SBGG Entrevista conversou com exclusividade com o Prof. Rui Nunes, médico português que lançou recentemente a obra “Diretivas Antecipadas de Vontade”. 

Coordenador do Programa Doutoral em Bioética organizado pela Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, em Portugal, e pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), Prof. Nunes falou à Sociedade sobre o assunto que dá nome a seu livro, o qual veio ao Brasil lançar em novembro de 2016 na sede do Conselho. 

Confira a seguir o resultado deste instigante diálogo sobre dignidade e respeito ao ser humano, sobretudo frente à perspectiva da finitude de sua vida. Prof. Nunes traz uma profunda reflexão sobre os motivos que ainda levam a morte a ser encarada como um tabu e reforça o motivo pelo qual a legalização do testamento vital se torna cada dia mais fundamental diante de um mundo em que cada dia mais a população envelhece.

SBGG Entrevista – Qual o propósito/objetivo da obra “Diretivas Antecipadas de Vontade”? 

O objetivo desta obra é duplo. Em primeiro lugar difundir os valores do respeito pela dignidade da pessoa e pela sua liberdade de autodeterminação, que se consubstanciam em muitos países civilizados pela possibilidade de efetuar uma diretiva antecipada de vontade – seja na forma de um testamento vital, seja através da nomeação de um procurador de cuidados de saúde.

Por outro lado, esta obra tem o propósito de divulgar no mundo lusófono, concretamente no Brasil, a experiência portuguesa e assim contribuir para a rápida legalização do testamento vital no nosso país irmão, se for essa a decisão soberana do provo brasileiro. Sempre defendi que a legalização do testamento vital é um enorme avanço civilizacional porque afirma uma nova ética social, a ética da dignidade.

Quais desafios considera ainda haver que dificultam o acesso da população em geral e, até mesmo, da classe médica e profissionais da saúde, ao conhecimento sobre o papel das Diretivas Antecipadas (testamento vital e nomeação de procurador)? 

A legalização do testamento vital é apenas o primeiro passo para a sua institucionalização e para a sua utilização prática. Pelo que é essencial, desde cedo, aumentar o conhecimento da população, seja  portuguesa ou brasileira, sobre o significado, alcance e objetivos do testamento vital.

Isso pode acontecer através de campanhas de sensibilização da opinião pública através da mídia, mas também na escola por meio de programas de educação para saúde que abordem estes temas sem qualquer tabu.

Por outro lado, é também fundamental mobilizar a classe médica para esta problemática através de uma mobilização para esta causa que, na perspectiva médica, será um importante auxílio na decisão profissional. Ou seja, as diretivas antecipadas de vontade vão permitir um exercício mais digno da medicina sem conflitarem com a independência que se exige à atuação profissional.

 

Hoje, no Brasil, as Diretivas existem por meio da resolução do CFM, que baliza a prática médica no País e o que neste caso reforça o Código de Ética Médica – que defende a dignidade e direitos dos pacientes também. Porém, ainda não há regulamentação por meio da força de uma Lei. Como avalia esta questão, Prof.? 

Creio que a recomendação do CFM foi uma excelente iniciativa e foi a melhor solução para um país de dimensão continental como é o Brasil. Isto é, a partir do momento que o CFM iniciou esta trajetória nada ficou igual porque os médicos brasileiros passaram a perceber que as diretivas antecipadas de vontade estão perfeitamente enquadradas com a ética médica, não sendo equivalente de modo algum, à prática da eutanásia.

Ou seja, lentamente os médicos vão entender este conceito e recomendar aos pacientes a execução de um testamento vital. Mais tarde será necessário aprovar pelos órgãos competentes uma lei específica na matéria, mas é muito importante que quando esse momento chegar a importância das diretivas antecipadas de vontade seja bem reconhecida e interpretada pelos médicos brasileiros.

No âmbito da terminalidade da vida: qual sua visão quanto à percepção do ser humano frente à morte? Por que ainda é considerado um tabu o “morrer”, em sua opinião? 

