O silogismo parece claro: se o Blockchain, hoje, ao menos teoricamente, atua como uma espécie de panaceia para todos os males da sociedade tecnológica em que vivemos (pois célere e seguro, diriam os especialistas), a sua atuação conjunta com o certificado digital ICP-Brasil (que garante, com validade legal, não apenas a integridade, mas, também, a autoria do documento) começa(ria) tornar a obrigatoriedade de as pessoas se dirigirem ao cartório algo um tanto démodé. Desnecessário, até.
Afinal, garantir-se-ia a identidade de todos signatários e a inviolabilidade das informações ali prestadas, de modo que se os registros públicos (em sentido lato, abarcando a atividade notarial) existem justamente para isso, seriam suplantados por algo muito mais atual, rápido e de fácil utilização.
Voltaremos adiante no ponto.
Há cerca de um mês, o e. TJSP realizou o curso de iniciação aos novos notários e registradores bandeirantes, grupo no qual eu orgulhosamente me incluo. Tirante a dificuldade de deslocamento – não a viagem em si, mas a simples ausência no trabalho por alguns dias, principalmente em relação aos novatos na carreira, a exemplo deste subscritor – a intenção foi a melhor possível, pois todo início de exercício, em qualquer atividade, demanda o que a teoria, exigida nos concursos, não propriamente nos fornece.
Diante, pois, de algumas instigantes palestras, gostaria de ressaltar aquela proferida pelo eminente magistrado Dr. Antônio Carlos Alves Braga Júnior. Além de ter demonstrado ser um profundo conhecedor da sociedade da informação (tema o qual peço licença para humildemente fazer referência ao opúsculo que escrevi, denominado “Curso de Direito da Certificação Digital”, que se encontra gratuitamente disponibilizado em www.iti.gov.br), as suas instigações foram, para dizer o menos, fascinantes.
No final da apresentação, o ilustre presidente do CNB-SP, Andrey Guimarães Duarte, questionou-o acerca da atividade notarial frente a esse novo mundo. O ilustre palestrante não titubeou: os notários (da mesma forma que todo o resto da sociedade) deverão se adaptar aos novos tempos, pois – palavras do juiz – vivemos em um mundo assíncrono e remoto, de modo que exigir o comparecimento das pessoas, presencialmente (ou seja, de maneira física), em um cartório, para a externalização de suas vontades, seria um iter fadado à obsoletude. Logo, acaso assim não nos adaptemos (nós, os tabeliães/registradores), poderemos nos ver substituídos por outras instituições que atendam às novas demandas da sociedade.
Em sentido mais ou menos conforme, o artigo do sempre atualizado Ângelo Volpi Neto.
Linhas gerais, se não me falhe a memória – já um pouco desgastada – foi o ocorrido, com o acréscimo de que o Dr. Andrey defendeu a categoria, ao dizer que se encontra no âmago da função notarial a qualificação presencial de vontades, algo não alcançado mediante a sua simples exteriorização, de maneira remota, por alguém.
Que partamos, então, dessa premissa.
Existimos para dar segurança. É essa a enteléquia de nossa atividade, diria o desembargador dr. Ricardo Dip. E a segurança existe para que a sociedade, da qual somos produto, possa existir justamente enquanto sociedade, sob pena de que saiamos de nossa organização e nos transformemos em um amontoado de gente cada qual buscando seus interesses acima de tudo e todos.
Logo, se o direito existe para o homem social (ubi societas, ibi jus), as instituições notariais e registrais existem para o direito. Inexiste, assim, o direito sem a função cautelar (e, consequentemente, pacificadora) proporcionada pelos cartórios extrajudiciais.
Bom, isso, até agora, é o que já li e reli em diversos artigos sobre o tema. Mas de que forma se comprova esse a função tão propalada, mas geralmente não amiúde explicada? É simples. Como o serviço extrajudicial nunca foi sinônimo de arquivo público, ainda que se garanta a integridade das informações e a autenticidade de seus signatários, não se alcança a finalidade proposta pelos registros, que é, justamente, conforme visto, conferir segurança jurídica (direito fundamental descrito no art. 5º, caput, de nossa Constituição Federal) às pessoas, à sociedade e ao Estado.
