotas subscritas pelo mesmo valor dos bens ou direitos transferidos, não se aplicando o disposto no art. 60 do Decreto-Lei nº 1.598, de 26 de dezembro de 1977, e no art. 20, II, do Decreto-Lei nº 2.065, de 26 de outubro de 1983.
 
§ 2º – Se a transferência não se fizer pelo valor constante da declaração de bens, a diferença a maior será tributável como ganho de capital.

 
Portanto, ao realizar a estimação de valor de integralização mencionada anteriormente, os contribuintes devem levar em conta os efeitos do dispositivo supracitado, sob pena de tributação via IRPF em razão do ganho de capital.
 
Ocorre que o valor dos bens declarados pelos contribuintes em suas DIRPFs parou de sofrer correção monetária a partir de 1º de janeiro de 1996, por força do por força do art. 17 da lei 9.249/95, de tal sorte que, por motivos legais, ele nem sempre corresponde ao verdadeiro preço de mercado:
 

Art. 17. Para os fins de apuração do ganho de capital, as pessoas físicas e as pessoas jurídicas não tributadas com base no lucro real observarão os seguintes procedimentos:
 
I – tratando-se de bens e direitos cuja aquisição tenha ocorrido até o final de 1995, o custo de aquisição poderá ser corrigido monetariamente até 31 de dezembro desse ano, tomando-se por base o valor da UFIR vigente em 1º de janeiro de 1996, não se lhe aplicando qualquer correção monetária a partir dessa data;
 
II – tratando-se de bens e direitos adquiridos após 31 de dezembro de 1995, ao custo de aquisição dos bens e direitos não será atribuída qualquer correção monetária.

 
Isto explica o porquê de os valores escolhidos pelos contribuintes para fins de incorporação de imóveis em pessoa jurídica serem inferiores aos valores venais, de mercado ou quaisquer outros apontados pelos Fiscos municipais. Não se trata de fraude ou evasão fiscal, mas de prática estimulada pela própria lei como forma de evitar a tributação por ganho de capital.
 
Não obstante, os Municípios tem desconsiderado esta legítima opção do contribuinte (incorporação pelo valor histórico) para, utilizando-se descabidamente do RE 796.376, queixar-se que os valores de mercado dos bens incorporados superam o custo das quotas integralizadas, de forma que o ITBI deve incidir sobre este excesso.
 
Todavia, conforme se passa a expor, a tese de repercussão geral em questão jamais autorizou que os Municípios, desconsiderando a legítima opção do contribuinte pela incorporação no valor histórico, tributassem ITBI como se a operação estivesse ocorrendo pelo valor venal ou mercado, que ultrapassam o capital social integralizado. Vejamos.
 
O RE 796.376, leading case do tema de repercussão geral nº 796, adveio do mandado de segurança 0003169-14.2010.8.24.0062, impetrado por Lusframa Participações Societárias Ltda. contra ato praticado pelo Secretário da Fazenda Municipal de São João Batista/SC.
 
A queixa da impetrante pode ser resumida no fato de que o impetrado deferiu apenas parcialmente a imunidade prevista no art. 156, §2º, inc. I, da Constituição Federal, alegando, para tanto, que a operação pretendida, que será esmiuçada a seguir, não está abrangida pela invocada limitação ao poder de tributar.
 
A análise dos autos do RE 796.376 revela que a operação ali discutida consistia em que os sócios da recorrente não apenas lançaram mão do direito previsto no art. 23 da Lei nº 9.249/95, mas também fixaram capital social inferior à própria soma do valor de incorporação dos respectivos imóveis.
 
De fato, naquele caso, enquanto o capital social da contribuinte totalizava a quantia de R$ 24.000,00, a soma do valor histórico dos respectivos imóveis perfazia o total de R$ 802.724,00.
 
Assim sendo, tem-se que o debate ocorrido no âmbito do RE nº 796.376 estava restrito à comparação entre o valor do capital social e o valor de incorporação dos imóveis, escolhido pelo contribuinte no exercício do direito previsto no art. 23 da lei 9.249/95.
 
Este excesso que, no final das contas, a Suprema Corte entendeu como tributável via ITBI, adveio do fato de que os sócios da Lusframa Participações Societárias Ltda, para adquirir a quotas subscritas por cada um deles, transferiam à sociedade imóveis cujo valor adotado para fins de incorporação superava o preço da participação societária adquirida.
 
