(Princípio da legalidade -Quarta parte)
 
Des. Ricardo Dip
 
311. No âmbito do princípio da legalidade registrária encontra-se o tema da formulação registral do direito −ou, mais exatamente, da determinação registral do direito.
É convincente o entendimento de Vallet de Goytisolo no sentido de que, melhor do que formular ou aplicar o direito, sua descoberta ou inventio importe numa determinação em concreto da coisa justa, ou seja: no reconhecimento do justo em um quadro real singular.
 
Mas para determinar −vale dizer, definir, demarcar, assinalar os termos−, repete-se: para determinar a coisa justa de um suposto concreto há não só um caminho (ou método) adequado, que passa pela meditação das normas (leis e costumes) e da jurisprudência tanto doutrinária, quanto pretoriana (incluída a administrativa), senão que, igualmente, esse caminho transita pelo caso, por sua diagnose (la diagnosis del hecho, de que falou Castán Tobeñas) −porque é no caso que se acha individuado o justo concreto, e é no caso que ele deve descobrir-se.
 
Esse caminho é o de uma larga via em espiral, em que se induz do caso às normas, deduz-se das normas ao caso, volta a induzir-se, torna a deduzir-se, etc., meditando-se sob a luz da natureza das coisas, da normativa posta, da doutrina e dos julgados, até chegar à “norma do caso” (regula casi, que é o happy end da complexa tarefa de qualificação).
 
312. Ora, isto implica não só a compreensão de caso (ou título) e norma, mas também uma interpretação, a que sucede, ao fim, a determinação do direito do caso. Trata-se, pois, de três operações, cada qual com suas complexidades: compreender, interpretar e determinar.
 
(Bem se vê, só com isto, que a tarefa de qualificação jurídico-registral é difícil, complexa, e que, sendo como é, no direito brasileiro posto, um dever, tem a seu favor a imunidade disciplinar, abstraídos o dolo e a fraude, porque, de não haver essa imunidade, a qualificação seria um dos mais infortunados dos negócios profissionais. Consta, a propósito, do volumoso Código de normas do extrajudicial paulista: “Os oficiais de Registro de Imóveis gozam de independência jurídica no exercício de suas funções e exercem essa prerrogativa quando interpretam disposição legal ou normativa. […] Somente será considerada falta disciplinar, a ser punida na forma lei, a conduta dolosa, ou praticada com imprudência, negligência ou imperícia” −item 9º do cap. XX).
 
O normativismo, entre seus muitos e graves erros, quase fez equivaler as noções de “compreensão” e “interpretação”, com desprezo da distinção clássica que remete o termo “compreensão” ao plano autônomo tanto da norma, quanto do fato, ao passo que a “interpretação” (hermeneia) consiste em mediar norma e fato.
 
313. Essa palavra grega, hermeneia, corresponde ao latim interpres, interpretis, e há quem acene, improvavelmente embora, a que aquele vocábulo derivaria da figura mitológica de Hermes, mensageiro ou mediador entre os homens.  Como quer que seja, verdadeira ou não essa referência da palavra hermeneia à figura mítica de Hermes, o fato é que interpres significava não só “intérprete”, “aquele que explica”, mas também “intermediário”, “medianeiro”: inter pres é o intermediário, o negociador entre partes .
 
Essa acepção −hermeneia, interpres como intermediário, o que faz o médio entre extremos−, além do sentido subjetivo (o sujeito que intermedeia os extremos), parece apontar a um significado objetivo sobre o qual se move o interpres: é a res que se trafica ou vende. Não seria por menos que pretium, pretii (preço) deriva também da mesma ascendência indo-europia (per e pret: vender, traficar) que gerou a palavra interpres.
 
Não surpreende, ante o forte influxo sacral nas sociedades primitivas, que, em sua formulação originária, a interpretatio revista, de maneira supersticiosa, as adivinhações das coisas futuras ou ocultas por intermédio de meios inidôneos a prognosticá-las ou revelá-las: o oráculo (a adivinhação por meio do ídolo), o pitonismo (mediante bruxos), a oniromancia (por meio de sonhos), o aruspício (pelo exame das entranhas dos animais), o auspício (pelo vôo das aves), o augúrio (pelo canto delas) etc. Também pode indicar-se como exemplo de interpretatio a astrologia judiciária da qual, ao lado de um modo adivinatório supersticioso, também se afirma outro, de influência corpórea −não, pois, diretamente sobre a inteligência, nem sobre a vontade, mas sobre as potências corporais, a saber: a imaginação, a estimativa e a memória. Isso mereceu até a consideração de pensadores cristãos: assim, S. Agostinho, na Cidade de Deus (Livro 5, cap. 6: “Não é totalmente absurdo sustentar que as influências dos corpos siderais possam, ao menos, produzir mudanças em nossos corpos”), e S. Tomás de Aquino, na Suma Contra os Gentios (Livro 3, cap. 84, n. 2.596): “…a disposição do corpo humano está sujeita aos corpos celestes. (…) os corpos celestes influenciam indiretamente no bom conhecimento intelectual”.
 
314. A interpretação por cuja etapa deve transitar a tarefa de qualificação registral tem, pois, de intermediar a norma (cujo significado se haja previamente compreendido) e o caso (cuja realidade, não menos, se haja antes bem compreendido), de tal sorte que a norma possa −como a régua da ilha de Lesbos− medir adequadamente os fatos, modelar-se a eles, para a eles retamente aplicar-se. [Essa régua de Lesbos está mencionada por Aristóteles, na Ética a Nicômaco −Bkk. 1137 b 31−, e consiste num aparato flexível, de chumbo, que pode dobrar-se emoldurando-se com a forma que lhe seja dada].
 
