Neste ano, em um dos mais relevantes julgamentos de Recurso Extraordinário sob o rito da Repercussão Geral no Supremo Tribunal Federal, aquela Corte decidiu por equiparar a união estável ao casamento civil para efeito de sucessão mortis causa. O ministro Luís Roberto Barroso atuou como relator nos autos do Recurso Extraordinário 878.694-MG. A Associação de Direito de Família e das Sucessões (Adfas) e o Instituto Brasileiro de Direito de Família (Ibdfam) funcionaram como “amigos da corte” (amici curiae) neste julgamento emblemático, que terminou por igualar os regimes sucessórios da união estável e do casamento.
 
O resultado, entretanto, não parece ter agradado os principais especialistas na matéria. Rodrigo da Cunha Pereira, presidente nacional do Ibdfam, assevera que tal entendimento redunda em uma interferência indevida do estado nas relações familiares, pelo que “acabou a liberdade de não casar”.[1] A presidente Nacional da ADFAS, Regina Beatriz Tavares da Silva, também reputa equivocado o entendimento do Supremo Tribunal Federal, especialmente por compreender que: “Se a Constituição determina que dois caminhos levam a um mesmo lugar, isto é, se tanto casamento como união estável formam entidades familiares, o legislador tem ampla margem para disciplinar cada um desses caminhos de modo a permitir que as pessoas que queiram atingir o destino — a constituição de entidade familiar — tenham à sua disposição alternativas reais, e não apenas aparentes, de caminhos a escolher.”[2]
 
Enfim, a mencionada decisão do Supremo Tribunal Federal terminou por desagradar os presidentes das principais entidades voltadas para o estudo do direito de família no Brasil. A Adfas interpôs embargos de declaração em relação às decisões pronunciadas sob o rito da repercurssão geral, para que o Supremo Tribunal Federal decida se o companheiro na união estável deve ser reputado como herdeiro necessário, e acerca da modulação de efeitos da decisão que determinou a aplicação do artigo 1.829 do Código Civil a sucessão dos companheiros. Interessa-nos especialmente analisar aqui o problema da modulação de efeitos nas decisões de controle de constitucionalidade das leis. O Supremo Tribunal Federal, como já afirmou o ministro Edson Fachin, é o tribunal guardião da Constituição, “considerando-se àquele o símbolo da unidade, da nacionalidade e da continuidade da comunidade. Tal função defensiva da Constituição não remete apenas à Corte Suprema. Indireta e genericamente, a cada organismo público e social, inclusive aos cidadãos, incumbe esta tarefa.”[3]
 
Esta “continuidade da comunidade” simbolizada por nossa “Suprema Corte” representa uma demanda por segurança jurídica, por previsibilidade das decisões; de modo a preservar a confiança dos cidadãos no Poder Judiciário. Os estudiosos do direito processual civil asseveram que tal desiderato pode ser alcançado por uma cultura de respeito aos precedentes.[4] O professor titular José Rogério Cruz e Tucci ensina que na cultura jurídica anglo-saxã, “paradoxalmente, as cortes de Justiça, em princípio, têm o dever de seguir o precedente não apenas quando imaginam estar ele correto, mas, ainda, quando entendem que o precedente emerge incorreto.” [5]
 
Além de garantir uma certa isonomia na prestação jurisdicional (porquanto evite que juízes “solipsistas” decidam “conforme sua consciência” de modo a gerar disparidades de julgamento em relação a casos semelhantes), o sistema de precedentes almeja também um dado grau de estabilidade, “talvez o valor do qual mais carece o Direito brasileiro, habituado a constantes viradas jurisprudenciais, e também com o caos de entendimento dos tribunais intermediários. Não raro, a dissonância persevera nas próprias turmas de tribunais superiores.”[6] Em relação ao julgamento sob análise, a discrepância entre o entendimento anteriormente adotado em decisões do Supremo Tribunal Federal e o adotado após o julgamento do recurso sob o rito da repercussão geral é espantosa.
 
Observe-se, por exemplo, notícia publicada no ConJur sobre decisão proferida pelo ministro Barroso em 2014: “A companheira participará da sucessão do companheiro na divisão dos bens adquiridos durante a união estável. Se ela concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança. (…). Ao julgar o caso, a 1ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo reconheceu a uma mulher, na qualidade de companheira, a condição de única herdeira do morto e aplicou ao caso o artigo 1.829 do Código Civil, como se eles fossem casados. O acórdão afastou a previsão do artigo 1.790 do Código, acerca da sucessão em caso de união estável, que comporta uma concorrência maior de herdeiros. O ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, julgou procedente a Reclamação do irmão do morto, que pede o reconhecimento de sua condição de herdeiro, e cassou a decisão da corte paulista.”[7]
 
Ora, diante de guinada radical no entendimento da Corte em relação a matéria, parece-nos adequado aplicar a regra contida no artigo 927, § 3º do Código de Processo Civil vigente: “Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica.” Graziela Bacchi Hora assevera que o recurso a técnica da modulação de efeitos em face da declaração de inconstitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal dá-se em relação a situações “em que a segurança jurídica e o interesse social apontem para incompatibilidade da declaração de nulidade com a ‘vontade constitucional’”.[8]
 