Basta ler os autos do RE 796.376 para ver que, no contrato social da empresa recorrente, todos os sócios, para adquirir 4.000 quotas cujo preço totalizava R$ 4.000,00 (quatro mil reais), transferiam imóveis cujo valor por eles arbitrado para fins de incorporação superava o custo de referida participação societária, sendo que o numerário excedente integraria a sociedade a título de ágio. Isto inclusive constava no parágrafo quinto da cláusula quinta do contrato social da Lusframa Participações Societárias Ltda.
 
Ágio é uma das modalidades do que a lei 6.404/76 chama de reserva de capital, que pode ser conceituada como “valores recebidos pela companhia e que não transitam pelo Resultado como receitas, por se referirem a valores destinados a reforço de seu capital, sem terem como contrapartida qualquer esforço da empresa em termos de entrega de bens ou de prestação de serviços”.
 
Com efeito, o manual de contabilidade supracitado ensina que “Constam como tais reservas o ágio na emissão de ações, a alienação de partes beneficiárias e de bônus de subscrição. Essas são transações de capital com os sócios”.
 
No caso apreciado no RE nº 796.376, como o pagamento dos sócios pelas quotas da respectiva empresa superava o valor nominal atribuído a elas, o quantum excedente adentraria a empresa a título de reserva de capital, na modalidade ágio, que não se confunde, nem em termos contábeis nem em termos jurídicos, com os valores destinados à formação do capital social.
 
Há expressa previsão legal acerca disto no §2º do art. 13 e do art. 182, §1º, alínea “a”, ambos da Lei nº 6.404/76, e também no já citado manual de contabilidade societária:
 
Na conta Capital Social, as ações devem figurar somente por seu valor nominal. O excedente, ou seja, a diferença entre o preço de subscrição das ações pago pelos acionistas à Companhia e o valor nominal dessas ações deve ser registrada em conta de reserva de capital4.
 
Assim sendo, quando os sócios decidem conferir à empresa bens cujo valor de incorporação é superior ao preço da participação adquirida, tem-se que eles não estão efetuando a realização de capital prevista no art. 156, §2º, inc. I, da Constituição Federal, mas criando uma reserva de capital, sendo que esta verba e aquela não se confundem para fins jurídicos e contábeis.
 
É imprescindível ter em mente a distinção entre as contas de capital social e de reserva de capital, pois ao se debruçar sobre o inteiro teor do v. acórdão proferido nos autos do RE 796.376, compreende-se facilmente que a Suprema Corte, longe de estar versando sobre a diferença entre valor de incorporação e valor de mercado (ou valor venal, atualizado etc), está tratando sobre o excesso decorrente da diferença entre o valor de incorporação e o capital social, o qual, como visto até aqui, adentra a empresa não a título de realização/integralização, mas na forma de reserva de capital.
 
Logo, tem-se que o RE 796.376 não está amparado na utilização, para fins de incorporação, do valor histórico do imóvel, que, invariável e inevitavelmente, é inferior ao valor de mercado ou venal. Até porque a escolha deste valor é um direito previsto no art. 23 da lei 9.249/95.
 
Foi em decorrência da diferença entre valor de incorporação e capital social (ágio destinado a formar reserva de capital) que foi fixada a tese de que a imunidade de ITBI “não alcança o valor dos bens que exceder o limite do capital social a ser integralizado”.
 
Quanto a isto, a leitura do voto do Ministro Alexandre de Moraes é deveras esclarecedora, pois ele explica que “O que não se admite é que, a pretexto de criar-se uma reserva de capital, pretenda-se imunizar o valor dos imóveis excedente às quotas subscritas, ao arrepio da norma constitucional”, que não menciona (portanto não abrange) o ágio realizado pelo contribuinte.
 
Portanto, se a operação pretendida pelo contribuinte não indicar a criação de uma reserva de capital, torna-se inaplicável o RE nº 796.376, cabendo aos Municípios reconhecer a imunidade de ITBI quando, independentemente do valor de incorporação, todo ele estiver destinado à finalidade mencionada no art. 156, §2º, inc. I, da Constituição Federal, ou seja, integralização de capital social.
 
Fica evidente, então, que o Supremo Tribunal Federal jamais firmou a tese de que a imunidade de ITBI não abrange a diferença entre valor de incorporação e valor de mercado (ou valor venal, atualizado etc), especialmente quando todo o montante se destina à realização de capital aludida no art. 156, §2º, inc. I, da Constituição Federal, sem ágio/formação de reserva de capital.
 
Logo, não se pode dizer, como pretendem alguns Municípios, que a tese firmada através do tema de repercussão geral 796 se aplica aos casos em que a totalidade do valor de incorporação imobiliária é destinada à realização de capital social, sem a formação de reserva de capital, mesmo que o imóvel apresente diferença entre valor de incorporação e de mercado.

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