(Princípio da legalidade – Décima-oitava parte)
 
420. Deixamos enunciado num item anterior (n. 402) uma sindicância pendente: qual a parcela da realidade objetiva a que se deve destinar a qualificação no registro imobiliário? Isto importa em perguntar sobre o objeto da qualificação no registro de imóveis.
 
Objeto −reiteremos− é o que está posto à frente (i) de um sujeito cognoscente, (ii) de uma tendência; ou, ainda, (iii) é algo que emerge ao modo de uma finalidade. Na primeira acepção, de cariz especificamente gnosiológico, objeto é o ente, real ou de razão, que aparece como conteúdo da ideia (ou do conceito, ou do termo); daí que, assim bem o observou José María De Alejandro, nas páginas de La lógica y el hombre, o conceito designe-se também intentio (o que advém de tendere in, sinalizando que o sujeito se inclina a um ente que lhe está posto à frente; o conceito é, pois, um ato intencional, scl. voltado a algo diverso de si próprio, algo que ele, conceito, não é: este algo é seu objeto, o objeto do conceito, seu conteúdo).
 
O objeto pode ser material ou formal. Objeto material é aquilo de que trata um saber, uma ciência, é a parcela da realidade a que se dedica uma dada ciência. Muitas vezes, a só indicação do objeto material é suficiente para distinguir uma de outra ciência (p.ex., é bastante a menção do objeto material da zoologia −que estuda os animais− para afastar todo risco de confundi-la com a mineralogia, que é o estudo dos minerais).
 
Outras vezes, contudo, não é possível diferenciar as ciências só por meio de seu objeto material; considere-se, a título exemplificativo, os saberes próprios da antropologia, da biologia humana, da psicologia humana, da anatomia humana, da fisiologia humana, da medicina, etc. −todas estas ciências têm o homem por objeto material; a Terra é o objeto material da geologia e da geografia; o direito é o objeto material da jurisprudência doutrinária, da sociologia jurídica, da história jurídica etc. Assim, é possível e isto de fato ocorre −como se vê dos exemplos acima− que uma parcela da realidade esteja em um condomínio de saberes, de maneira que pela só consideração dessa parcela (ou seja, do objeto material de uma ciência) não se saberia distingui-la de outra ciência que se ocupasse desse mesmo objeto material, dessa mesma parcela da realidade.
 
Nesta última hipótese, a distinção das ciências deve fazer-se, então, por seu objeto formal, vale dizer, pela perspectiva −obiectum formale quod− desde a qual se examina seu objeto material. Tem-se, pois, um dado ponto de vista, um ângulo a partir do qual uma ciência estuda seu objeto material; esse ponto de vista, essa perspectiva, é o que se denomina objeto formal. A geologia e a geografia, tal o referimos, compartem um mesmo objeto material: a Terra; mas, a geologia estuda a composição das camadas terrestres, ao passo em que a geografia estuda a configuração exterior da Terra (o exemplo é do excelente pensador que foi Rafael Gambra).
 
421. Pois bem, retornemos ao campo da qualificação no registro de imóveis.
 
O objeto material dessa qualificação −o que adiante se examinará mais detidamente− não se distingue do objeto material a que se dirige, igualmente, uma resolução de caráter jurisdicional (contencioso); tampouco é possível dizer que a perspectiva própria do exame jurisdicional (ou seja, seu objeto formal quod) seja diversa da que se apresenta ao estudo e decisão do registrador (de fato, só faltaria supor que a esse registrador fosse dado julgar à margem da finalidade de ser justo; ou que se pudesse afirmar que o certum jurídico não é ou pode não ser o iustum secundum legem). Sem embargo, é intuitivo que o ofício da jurisdição contenciosa ostenta alguma diversidade em cotejo com o ofício da qualificação registral.
 
Em que consiste esta diversidade?
 
O que temos de condomínio entre a jurisdição contenciosa e a “jurisdição” qualificadora no registro são seus objetos material e formal. Isto está bem, mas algo ainda há que distingue uma e outra, e é o modo com que se acercam da realidade, ainda que sob uma perspectiva genérica igual: projetam-lhe uma luz própria (lumen proprium) diversa, tal que a iluminação do objeto (ponto de vista formal sub qua) é o que opera a distinção entre estas jurisdições.
 