A grande questão não é o que, onde ou mesmo como se guarda a informação, mas sim de que forma ela é gerada. Ou, em poucas palavras: alguém tem que analisar alguma coisa. E esse alguém, se não fizer o que deve ser feito, responderá, pessoalmente, pela falha.
É nessa análise que reside justamente o diferencial da categoria: fazemos o que o computador não faz, e provavelmente – certamente não nessa geração – nunca fará, que reside na apreensão, racionalização e exteriorização de opiniões jurídicas oriundas de nossa intelecção.
Com o Blockchain se consegue sim garantir que uma cadeia imobiliária, em relação a seus titulares, não seja alterada unilateral e maliciosamente por alguém. Mas não se tem como assegurar que o atual proprietário do imóvel ali se encontra por direito dele. Ou seja, de que o proprietário é efetivamente o dono do imóvel, pois legitimamente comprou-o.
E isso porque essa análise demanda verificar: a) se compradores e vendedores, no ato da venda, estavam em suas plenas capacidades (não cito as suas identidades pois isso já seria alcançado mediante a utilização da certificação digital); b) que o imóvel objeto da alienação pertencia aos vendedores e era justamente aquele que se encontrava descrito na matrícula.
A análise computacional é sempre binária (se A, então B; se não A, diferente de B. Daí a automaticidade de seus comandos), e não teleológica. Inexiste, pois, inteligência artificial que consiga minimamente analisar os princípios notariais e/ou registrais, vez que esse juízo prudencial perpassa necessariamente pelo crivo da inteligência humana.
Em seu mais recente livro, Yuval Harari (Homo Deus: Uma breve História do Amanhã) indica, linhas gerais, as propensões tecnológicas para as quais nos dirigimos. Sugere, ao meu ver acertadamente, que os computadores inteligentes (aqueles que substituiriam os homens, nos moldes do filme “Exterminador do Futuro”), provavelmente nunca existirão.
Caminhamos cada vez mais para os algoritmos tendenciais, ou seja, o computador, baseado na análise de nossas escolhas anteriores ou mesmo em nossas características biológicas, por exemplo, sugere determinado comportamento, tal como – algo hoje já bastante comum – o aparecimento, na tela do computador, de sugestões de compras baseadas em nosso histórico de pesquisas.
Percebamos que a escolha, ao final, sempre será do ser humano (independentemente da limitação, ainda que indireta, do nosso livre arbítrio). E, se isso é verdade – como de fato o é – fica cada vez mais claro acerca de o porquê dos exercentes das atividades extrajudiciais serem pessoas físicas, nunca jurídicas, diante da análise racional-intelectiva exigida para o desempenho da função.
Merece encômios, pois, o artigo do ilustre dr. Renato Nalini, no sentido de que não há razão em uma pessoa jurídica (isto é, uma empresa) se autodenominar “cartório do futuro”, por (simplesmente) se utilizar de uma tecnologia atual. Mesmo porque se o homem é o início e o fim de nosso ordenamento jurídico (CF/88, art.1º, inc. III), sempre alguém (i.e., um ser humano) se responsabilizaria, ao final, pelos eventuais erros praticados pelos computadores.
Fixada a tese de que a análise deva sempre partir de um ente dotado de estrutura biopsicológica, resta saber quem pode exercer a atividade.
Uma resposta simplória seria apenas nós, isto é, os notários e registradores. A Constituição Federal assim é expressa (!). Bom, é um ponto de partida, sem dúvida. Mas para aceitá-lo deve-se estar também preparado para o reverso: caso a CF/88 mude a redação do seu art. 236, deixaremos, simplesmente, de ser habilitados para tanto. Por isso compreendo que, na verdade, não somos porque a Constituição dessa forma determinou, mas a Constituição Federal assim o disse porque já éramos antes dela.
Mas porque, então, houve o reconhecimento constitucional do exercício da atividade? Não à toa: porque nos preparamos para isso, por que nos habilitamos em um concurso, estudamos diariamente para a atividade (que todo dia traz novidades não imaginadas nem mesmo pelos mestres do realismo fantástico como García Márquez e Vargas Llosa) e porque respondemos pessoalmente com nosso patrimônio acaso as coisas não saiam como esperado.