Aproveitemo-nos da analogia que Aristóteles apontou. A razão de ser dessa regra de chumbo, tanto isto se traslade para o plano do direito, está em que ela se adote quando um caso, no todo ou em parte, no substancial ou em seus acidentes e circunstâncias, puser-se à margem da enunciação geral de um dado preceito normativo. De sorte que, diante dessa omissão do legislador −é isto palavra de Aristóteles−, a determinação do justo do caso deve corrigir essa omissão, entendendo-se que o próprio legislador teria assim decidido se estivesse ali em face do caso submetido a juízo.
 
315. Este é exatamente o campo da equidade, ou seja, do justo concreto (aqui num conceito bastante sintético).
 
Pode alistar-se uma série de noções que, com maior ou menor sucesso, trataram de ensinar que coisa é a equidade (Vicente Ráo −que foi um dos maiores juristas pátrios− elencou inúmeros conceitos a este propósito, no magnífico O direito e a vida dos direitos), e não faltará que várias dessas noções possuam virtude para bem compreender-se a equidade, equidade de que também se pode dizer que é a sensatez na determinação do direito.
 
316. Mas, no que concerne de modo específico ao tema da equidade registral −ou, em outros termos, da possibilidade de o registrador atuar de maneira equitativa−, a questão se agudiza por seu confronto com as características próprias da função dos registradores: função de direito formal e de dação de segurança jurídica. (Abdiquemos neste capítulo de versar um sentido mais extenso de “equidade registral”, noção ampla inclusiva da prudência legislativo-registrária).
 
Pode ter-se aqui a tentação de negar, absolutamente, a equidade registral, esposando-se critérios legais rigorosos, rígidos, formalistas a outrance (para não dizer formularistas). Ou, ao revés, num extremo confronto, admitir-se o ativismo registrário, em que cada registrador faça a lei do caso (é dizer: a norma subjetiva, a norma da consciência moral, tornar-se-ia, então, objetiva).
 
Parece, todavia, que a melhor solução (alguém dirá: a solução de equidade) está em reconhecer um ponto intermédio, em que a norma posta não deixe de ter importância capital, mas em que não se desconheçam as circunstâncias de cada caso, de sorte que, em vez de encontrar uma resposta formalista e estritamente afeiçoada às letrinhas de uma dada lei, possa chegar-se a uma “justicia adaptada al caso concreto” (Castán).
 
317. E como isto pode ocorrer −e de fato ocorre− sem que o registrador viole a demarcação que lhe legitima as funções?
Ora, triparte-se a equidade, que pode ser secundum legem, præter legem e contra legem.
Ao registrador −pois que ele não detém poder jurisdicional− não compete o exercício da equidade corretiva ou contra legem (de mais a mais, em princípio, sequer ao juiz cabe iudicare de legibus, sed semper secundum vel præter leges).
 
318. Noutro ponto: o registrador, cuja função é, como visto, formal e assecuratória, obrigatoriamente calçada em norma posta, só pode exercitar a equidade præter legem ou integradora na medida em que a falta de colmatação de lacuna impeça cumprir-se uma pretensão de quem busca o registro (p.ex., uma lei, prevendo dado processo para registro não assina o prazo de eventual impugnação prescrita na normativa; neste quadro, o registrador, valendo-se de analogia ou de princípios informadores da ordem jurídica, elege o prazo omitido, porque, de não ser assim, não se poderia observar o principal, é dizer, o registro que a lei prevê).
 
Ao juiz, mais amplamente, admite-se e impõe-se oficiar essa equidade de integração (ou colmatação de lacunas), porque não pode o juiz deixar de proferir juízo nas demandas que lhe são oferecidas (incorreria em denegação de justiça). O registrador, contudo, só atua essa equidade præter legem no limite de um subsídio (ut in pluribus, para não dizer semper, procedimental) à observância de alguma norma cuja satisfação (correntemente, de fundo) reclame inevitavelmente o complemento.
 
319. Mais claramente, porém, incumbe-se o registrador do exercício da equidade secundum legem, quer na compreensão da norma e dos fatos, quer em sua interpretação, adotando ele os sentidos que, sem destoar dos textos normativos e da realidade das coisas, melhor correspondam, dentre vários significados possíveis, ao que for mais justo. Assim, pois, “compreender e interpretar segundo a equidade” é escolher, dentre sentidos diversos, mas possíveis, de uma norma, de um título, de um fato, aquilo que for mais razoável, aquilo que for o mais justo entre aqueles sentidos possíveis.
 
É lição de Francisco Suárez, no De legibus, que se as palavras do legislador induzirem injustiça ou outro absurdo qualquer, hão de considerar-se impróprias, procurando-se, ao revés, um sentido justo e razoável para elas (livro VI, cap. I, § 14).
 
Cabe, portanto, admitir, limitadamente, a equidade dos registradores, sobretudo na tarefa compreensivo-interpretativa; trata-se do arbitrium tabulariorum, com que eles, os registradores, podem (e devem) exercer prudentemente a missão de determinar o direito, não apenas formalmente in tabula, mas como expressão da boa sensatez da ordem jurídica.
 
E porque só de modo residuário e escasso pode estender-se ao registrador o exercício da equidade præter legem, a designação equidade registral reporta-se à equidade secundum legem, equivale a dizer: à, no registro, sensata compreensão e interpretação das normas e dos títulos (a isto deve acrescentar-se a espécie da não menos possível delegação normativa expressa de exercício de equidade pelo registrador).