A morte é considerada um tabu por diferentes motivos. Primeiro porque as pessoas passaram a morrer não em casa, com a família e amigos como era tradicional, mas em grandes hospitais, excessivamente tecnológicos e desumanizados. Isto faz com que os jovens não conectarem com o fenômeno da morte e a considerem algo distante. Por outro lado também os médicos se distanciaram do acompanhamento de doentes na terminalidade da vida optando por especialidades médicas muitos sofisticadas e altamente tecnológicas, onde só o sucesso é aceitável. Médica e socialmente. Porém, o recente movimento dos cuidados paliativos está  a alterar esta tendência acabando com este que é o último tabu do século XX.

Como avalia a percepção atual do médico frente a um ser humano com algum agravo de saúde – de caráter já consolido irreversível? É ainda predominante o número de profissionais que frente a proximidade da morte ainda tenham isso como um “fracasso profissional” e por conta deste quadro tomem suas decisões baseadas em prolongar o tempo de morte, em lugar de vida – mas vida com qualidade para um paciente terminal?

Muitos médicos ainda olham para a morte como uma fracasso da medicina dado que a cultura predominante sobretudo no final do século XX era uma cultura triunfalista onde a medicina tecnológica era infalível prolongando a vida em sofisticadas unidades de cuidados intensivos. Mesmo a formação médica refletia esta realidade e raramente os jovens médicos adquiriam as competências necessárias para lidar com doentes terminais. O que originou, em muitas circunstâncias, práticas desumanas de prolongamento artificial da vida, sem qualquer qualidade, por isso mesmo apelidadas de obstinação terapêutica ou distanásia. E foi precisamente este prolongamento desumano da vida que originou a necessidade de se encontrar um novo enquadramento ético segundo o qual médicos e doentes pudessem encontrar uma solução adequada respeitando a autodeterminação da pessoa e o seu legítimo direito a efetuar escolhas no fim da vida.

Em um mundo em que o número de pessoas idosas irá sobrepujar o número de jovens qual é a importância de se conhecer e aplicar o Testamento Vital? 

A inversão da pirâmide demográfica é provavelmente o maior desafio das sociedades civilizadas no século XXI. Isto porque tem que se encontrar soluções plausíveis para uma convivência saudável entre distintas gerações. O testamento vital é um instrumento para afirmar a autonomia da pessoa mas, tem também a enorme possibilidade de recordar que todas as pessoas merecem o mesmo respeito, independentemente da sua idade. E que todas as pessoas devem poder determinar o seu futuro plasmando num documento escrito a sua vontade que deve ser judiciosamente respeitada. O testamento vital é, portanto também um instrumento de solidariedade intergeracional.

 

Podemos contextualizar o termo “bioética lusófona” com “bioética como visão de mundo, como modelo de sociedade e como espaço de respeito e tolerância”? 

Bioética é isso mesmo uma nova visão do mundo centrada na igual dignidade de todas as pessoas e no pressuposto de que todas devem ter a possibilidade de concretizar os seus talentos e capacidades efetuando escolhas livres e informadas. E o espaço multicultural da lusofonia está especialmente bem posicionado para promover estes ideais dado que pela sua abrangência geográfica, pelo número de pessoas que falam hoje a Língua Portuguesa em todo o planeta, e pelas caraterísticas indeléveis de uma cultura de tolerância e respeito pelos direitos humanos faz com que a bioética encontre na lusofonia o espaço ideal para se impor à escala global. Respeitando naturalmente as diferenças culturais de cada comunidade.

Em sua análise, qual a essência do conceito “morrer com dignidade e humanidade”?