A Adfas requer em sede de embargos de declaração que o Supremo Tribunal Federal module os efeitos a fim de que o novo entendimento não seja aplicado às sucessões abertas antes da prolação da decisão. Tal entendimento parece ser o mais acertado para a tutela das situações jurídicas sucessórias no Brasil. Isto porque o expediente da modulação de efeitos deve ter em mira a adequada tutela do direito material. Neste ponto, é similar “à aplicação dos meios executivos. Trata-se de uma forma de se tutelar o direito material à segurança jurídica e à confiança legítima.” [9] Assim, uma adequada tutela do direito material que se deseja preservar pode determinar a retroatividade dos efeitos de uma decisão que declare inconstitucional certa lei que criminalizava uma dada conduta, tendo em vista o princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica.
 
No caso sob análise, contudo, uma prestação jurisdicional adequada exige a modulação dos efeitos pro futuro nos termos propostos pela ilustre Presidente da Adfas. Em primeiro lugar, deve-se ter em mira a regra da saisine, herdada do direito colonial português, “e pelo qual os herdeiros legítimos ou testamentários recebem o título legitimário sobre a herança exatamente ao momento da morte da pessoa sucedida”.[10] Ou seja, no direito brasileiro a transmissão do acervo hereditário dá-se automaticamente, independentemente da aceitação dos herdeiros, o que impede que exista um hiato na titularidade dos bens que até o momento da abertura da sucessão pertenceram ao de cujus.[11] Ora, no momento da abertura da sucessão não se cogitava que o Supremo Tribunal Federal pudesse reputar inconstitucional tal dispositivo de lei; o que só foi feito após quase 15 anos de vigência do Código Civil de 2002.
 
Diante da inexistência de qualquer manifestação do Supremo Tribunal Federal no exercício do controle concentrado de constitucionalidade ao tempo da abertura de uma grande quantidade de sucessões a causa de morte no Brasil, parece-nos razoável invocar a presunção de legalidade da norma, qual seja um expediente “determinante dos limites formais de exigibilidade do direito. Conduz à necessidade do fechamento da discussão, à passagem de uma postura zetética para outra dogmática.”[12] Tendo em vista a presunção de legalidade, parece-nos razoável considerar que não se pode presumir nulidade em nenhuma norma jurídica, havendo que se falar apenas em “anulabilidade como eficácia ex nunc ou ex tunc.”[13]
 
Emprestar eficácia ex nunc neste caso é a solução mais adequada tendo em vista o caráter imediato da transmissão de direitos operada em razão da saisine e associada a presunção da legalidade da norma que estabelecia o estatuto sucessório da união estável ao tempo da abertura da sucessão, o que implicava na aplicação do artigo 1.790 a tais casos tendo em vista o que também prescreve o artigo 1.787 do Código Civil: “Regula a sucessão e a legitimação para suceder a lei vigente ao tempo da abertura daquela.” Entretanto, há outra razão relevantíssima, levantada pelo Ministro Ricardo Lewandowski ao tempo do julgamento do RE 646.721-RS, que também deve ser levada em consideração: “os que já estão mortos, evidentemente, não têm mais como interferir e reagir relativamente à decisão do Supremo Tribunal Federal”.
 
Ora, se pudessem considerar a possibilidade da aplicação de regra diversa às suas sucessões, isto poderia  redundar na feitura de testamentos a fim de adequar a situação a seus interesses pessoais. Ressalte-se que o respeito a “última vontade” do falecido é um dos pilares do direito sucessório brasileiro, e que isto também deve ser levado em consideração; de modo que não se pode presumir que o de cujus pretenderia submeter-se às regras da sucessão legítima próprias para o casamento civil se ele não era possível cogitar de tal coisa naquele tempo. Some-se a isto o fato de que a repentina alteração da orientação jurisprudencial traz consequência geralmente nefastas, pois: “a) vulnera a previsibilidade dos pronunciamentos judiciais; e, de resto, b) produz inarredável insegurança jurídica. Desse modo, para evitar esses sérios inconvenientes, é que foi instituída a denominada prospective overruling.
 
Nesse sentido, o mecanismo da modulação dos efeitos constitui importantíssimo instrumento técnico, a ser prestigiado pelo legislador e pelos tribunais.” [14] Por fim, registre-se que os embargos de declaração constituem uma medida adequada para suscitar a modulação de efeitos nesta situação, pela compreensão da modulação de efeitos como matéria de ordem pública ou um tipo de dever da Corte, como restou decidido no RE 574.706. Sem falar que a modulação de efeitos consiste em “uma espécie de regra de transição que tem, por objetivo, tutelar a segurança jurídica e a confiança legítima.
 
