O documento indica como uma pessoa gostaria de ser cuidada. É preciso vencer o tabu da morte e conversar com
 
A dúvida
 
Gostaria de fazer um testamento vital, mas tenho dúvidas sobre as informações que devem ser incluídas e sobre a validade do documento. Minha família e os serviços de saúde devem respeitá-lo? Luciana Silveira – São Paulo – SP
 
O testamento vital é um documento no qual uma pessoa pode declarar quais tratamentos quer ou não receber no final da vida, bem como suas preferências, vontades e valores. É um conjunto de orientações que indicam como essa pessoa gostaria de ser cuidada em um momento em que ela não puder mais relatar suas próprias vontades. A pessoa pode determinar que não gostaria que fossem feitos procedimentos invasivos que não alteram suas chances de cura. Entram nesse rol a entubação, a traqueostomia (abrir um orifício na traqueia para passagem de ar), sessões de hemodiálise (filtragem do sangue) ou reanimação após uma parada cardiorrespiratória. Como a eutanásia não é permitida no Brasil, não podem constar do documento procedimentos para causar a morte do paciente.
 
Como fazer
 
Qualquer pessoa pode redigir seu próprio testamento. O mais comum é que o recurso seja usado por pessoas já doentes. Mas pessoas saudáveis também podem redigir o seu. A única condição é que ela esteja de posse de suas faculdades mentais. Nesse processo, quem manda é o paciente. É possível buscar modelos disponíveis na internet, mas consultar um médico de confiança é fundamental: ele esclarecerá a extensão dos efeitos das decisões sobre a saúde. “O médico orientará o que deve ser escrito. Mas é o paciente quem vai escrever sozinho ou com o apoio dos familiares”, diz Douglas Crispim, médico geriatra e secretário geral da Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP). Para que ele tenha validade, deve ser anexado ao prontuário, uma ficha médica feita no momento do atendimento daquela pessoa no hospital ou no consultório médico.
 
Em teoria, o testamento vital é orientado por regras simples. Na prática, esbarra em um vácuo jurídico. No Brasil, não há legislação específica, com diretrizes sobre como proceder na hora de elaborar o documento. A única orientação vigente é uma resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) a respeito das “Diretivas antecipadas de vontade” – o nome oficial desse tipo de testamento. “A resolução do CFM não diz qual é o conteúdo válido, quem é que pode fazer, quais são os critérios formais. Se precisa ou não de testemunha, se precisa ou não registrar no cartório”, diz Luciana Dadalto, advogada especialista em Direito Médico e dona do portal Testamento Vital. Essa falta de especificações torna o documento frágil. “O que acontece no Brasil, hoje, é que, diante da lacuna legislativa, da inexistência de leis, o testamento vital existe em um limbo.”
 
Há também muito desconhecimento em torno do tema. Em 2011, o Centro Universitário São Camilo publicou um estudo que avaliou o nível de informação de médicos, estudantes de medicina e advogados sobre o documento. Foram 36% dos advogados conheciam somente de forma parcial o significado de “testamento vital”. E 37% dos médicos simplesmente não sabiam do que se tratava. No total, menos de um terço das pessoas entrevistadas compreendia plenamente o termo.
 
O resultado é que, com certa frequência, hospitais e médicos desrespeitam o documento. Crispim, da ANCP, presenciou casos desse tipo. O testamento vital de uma de suas pacientes não foi respeitado porque seus médicos nem sequer sabiam do que se tratava. “A paciente foi para uma unidade de emergência. Ela tinha o documento em mãos e uma carta do hospital onde eu a tinha atendido. Mesmo assim, sua vontade não foi respeitada”. A paciente foi colocada em um aparelho de respiração mecânica. Era um recurso regularmente usado em sua doença, mas desrespeitava sua vontade expressa no documento.
 
Questionar um testamento vital não deveria ser coisa tão simples. Segundo a advogada Luciana Dadalto, a validade do documento só pode ser posta em xeque em duas situações: “Quando ficar provado que, no momento em que redigia o testamento, a pessoa não tinha discernimento o bastante para tomar aquelas decisões. E quando o testamento vital tem um conteúdo contrário ao ordenamento jurídico”. Esse é o caso da eutanásia.
 
E a doação de órgãos?
 
Em tese, a pessoa pode declarar em seu testamento que que é doadora de órgãos.
 
Mas isso não garantirá que sua vontade será respeitada. No Brasil há uma lei específica (a lei 10.211 de 2001) que estabelece regras para a doação de órgãos de uma pessoa falecida. Ela restringe essa decisão ao familiar de primeiro ou segundo grau ou cônjuge. “Mesmo se sabidamente ele é um doador, se na hora a mãe ou o familiar que é o responsável legal por aquele corpo falar que não quer que doe, essa doação não é feita”, diz Claudia Wolf, diretora da Central de Transplantes Regional da Secretaria de Estado da Saúde. Por isso, conversar com os familiares para esclarecer sua vontade é fundamental. “O conhecimento antecipado dos familiares facilita a decisão nesse momento de desespero e de dor”, diz Cláudia. O mesmo vale para os outros procedimentos do testamento vital. Se a família compreende as razões e as aceita, pode reforçá-las para os médicos, que se sentem mais seguros, sem medo de processos, e podem tender a acatar as decisões do paciente.
 
Onde eu guardo?
 
Não é preciso andar com o testamento sempre consigo. Pode-se designar um esteja impossibilitada de se comunicar. Mas nem sempre essa solução é a mais prática. “Dependendo de como as coisas acontecem, eu não tenho essa pessoa no momento em que o paciente está no hospital”, diz Aline Dalmarco, responsável pela área de direito médico e da saúde da Nemetz & Kuhnen Advocacia. Por isso, Aline conta que algumas pessoas andam sim com o documento no bolso. “Os maiores desafios para eficácia de um testamento vital são garantia da sua validade e fazer as diretivas antecipadas de vontade chegarem ao conhecimento dos profissionais e da instituição de saúde no tempo oportuno”, afirma.
 
Não é preciso que o testamento vital seja obrigatoriamente registrado em cartório, mas o expediente tem sido usado. Com base nos dados fornecidos pelo Colégio Notarial do Brasil, entre 2010 e 2016, o número de testamentos vitais registrados em cartório cresceu, em média, 57% ao ano.
 
Fazer valer todos esses documentos poderia ser tarefa mais simples se houvesse um sistema unificado de prontuários médicos. Médicos e profissionais de saúde poderiam consultar o histórico de tratamento de cada paciente, com as informações sobre como a pessoa quer ser tratada no fim da vida.