Morrer com dignidade é morrer em paz consigo e com os outros. O que implica desde logo que o doente terminal possa efetuar escolhas na terminalidade da vida, escolhas consentâneas com a sua percepção de morte com dignidade. Mas a afirmação da autodeterminação pessoal não é o único elemento a considerar. No plano social morte com dignidade implica a criação de uma rede universal de cuidados paliativos para que todas as pessoas, independentemente da etnia, sexo, credo religioso, filiação política, ou nível de rendimento possam ter acesso a cuidados humanizados, profissionais e diferenciados no momento mais dramático das suas vidas. Morrer com dignidade tem, portanto, uma dimensão pessoal, mas também uma dimensão social e familiar.

O que é preciso avançar para alcançar este respeito, esta ética na hora da morte?

Em primeiro lugar é preciso mudar profundamente a mentalidade da população. Ou seja, passar a considerar-se a morte como algo de natural devendo os profissionais de saúde adotar uma atitude mais humana e portanto, mais digna perante os doentes terminais. Por outro lado o sistema de saúde deve investir nos cuidados paliativos considerando mesmo que este tipo de assistência deve ser considerado uma prioridade ética na saúde. Também, em ambientes culturalmente diversificados, deve proporcionar-se acompanhamento espiritual, eventualmente religioso, na hora da morte dado que para além da família e amigos, muitos doentes terminais desejam também uma abordagem espiritual e religiosa.

Como o sr. avalia estes 10 anos de parceria luso-brasileira? De que forma esta aproximação contribui para aperfeiçoar processos ligados à bioética? Sobretudo, a parceria instituída junto ao CFM? 

A fantástica parceria de uma década com o CFM revela várias coisas. Primeiro, que quando diferentes organizações, com distintas culturas, decidem cooperar conseguem-se resultados muito superiores aqueles que poderiam ocorrer individualmente. Isto porque um projeto de esta envergadura tende a otimizar aquilo que cada parceiro tem de melhor.  Segundo, que apesar do enorme oceano que separa os dois países estamos genuinamente ligados por laços históricos, culturais, e estratégicos o que faz com Portugal e Brasil sejam países irmãos na genuína aceção da palavra. Finalmente, com cerca de duzentos estudantes de doutorado envolvidos, será possível olhar para o futuro de um modo extraordinariamente otimista no sentido de criar o maior projeto na área da bioética à escala planetária e aí sim construir a verdadeira bioética lusófona. Deve ainda realçar-se, no plano das políticas públicas, que existem importantes sinergias que se traduzem em evoluções civilizacionais ímpares. Por exemplo, a nossa proposta de lei sobre o testamento vital foi determinante para a resolução do CFM nesta matéria e, por seu turno, a resolução do CFM sobre identidade de gênero é um marco importantíssimo em Portugal.

Como avalia que o partilhar de experiências ligadas à morte pode auxiliar as pessoas a compreenderem a importância da paliação neste processo da terminalidade com dignidade? 

A partilha de experiências – profissionais, familiares, pessoais – é algo de profundamente enriquecedor mas também de pedagógico. E tem o enorme potencial de sensibilizar todos os envolvidos para a importância da humanização da morte e naturalmente para a importância dos cuidados paliativos. Deve salientar-se que os cuidados paliativos representam no imaginário médico uma nova filosofia e não apenas uma diferente abordagem. Nova filosofia porque os pressupostos da medicina passam agora ser essencialmente promover uma morte com paz e dignidade e não a cura a todo o custo.

Por fim, o sr. teve alguma experiência pessoal com o tema? Alguém que na terminalidade da vida teve seu direito à dignidade de alguma forma usurpado por condutas terapêuticas que de nada ajudariam?

Como médico vivi frequentemente esta situação, felizmente menos frequente na atualidade. Mas não deixa de ser emocionalmente disrruptivo assistir a obstinação terapêutica medicamente fútil e eticamente desproporcionada. Foi esta experiência recorrente que me motivou para seguir dois projetos distintos. mas complementares. Primeiro a legalização do testamento vital como ferramenta de exercício da autonomia da pessoa. Segundo, a implementação dos cuidados paliativos enquanto método humano, digno e responsável de acompanhar o doente terminal. Mesmo quando é necessário recorrer à sedação paliativa terminal.