Quando ocorre a alteração traumática de uma situação de estabilidade, como no caso em análise, a superação de um precedente de forma surpreendente, seria um dever do Poder Judiciário a proteção da segurança jurídica, seja no seu aspecto objetivo, seja no aspecto subjetivo, da proteção da confiança.” [15] Sem sombra de dúvida, a modulação de efeitos neste caso é um imperativo de lealdade do Poder Judiciário em relação ao jurisdicionado, pelo que a doutrina contemporânea (com destaque para o ilustre civilista e administrativista Edilson Pereira Nobre Júnior[16]) extrai do princípio da moralidade administrativa tais exigências que decorrem do correlato princípio da boa-fé no direito privado.
 
* Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFPE, UFF, UFC, UFBA e UFMT).
 
[1]PEREIRA, Rodrigo da Cunha. STF acabou com a liberdade de não casar ao igualar união estável ao casamento. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2017-jun-14/rodrigo-cunha-pereira-stf-acabou-liberdade-nao-casar Acesso em: 27 de setembro de 2017.
 
[2] SILVA, Regina Beatriz Tavares da. Regime sucessório da união estável não é inconstitucional. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2017-mai-19/regime-sucessorio-uniao-estavel-nao-inconstitucional Acesso em:  27 de setembro de 2017.
 
[3] FACHIN, Luiz Edson; FACHIN, Melina Girardi. Direitos humanos e dignidade à luz do STF; Constituição e debate sobre pesquisas com células-tronco embrionárias. In: COSTA FILHO, Venceslau Tavares; CASTRO JUNIOR, Torquato da Silva (coords.). A modernização do direito civil – volume II. Recife: Nossa Livraria, 2012, p. 154.
 
[4] MACEDO, Lucas Buril de; PEREIRA, Mateus Costa; PEIXOTO, Ravi de Medeiros. Precedentes, cooperação de fundamentação: construção, imbricação e releitura. Civil Procedure Review, v. 4, n. 3 (2013), p. 126. Disponível em: www.civilprocedurereview.com Acesso em: 27 de setembro de 2017.
 
[5] TUCCI, José Rogério Cruz e. Considerações sobre o precedente judicial ultrapassado. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2016-jul-26/paradoxo-corte-consideracoes-precedente-judicial-ultrapassado Acesso em: 27 de setembro de 2017.
 
[6] MACEDO, Lucas Buril de; PEREIRA, Mateus Costa; PEIXOTO, Ravi de Medeiros. Precedentes, cooperação de fundamentação: construção, imbricação e releitura. Civil Procedure Review, v. 4, n. 3 (2013), p. 127. Disponível em: www.civilprocedurereview.com Acesso em: 27 de setembro de 2017.
 
[7] Consultor Jurídico. STF cassa decisão que deu toda a herança a ex-companheira do morto. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2014-nov-08/stf-cassa-decisao-deu-toda-heranca-ex-companheira-morto Acesso em: 25 de setembro de 2017.
 
[8]HORA, Graziela Bacchi. Desenvolvimento da hermenêutica constitucional na Alemanha a partir de Weimar e sua repercussão como flexibilização dos efeitos das decisões em sede de controle de constitucionalidade. Revista Acadêmica, v. 85, n. 2 (2013). Recife: UFPE, p. 341-342.
 
[9] PEIXOTO, Ravi de Medeiros. Supremo pode modular efeitos de decisão em embargos de declaração. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2017-abr-15/ravi-peixoto-stf-modular-efeitos-embargos-declaracao Acesso em: 27 de setembro de 2017.
 
[10] CASTRO, Torquato. O estatuto sucessório da família no direito atual e no projeto do código civil brasileiro. Revista do Instituto dos Advogados de Pernambuco, a. 1, n. 1 (ago. 1994). Recife:IAP, p. 36.
 
[11]COSTA FILHO, Venceslau Tavares. O direito de saisine e a sucessão a causa de morte: considerações a partir do direito civil brasileiro. In: COSTA FILHO, Venceslau Tavares; CASTRO JUNIOR, Torquato da Silva (coords.). A modernização do direito civil – volume II. Recife: Nossa Livraria, 2012, p. 252.
 
[12] CASTRO JUNIOR, Torquato. A pragmática das nulidades e a teoria do ato jurídico inexistente. São Paulo: Noeses, 2009, p. 166.
 
[13] CASTRO JUNIOR, Torquato. A pragmática das nulidades e a teoria do ato jurídico inexistente. São Paulo: Noeses, 2009, p. 170.
 
[14] TUCCI, José Rogério Cruz e. Considerações sobre o precedente judicial ultrapassado. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2016-jul-26/paradoxo-corte-consideracoes-precedente-judicial-ultrapassado Acesso em: 27 de setembro de 2017.
 
[15] PEIXOTO, Ravi de Medeiros. Supremo pode modular efeitos de decisão em embargos de declaração. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2017-abr-15/ravi-peixoto-stf-modular-efeitos-embargos-declaracao Acesso em: 27 de setembro de 2017.
 
[16]Cf: NOBRE JUNIOR, Edilson Pereira. O princípio da boa-fé e sua aplicação no direito administrativo brasileiro. Porto Alegre: SAFE, 2002.
 
*Venceslau Tavares Costa Filho é advogado, doutor em Direito pela UFPE, professor de Direito Civil da UPE e da Faculdade Metropolitana da Grande Recife, diretor da Escola Superior de Advocacia da OAB/PE.