Conforme vimos há pouco, a impossibilidade de um computador aferir os princípios registrais é a mesma de um leigo analisá-las. Suponhamos, então, que esse leigo não seja propriamente um leigo e que tenha estudado bastante para tanto, inobstante não tenha prestado um concurso público. Ainda assim ele não poderá exercer a função? Acaso se entenda pela possibilidade, que se passem a vender togas on-line pois o exercício de uma função estatal por particulares deverá ser possível para todas as atividades públicas hoje desempenhadas.
Claro que não faz sentido.
Nesse ponto da análise, e aqui eu prometo ser breve pois acredito que já me alonguei o bastante, gostaria de rememorar mais uma interessante passagem do Dr. Antônio Carlos Alves Braga Júnior, no sentido de que o ser humano tende a superlativizar as alterações que provavelmente ocorrerão nos próximos três anos e a menosprezar aquelas referentes ao decênio subsequente (ou seja, acreditamos que tudo mudará no próximo triênio, e, quando assim não ocorre – porque geralmente não ocorre mesmo –, desanimamos e achamos que os sete anos subsequentes não trarão novas mudanças, quando, na verdade, é aqui que elas ocorrem).
Estamos na fase de animação com o Blockchain: tudo é novo, é bonito, é seguro. Calma. É uma nova tecnologia que pode – e deve – ser utilizada em sua inteireza, inclusive pelos próprios notários e registradores (art. 37 da Lei 11.977/09) em apoio às atividades desempenhadas, mas sempre dentro de suas limitações: toda tecnologia é auxiliar ao homem, nunca o inverso.
Hoje, exemplificativamente, utilizamos certificados digitais para acessar a Secretaria de Fazenda do Estado de São Paulo, para assinar alguns dos documentos eletrônicos, enfim, o certificado sem dúvida alguma em muito nos apoia.
Produziu impactos no mundo notarial? Sim, produziu. Mesmo na atividade finalística: a assinatura digital, ou seja, aquela que se vale dos certificados ICP-Brasil (M.P. 2.200-2/01), prescinde de qualquer reconhecimento de firma por parte dos tabeliães, pois, também, dotada de validade jurídica.
Porém, o cerne da atividade tabelioa, que se resume principalmente na apreensão, qualificação e exteriorização da livre manifestação de vontade, se mantém. Como assim ocorre desde o início da atividade. E como assim perdurará.
O que precisamos ter claro é que esses novos tempos necessitam de adaptação, mas a essência fenomenológica não muda. A alimentação do ser humano, por exemplo, não mudará.
Garantias como autenticidade e integridade a sociedade sempre exigiu e sempre criou mecanismos para assegurá-los, de modo que esse “problema” que por ora se coloca nunca foi propriamente atual. Se o código civil garante a autenticidade das manifestações de vontade mediante a simples assinatura do declarante (art. 219), e isso, pelo menos, desde 1916 (artigo 131, revogado), porque que nunca se sugeriu, seriamente, antes, que os cartórios fossem substituídos por arquivos públicos?
A ideia, enfim, é a mesma: o papel físico garante a segurança da manifestação de vontade; a assinatura assegura a sua autoria, logo, essa situação gerada pelas novas tecnologias não é, nem nunca foi, recente. Mas nunca se cogitou em substituir os cartórios, pois, aqui, repita-se à exaustão, não se faz “(…) um simples processo mecânico, chancelador dos atos já praticados, mas parte, isso sim, de uma análise lógica, voltada para a perquirição da compatibilidade entre os assentamentos registrários e os títulos causais (judiciais ou extrajudiciais), sempre feita à luz das normas.” (TJSP-ApCiv 72.365-0/7, em 15/02/2001).
Diante de todo o exposto, acredito que o cartório do futuro seja, pois, esse mesmo: o atual, com algumas facilidades inerentes à tecnologia, que em muito nos ajuda.
Gostaria, nos estertores dessas breves palavras, de agradecer ao convite feito pelo e. Colégio Notarial do Brasil – CNB, Conselho Federal, na pessoa de seu Presidente, Dr. Paulo Gaiger, para que possamos participar do XII Congresso Notarial Brasileiro, a se realizar na aprazível cidade de João Pessoa, entre os dias 14 e 16 de junho desse ano, oportunidade na qual certamente teremos a oportunidade de nos aprofundar, e, principalmente, debatermos alguns dos temas aqui propostos.