Muitos pais ficam divididos entre assegurar um legado para os descendentes e realizar seus sonhos até o fim da vida
 
Tenho um amigo que superou um câncer, a viuvez, e agora, num novo relacionamento, quer aproveitar os anos que lhe restam – que espera que passem de duas décadas – para se conceder alguns prazeres, entre eles o seu preferido: viajar. É claro que isso demanda recursos, mas ele fez as contas e avalia que sua poupança será suficiente para viabilizar o sonho ao lado da companheira. A única questão é que os filhos provavelmente não receberão qualquer herança. Como estão bem encaminhados profissionalmente, meu amigo se sente confortável em não deixar um legado para a prole, mas resolveu não tocar no assunto por enquanto, porque não tem certeza se a decisão será bem acolhida.
 
Qual é o motivo desse silêncio estratégico? O cerne da questão é nossa dificuldade em falar de dinheiro com os filhos, mesmo que se trate do nosso, fruto de muito trabalho! Há celebridades que vieram a público dizer que não pretendem deixar uma fortuna para os herdeiros. Gente como o ator Daniel Craig, o cantor e compositor Elton John, o chef Gordon Ramsay e Mark Zuckerberg, criador do Facebook. Com seis filhos, o ídolo Sting já declarou à revista “Forbes” que todos precisam trabalhar (seu pai era revendedor de leite e, a mãe, cabeleireira).
 
No entanto, dado o volume de bens dessas pessoas, certamente haverá um espólio considerável para os rebentos. E quando estamos falando de uma quantia bem menor, mas que significaria um colchão de segurança para os filhos: somos moralmente obrigados a pisar no freio das despesas para assegurar o futuro deles? Trata-se de decisão muito pessoal e não pretendo fazer qualquer julgamento. Há pais cujo principal objetivo é garantir o maior patrimônio possível para seus descendentes. Outros estabelecem uma determinada idade como limite para ajudá-los, considerando que depois cada um deve ser responsável pelo seu sustento. Para os filhos, impossível negar, uma herança pode ser o caminho para abrir um negócio ou ter casa própria – há até os que pressionam os pais para adiantar sua parte em vida.
 
Como fica a questão do ponto de vista do Direito brasileiro? Foi o que perguntei a Maria Aglaé Tedesco Vilardo, juíza substituta de desembargador no segundo grau no Rio de Janeiro e também doutora em bioética, ética aplicada e saúde coletiva.
 
O que a lei brasileira prevê em termos de herança para os filhos? É obrigatório deixar o patrimônio para eles?
 
Os filhos herdam em preferência a todos os demais, concorrendo com o cônjuge do falecido. Quando morre alguém sem testamento, a herança vai para seus herdeiros. A lei determina que a metade dos bens da herança constitui a legítima, ou seja, a metade dos bens não é disponível para ser deixada por testamento para outras pessoas quando houver herdeiros necessários, isto é, pessoas que têm o direito de receber parte do patrimônio, como é o caso dos filhos.
 
É possível doar para instituições ou mesmo para outras pessoas, não beneficiando os filhos? Eles podem contestar judicialmente se se sentirem lesados?
 
Deixar parte da herança por testamento para instituições ou outras pessoas somente é possível até a metade dos bens e valores, pois a outra metade vai para herdeiros necessários, se existirem. Quem não tiver filhos, ou demais herdeiros necessários, poderá destinar seus bens para instituições ou outras pessoas em sua integralidade. A impugnação da validade do testamento pode acontecer no prazo de até cinco anos da data do seu registro.
 
Filhos que fazem pressão para que os pais adiantem sua parte da herança ainda vivos podem ser acusados de abuso contra o idoso?
 
O Direito não permite a “pacta corvina” ou o “acordo do corvo”, ou seja, veda expressamente que a herança de pessoa viva seja objeto de contrato. Entretanto, pode haver doação de até metade do patrimônio em vida para os filhos, o que será abatido quando ocorrer a sucessão. Isso será considerado um adiantamento da legítima, mas terá que haver renda de subsistência do doador, do contrário a doação será considerada nula. Tudo deverá ser feito por livre vontade do doador para não ser considerado abuso.
 
O que a senhora aconselha: deixar um testamento pronto, mesmo no caso de haver poucos bens?
 
O testamento é uma ótima medida para quem tenha algum patrimônio, deixando indicadas as pessoas que o proprietário dos bens deseja contemplar. É uma forma de organizar a vida patrimonial. Aliás, deixar por escrito os desejos para seu enterro, destinar uma quantia pequena para alguém ou para uma instituição, ou especificar para quem quer deixar os móveis da casa, roupas e joias de pouco valor poderá ser feito através do codicilo, que é um documento sobre disposições de última vontade.