A usucapião familiar é uma espécie de aquisição da propriedade que foi criada no Brasil pela Lei n° 12.424/2011, ao incluir o artigo 1.240-A no Código Civil, prevendo que aquele que exercer por dois anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano próprio de até duzentos e cinquenta metros quadrados, cuja propriedade dividia com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, terá adquirido o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
 
De acordo com Mário Delgado, presidente da Comissão de Assuntos Legislativos do IBDFAM, a usucapião familiar têm dois objetivos: salvaguardar o direito à moradia daquele cônjuge ou companheiro que permaneceu no imóvel e também proteger a família que foi abandonada. “Na gênese, o instituto foi pensado para amparar mulheres de baixa renda, beneficiárias do Programa Minha Casa Minha Vida, abandonadas pelos respectivos parceiros conjugais, propiciando a aquisição da propriedade exclusiva do imóvel residencial por meio do instituto da usucapião”, esclarece.
 
O advogado explica que, para se caracterizar a perda da propriedade do bem imóvel por usucapião familiar, não basta a simples “separação de fato”, sendo imprescindível que o ex-cônjuge ou ex-companheiro tenha realmente “abandonado” o imóvel e a família. Apesar da letra expressa da lei se referir a “abandono do lar”, o entendimento preponderante na doutrina é que o abandono ensejador da usucapião é o abandono simultâneo do imóvel e da família.
 
“Portanto, a simples separação de fato, com afastamento do lar, quando o cônjuge ausente continua a cumprir com os deveres de assistência material e imaterial, não dará ensejo à usucapião. O abandono não se caracteriza, por exemplo, se o ex-cônjuge ou ex-companheiro, que se distanciou fisicamente do imóvel, continua a exercer seu dever de cuidado com a família, pagando os alimentos eventualmente devidos, mantendo a convivência com os filhos e contribuindo com o pagamento de tributos e taxas relativas ao imóvel. Tudo isso demonstra que, mesmo fora da residência conjugal, o outro cônjuge ou companheiro mantém o seu interesse tanto pelo imóvel, como pela família”.
 
Existem alguns requisitos subjetivos (pessoais) e objetivos (reais) para a usucapião familiar. Os primeiros referem-se à pessoa do usucapiente, que precisa estar casada ou conviver em união estável com o cônjuge ou companheiro que abandonou o lar, não havendo distinção, caso se trate de pessoas de mesmo sexo ou de sexo diverso. O instituto abrange e protege todas as entidades familiares baseadas na conjugalidade, inclusive as famílias poliafetivas, quando reconhecidas. Por isso, somente o ex-cônjuge ou ex-companheiro, e não os demais membros da família desfeita, detém legitimidade para pleitear a aquisição originária do imóvel residencial, por meio dessa modalidade de usucapião. Nos casos de união estável, entendo possível a cumulação dos pedidos de reconhecimento e dissolução com o pedido de usucapião familiar, bem como a sua arguição em reconvenção.
 
Conforme Mário Delgado, aquele que ficou no imóvel deve exercer diretamente a posse, de forma exclusiva e sem interrupção, fazendo uso do bem para sua moradia e de sua família. Optando, antes de implementado o prazo de dois anos, por deixar o imóvel fechado ou alugado, não poderá mais invocar a usucapião familiar, que exige a “posse direta” e ininterrupta, a implicar a permanência do abandonado no imóvel. A posse também precisa ser exercida sem oposição. Se, antes de ultimados os dois anos, o parceiro conjugal que deixou o imóvel ingressar, por exemplo, com uma notificação extrajudicial ou com qualquer medida judicial que demonstre interesse em exercer os atributos da propriedade, restará afastado o direito à usucapião familiar. Muito utilizada, com essa finalidade, a ação para arbitramento de aluguel pelo uso exclusivo da coisa comum. Também é imprescindível que o parceiro que permanece no imóvel não seja proprietário de nenhum outro imóvel urbano ou rural.
 
“Os requisitos objetivos ou reais, por sua vez, dizem respeito ao objeto da usucapião familiar, que vem a ser a meação de imóvel urbano pertencente, em condomínio ou mancomunhão, à parte que abandonou o lar. A usucapião conjugal exige a co- propriedade do bem, ou seja, o imóvel usucapiendo deve obrigatoriamente pertencer a ambos os parceiros conjugais, por força de condomínio tradicional ou do regime de bens do casamento ou da união estável. Se o bem pertencer com exclusividade ao cônjuge que abandonou o lar, descabe a invocação da usucapião conjugal”, afirma.
 
O advogado diz ainda que a legislação tem apresentado alguns problemas, e aponta algumas dificuldades: 1) a exiguidade do prazo bienal, porquanto bem inferior aos demais prazos de usucapião, o que abalaria o princípio da segurança jurídica, permitindo a perda da propriedade comum em um prazo muito curto, durante o qual poderia ocorrer, até mesmo, a reconciliação do casal. 2) A localização do imóvel, por excluir os moradores de áreas rurais, provavelmente os mais necessitados desse tipo de tutela protetiva, e 3) a exclusão da proteção legal dos imóveis de propriedade exclusiva sobre os quais o ex-cônjuge ou ex-companheiro que permaneceu residindo no imóvel não teria direito à meação. “Esses três pontos merecem uma alteração legislativa, no sentido de elevar para cinco anos o prazo da posse, incluir na possibilidade de usucapião os imóveis rurais e afastar a exigência da titularidade do domínio sobre parte do imóvel usucapiendo”, ressalta.
 
Apesar da pertinência das críticas, Mário Delgado enxerga mais pontos positivos do que problemas. Ele afirma que a usucapião familiar é um instrumento que promove a dignidade das pessoas, assegurando-lhes o mínimo existencial, quando privilegia a função social da propriedade e o direito à moradia daquele que foi compelido a assumir, com exclusividade, os deveres de assistência material e imaterial da entidade familiar, os quais, por imposição da lei, deveriam ser partilhados por ambos os cônjuges ou companheiros.