(Princípio da legalidade – Quinta parte)
 
Des. Ricardo Dip
 
320. Retomando o núcleo do “princípio da legalidade registral”, reafirmemos sua demarcação paramétrica em dada parte do direito normativo −direito posto ou, mal designado, direito objetivo. Não é possível a concessão de segurança jurídica sem direito posto. Podemos referir este parâmetro numa parcela especificada dentro do âmbito do ordenamento jurídico, com especialização segundo a matéria, o lugar e o tempo.
 
É muito ampla a demarcação pelo aspecto material −ou seja, por tudo quanto interesse ao registro−, e mais simples a delimitação no tempo (correspondendo à vigência e às situações de extra-atividade das leis) e no lugar, a cujo propósito não se suponha haja sempre de restringir-se a legalidade registral à normatividade interna (p.ex., pense-se nas normas da União Europeia).
 
Atenda-se ainda ao fato de que o ordenamento jurídico é um derivado da ordem (quase sempre advinda de uma autoridade visível), que tem uma estrutura sistêmica, na qual também podem integrar-se normas costumeiras.
 
Daí que se aviste um tanto imprópria a dicção “princípio da legalidade”, quando, tal o caso, esse princípio admita a força normativa do costume. Melhor pareceria falar em “princípio da normatividade”.
 
321. Por brevidade de causa −para não dizer mesmo que seria pouco menos do que impossível uma análise universal do tema−, a divisão das normas integrantes do “parâmetro da legalidade registral” aqui se apreciará apenas no quadro brasileiro vigente.
 
Para já, a primeira normativa suscetível de aplicar-se a nossos registros públicos é a Constituição da República, qual, por agora, a que foi promulgada em Assembleia Constituinte no dia 5 de outubro de 1988 (p.ex., confiram-se as normas dos arts. 5º, inc. LXXVI, 22, inc. XXV, e 236 deste Código Político).
A seu texto original podem concorrer, e em nosso caso brasileiro muitíssimo concorreram, emendas à Constituição, que a ela comumente se integram, mas alguma vez permanecem marginadas de seu texto. Também essas emendas podem estimar-se no plexo paradigmático da “normatividade registral”.
Considerando a circunstância de que a Constituição federal brasileira assina competência privativa à União para legislar sobre registros públicos (inc. XXV do art. 22), só em caráter muito restrito os preceitos das Constituições dos Estados e do Distrito Federal, as emendas a essas Constituições e suas correspondentes leis normativas subconstitucionais são suscetíveis de integrar o conjunto da “legalidade registral”. É certo que nossa Constituição republicana de 1988 prevê, no parágrafo único de seu art. 22, a possibilidade de lei complementar conceder autorização aos Estados para legislar sobre questões específicas das matérias relacionadas nesse mesmo art. 22, em que se alista o tema dos registros públicos. Da mesma sorte, tendo os emolumentos relativos aos atos de registro (§ 2º do art. 236 da vigente Constituição federal -CF) natureza de taxa, pode ela instituir-se pelos Estados e o Distrito Federal (inc. II do art. 145 da mesma CF).  Neste quadro, já então se admitirá que normas estaduais (e não se excluem, em abstrato, as de cariz constitucional originária ou por emenda) possam versar em dadas circunstâncias a matéria dos registros públicos, e, assim, integrar-se ao âmbito paramétrico da “legalidade registral”.
 
Admitem-se ainda no espectro da normativa registral, observada a competência legística, a lei em sentido canônico (lei complementar, lei ordinária, lei delegada), a medida provisória, o decreto legislativo, códigos, portarias (mas não cartilhas sem força de lei −como já houve caso de imposição no âmbito do Registro Civil das Pessoas Naturais), as normas técnicas expedidas pelo Poder judiciário e, sem força compulsiva embora, as recomendações que desse Poder emanem (inc. XIV do art. 30 da Lei n. 8.935, de 18-11-1994).
 
Além disso, já acima se afirmou, também os costumes compõem o paradigma da normativa registral.
 
