Um dos desejos e aspirações mais nobres e relevantes na vida de qualquer ser humano é o exercício da maternidade, ou paternidade, o que até pouco tempo atrás se processava apenas pelos métodos naturais, ou através de um processo judicial de adoção. Cenário que alimentava a crescente frustração de muitos casais por tornar distante a realidade da materno/paternagem. Impossibilitados por inaptidão congênita, ou despidos de outra alternativa, estes casais submetiam-se às longas filas de espera para adoção. Vencidos pelo cansaço, a desistência tornou-se prática comum destas famílias.
 
Por outro lado, como os avanços da ciência médica se multiplicaram, esta aspiração deixou de ser distante, para ser uma realidade mais palpável no cotidiano de muitas famílias. Surge o método de reprodução assistida, pelo que nos valemos da conceituação erigida pela jurista Maria Berenice Dias, para melhor clareza do tema. Reprodução assistida: “são técnicas que permitem a geração da vida independentemente do ato sexual, por método artificial, científico ou técnico. A fecundação resultante da reprodução medicamente é utilizada em substituição à concepção natural, quando houver dificuldade ou impossibilidade de um, ou de ambos de gerar. São técnicas de interferência no processo natural, daí o nome de reprodução assistida.”
 
E, a Constituição Federal de 1988 com a ampliação do conceito de filiação ao proibir toda e qualquer forma de discriminação, ou designações relativa aos filhos havidos, ou não da relação de casamento, ou por adoção, abriu caminho para a utilização dessas novas técnicas de fecundação artificial, as quais começaram a ser reguladas no novo código civil.
 
A seguir este viés da regularização, apresenta o código civil de 2002, em seu artigo 1.597, regras a disciplinar a matéria, conforme se verifica pela leitura abaixo:
“Art. 1.597 CC: Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos:
I- ………..
II- ……….
III- Havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido;
IV- Havidos a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga;
V- Havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido.
 
Apesar de todo avanço constitucional, com forte influência no novo diploma civil, a questão do registro de nascimento permanecia bastante embaraçada e obscura, indo de encontro a mais premente aspiração dos pais em termos de cidadania, o de tornar o recém-nascido CIDADÃO BRASILEIRO, com nome e sobrenome, pertencente ao seio de uma família, mediante a transcrição de tão relevante fato jurídico: o nascimento, nos livros de registros públicos. E, as consolidações normativas notariais e registrais Estaduais nada disciplinavam sobre a imediata lavratura do registro de nascimento, tampouco havia provimento específico sobre a matéria. O único regramento disponível era a lei 6.015/73, que embora editada há mais de 43 anos impunha a obrigatoriedade de se levar a registro todo nascimento ocorrido em Território Nacional. Mas de que forma? Com quais documentos? Quem teria legitimidade? Os pais detentores do projeto parental? Seria necessário anuência do doador do sêmen e, da gestante em caso de gestação por substituição? Como os registradores civis atenderiam ao princípio da legalidade e ao comando contido na lei dos registros públicos?
 
A par destas indagações eram visíveis algumas dificuldades para lavratura deste registro de nascimento. A transpor este obstáculo, fazia-se necessário trilhar os caminhos demorados da Justiça, instrumentalizando um expediente administrativo, ou não, a passar pelo crivo do Ministério Público até chegar ao fim e, ao cabo na autorização do registro de nascimento. Do mundo dos fatos ao mundo do Direito! Do anonimato à publicidade registral!
 
Contudo, por mais que o trilhar desta caminhada resultasse ao final exitosa, em tempos atuais não era mais concebível aguardar dias e dias à espera de uma autorização judicial, para fins de realizar um dos direitos mais urgentes e necessários da criança: o registro de nascimento!
Neste sentido o Conselho Nacional de Justiça, ouvindo o clamor social pelo reconhecimento de um direito e, principalmente do dever dos pais darem a registro o nascimento de seus filhos, fez publicar em 14 de março do ano pretérito o provimento 52. O objetivo desta citada normativa foi de imprimir maior celeridade ao procedimento de registro de nascimento dos filhos havidos pelo método de reprodução assistida despido de qualquer autorização judicial.
 
Entretanto, o artigo 2º, inciso II deste permissivo legal impõe obrigatoriedade ao diretor da clínica onde realizada a reprodução assistida, do fornecimento de declaração, informando quem foi o doador ou doadora do material biológico, documento indispensável à lavratura do registro de nascimento, a ser arquivado em cartório.
 
Ocorre que a resolução 2.121/2015 do CFM, editada em 24 de setembro de 2015, veda ao profissional da saúde a identificação dos doadores ou receptores envolvidos no procedimento de reprodução assistida, sob pena de violação de dever médico, princípios éticos e quebra de sigilo profissional. Tais condutas poderão implicar na cassação do direito ao exercício legal da medicina.
 
Sendo assim, denota-se que tanto a normativa do CNJ, quanto do CFM entraram num embate e, no meio deste confronto está o menor clamando pela efetivação do direito ao registro de nascimento. Certamente, não foi esta a intenção do Conselho Nacional de Justiça, dificultar o ato do registro. Todavia, hodiernamente a norma regulamentadora assim redigida é impraticável. As clínicas, que deram guarida aos procedimentos de reprodução assistida, não fornecem a identificação do doador do material biológico.
 
Imprescindível, portanto a alteração normativa, pois o exercício da cidadania não pode ficar à mercê de uma autorização judicial!
E, a realidade social impõe uma única postura: a preservação do melhor interesse da criança e o respeito à sua dignidade!
 
*Joana Malheiros é oficial de Registro Civil em Soledade (RS)