Isto, ao menos teoricamente, afasta confusões de fronteiras: o registrador não deve qualificar ao modo como deve sentenciar um juiz; mas, em contrapartida, o juiz, ele também, não possui competência para qualificar no registro, e, pois, ainda que alguma vez se fale em requalificação registral (frase que visita, no Brasil, os estudos sobre a dúvida registrária e os processos judiciários pertinentes), a expressão é imprópria: o juiz não requalifica. Sequer mesmo o juiz da “jurisdição” administrativa (“jurisdição registral”, o “juiz dos registros”, o “juiz da dúvida”) requalifica, senão que apenas revê, o que importa em características e limites nem sempre vistos e observados com a ortodoxia correspondente.  (Voltaremos adiante a este complexo assunto).
 
422. O objeto material da qualificação no registro de imóveis −ou seja, a parcela da realidade que se põe à frente do juízo de qualificação do registrador imobiliário− compreende (i) o título em sentido formal; (ii) o título em sentido material e (iii) os registros que importem concretamente na relação com estes títulos.
 
Por sua vez, o objeto formal dessa qualificação é o ditado pela normatividade paramétrica: vale dizer, que os títulos e os registros a eles relacionáveis são a parcela da realidade que o registrador observa −aprecia e decide− desde o ponto de vista da normatividade paradigmática (i.e., o parâmetro de aferição da validade e autenticidade do fato, ato ou negócio cuja inscrição predial se solicita).
 
Já tratamos dessa normatividade (cf., sobretudo, itens 321 et sqq.), destacando-lhe não só a obrigatória positividade (não há segurança jurídica fora do direito posto), mas também a largueza de seu espectro −a contar das normas constitucionais−, de sorte que, observada a competência legística, abranja a lei em acepção canônica (lei complementar, lei ordinária, lei delegada), códigos, e, no Brasil, a medida provisória, o decreto legislativo, portarias (excluídas as cartilhas sem força de lei), regras técnicas expedidas pelo Poder judiciário e, destituídas de vigor compulsivo embora, as recomendações que desse Poder emerjam (inc. XIV do art. 30 da Lei n. 8.935, de 18-11-1994). A isto adicione-se o costume.
 
423. Os títulos, em seu sentido formal −documentos suscetíveis de inscrição−, podem ser de origem (i) notarial (escrituras −constantes de certidões ou traslados− e atas notariais, atos autênticos de origem estrangeira), (ii) judicial (cartas de sentença, de arrematação, de adjudicação, autos, mandados, certidões, formais), (iii) administrativa (alvarás de licença, alvarás de autorização, “cartas de habitação” −o habite-se−, certidões, contratos, termos administrativos), (iv) privada (instrumentos de contratação particular), (v) registral (certidões) e (vi) eclesiástica (as bulas pontifícias).
 
 Os títulos, em acepção material, são os fatos, atos e negócios jurídicos passíveis de aceder ao registro de imóveis por, de algum modo, repercutir num status real-imobiliário (o que não significa, necessariamente, uma repercussão de direito real). A normativa brasileira de regência contempla um rol desses títulos nos incisos do art. 167 da Lei de Registros Públicos (p.ex., instituição de bem de família, hipotecas, locação, penhoras, arrestos, sequestros, servidões, compra e venda, dação em pagamento etc.), mas nem sempre com o rigor principiológico exigível (assim é que ali se prevê o registro de um direito relativo a coisas móveis: “penhor de máquinas e de aparelhos utilizados na indústria, instalados e em funcionamento” −n. 4 do inc. I), sequer com rígida propriedade redacional (ora, com efeito, alistam-se, para o registro, títulos em sentido material −dote, compra e venda, permuta−, ora, diversamente, títulos em sentido formal: “termos administrativos” ou “sentenças declaratórias da concessão de uso especial para fins de moradia”; “sentenças declaratórias de usucapião”; “sentenças que nos inventários, arrolamentos e partilhas, adjudicarem bens de raiz em pagamento das dívidas da herança”).
 
Neste capítulo, de resto, põe-se uma das questões de frequente debate na doutrina e conflito na jurisprudência pretoriana do Brasil: as listas dos incisos I e II do art. 167 da Lei n. 6.015/1973 −referindo-se, respectivamente, a atos de registro stricto sensu e de averbação− estão ambas em numerus clausus? Ou uma delas em numerus apertus? Ou será que as duas se encontram lançadas com caráter não taxativo?
 
Sobre isto versaremos em um próximo passo desta série, juntamente com o exame dos contornos específicos da qualificação registral conforme a variedade da gênese dos títulos (em sentido formal) submetidos à apreciação e decisão do registrador.