322. Os costumes nos registros públicos são o modo recorrente, habitual e uniforme de atuar, com persuasão de compulsoriedade, nas funções registrais, de tal maneira que, por sua reiteração em uníssono e com frequente abono da jurisprudência administrativo-judicial, são reconhecidos por fonte normativa do (e no) registro.
 
Práticas vetustas e repetidas (inveterata), condutas que se revelaram bem sucedidas na experiência, a ponto de que enraízem a convicção de sua compulsividade, formam um hábito registral, ou seja, uma tendência, uma inclinação, disposição permanente, em prontidão para a praxis dos registros.
Não diversamente os usos, embora sem a mesma convicção de imperatividade, compartilham de força normativa nos registros, desde que, por igual, se revelem (de algum modo) antigos e recorrentes.
 
323. Tema complexo, por fim, e muito controverso, é o da potestade administrativo-judiciária no território dos registros públicos. Examinemo-lo na moldura do direito brasileiro em vigor.
 
Este poder de regência −potestas regiminis− dos registros públicos divide-se em potestas iudicialis e potestas non iudicialis, consoante, respectivamente, a maior e a menor rigidez de seu exercício.
 
Aqueles, os que se referem iudicialis, são o de superintendência (ou seja, o poder de revogar, modificar ou suspender, total ou parcialmente, os atos praticados nos registros) e o disciplinar.
 
O poder de superintendência, bem se avista, configura um dado poder de ordens (vale dizer, uma potestas ordinum, aqui em sentido restrito), consistindo em um comando imperativo para um caso concreto, singular, já antecedido da qualificação pelo registrador.  Exemplo prototípico do poder de superintendência é o da apreciação e decisão, no Brasil, dos processos de dúvida registral, em que a potestade judiciária, embora seja de ordem, só se exercita após o juízo de qualificação emitido pelo registrador e desde que o pretendente ao ato de registro proceda à instauração regular da instantia dubitātiōnis (Lei n. 6.015/1973, de 31-12, art. 198). Essa instauração está submetida aos limites pontuais da rogação, seja quanto aos pleitos genérico e específico, seja quanto ao objeto do inconformismo (ex.: Tício pleiteia expressamente que se averbe uma venda e compra; isto impede que a potestas ordinum determine que o título se registre; ou ainda: Semprônia conforma-se de modo explícito com dois de três fundamentos de devolução de um título; ora, ainda que esse fundamentos não sejam corretos, não os pode superar o poder de ordem, porque esta matéria é extra instantiam −nisto se ancora −acrescente-se− o aparente acerto das decisões da jurisprudência registral paulista que julgam prejudicada a dúvida em caso de conformidade parcial do suscitado com as exigências do registrador suscitante).
 
324. As potestates non iudiciales dividem-se em (i) poder de orientação (potestas recommendationis, competência de diretivas ou de recomendações, “regulativa soft”), (ii)  poder de instrução (potestas leges ferendi, pouvoir d’instruction do direito francês, potestade de previsões imperativas para situações gerais e abstratas) e (iii) poder de ordem, aqui em acepção ampla (potestas ordinum amplior ou potestas iussi), competência para expedir comandos prévios em casos singulares, com substituição do exercício da competência originária.
 
325. Parece-nos que, no Brasil, o Judiciário possa exercer a competência de orientação dos registros públicos e, ainda que limitadamente no domínio estrito das funções técnicas, a potestade de instrução (inc. XIV do art. 30 da Lei n. 8.935, de 1994).
Não lhe cabe, todavia, a potestas ordinis amplior, qual a de emitir decisões prévias para casos concretos, em substituição ao exercício da competência própria original do registrador.
 
Neste capítulo, apenas caberia o exercício da potestas iudicialis (dentro nos contornos da lei), equivale dizer, a competência de revogar, modificar ou suspender os atos registrais, após a qualificação registral originária.
 
Como ficou dito noutra parte: “a distinção entre o poder de ordem (potestas iussi) e o poder de superintendência está em que este último, no que concerne ao plano da qualificação registrária, é um posterius à atuação do registrador, cuja independência jurídica há de ser, pois, respeitada. Desta maneira, no direito brasileiro vigorante, não compete ao Poder judiciário o exercício do poder de substituição primária das atribuições propriamente jurídicas do registrador”.