O patrimônio cultural pode ser compreendido como uma seleção de emblemas relevantes para uma determinada coletividade, capazes de reforçar identidades, promover solidariedade, recuperar memórias, ritualizar sociabilidades e transmitir legados para o futuro.
A fruição de um patrimônio cultural hígido é corolário da dignidade da pessoa humana e da cidadania (fundamentos da República Federativa do Brasil) e constitui direito fundamental de terceira geração, sendo inconteste que a tutela desse direito satisfaz a humanidade como um todo (direito difuso), na medida em que preserva a sua memória e seus valores, assegurando a sua transmissão às gerações futuras.
A Constituição Federal Brasileira deixou claro no artigo 216, parágrafo 1º, mediante uma enumeração meramente exemplificativa, que o rol de instrumentos de preservação do patrimônio cultural é amplo, podendo ser ele protegido por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de “outras formas de acautelamento e preservação”.
Com efeito, não existe taxatividade acerca dos instrumentos que podem ser utilizados para se proteger o patrimônio cultural brasileiro. Ao contrário, qualquer instrumento que seja apto a contribuir para a preservação dos bens culturais em nosso país (mesmo que não se insira entre aqueles tradicionais) encontrará amparo no artigo 216, parágrafo 1º, parte final, da CF/88, que instituiu o princípio da máxima amplitude dos instrumentos de proteção ao patrimônio cultural.
Importante ressaltar que a partir do momento em que um determinado bem é individuado e reconhecido como integrante do patrimônio cultural brasileiro, ele passa a ser regido por um regime jurídico especial que o diferencia dos demais bens. Independentemente de tratar-se, segundo a concepção tradicional, de bem público ou privado, os bens culturais são considerados pela doutrina mais moderna como sendo bens de interesse público, em razão da relevância de sua preservação para fruição das presentes e futuras gerações.
O valor cultural sobreposto a determinado bem limita a extensão do direito de propriedade e legitima o poder de intervenção do poder público sobre a coisa, nos exatos termos do entendimento hodiernamente plasmado no artigo 1.228, parágrafo 1º do Código Civil brasileiro.
Assim, os proprietários de bens culturais devem exercer o direito sobre eles não unicamente em seu próprio e exclusivo interesse, mas em benefício da coletividade, observando-se todo o regramento constitucional e legal sobre a proteção do patrimônio cultural, sendo precisamente o cumprimento da função social que legitima o exercício do direito de propriedade pelo titular.
No que tange à gestão do patrimônio cultural brasileiro, nada justifica a omissão ou a negativa de se prestar informações a tal respeito por parte dos órgãos públicos em geral, pois de acordo com o que preconiza o princípio da publicidade ou da máxima transparência, a administração há de agir de sorte a nada ocultar, suscitando, ao contrário, a participação fiscalizatória da cidadania, na certeza de que nada há, com raras exceções constitucionais, que não deva vir a público em uma verdadeira democracia[1].
Por isso, todas as informações relacionadas direta ou indiretamente à proteção e gestão de bens integrantes do patrimônio cultural brasileiro podem ser consideradas como informação ambiental cultural.
Em tal cenário, encontra especial relevo o papel do Registro de Imóveis, que é considerado pela doutrina como um órgão auxiliar do Direito Civil destinado ao assentamento de títulos públicos e privados, outorgando-lhes oponibilidade a terceiros, com ampla publicidade e destinado ao controle, eficácia, segurança, divulgação e autenticidade das relações jurídicas envolvendo imóveis.
Marcelo Melo, em sua obra intitulada Meio ambiente e Registro Imóveis, ensina que:
A publicidade registral é tida como um dos tesouros mais preciosos do amadurecimento do espírito jurídico, uma nova forma de ser do direito de propriedade sobre o qual se assentam o sistema financeiro, a tutela do crédito e a segurança das transações imobiliárias. Para Garcia Garcia, a “publicidade registral é a exteriorização continuada e organizada de situações jurídicas de transcendência real para produzir cognoscibilidade geral erga omnes e com certos efeitos jurídicos substantivos sobre a situação publicada”.
Se, por um lado, é sabido que a eficácia dos atos administrativos que tratam da proteção do patrimônio cultural não tem sua eficácia subordinada ao Registro de Imóveis, fato é que a publicidade registral imobiliária constitui um plus em relação à publicidade legal decorrente daqueles atos, contribuindo para maior amplitude do acesso à informação, gerando maior segurança jurídica e potencializando o alcance dos instrumentos protetivos.
Trata-se, tecnicamente, da chamada “publicidade notícia”, que cria o reforço de uma publicidade já existente ou definida em outros meios, diferindo-se da publicidade declarativa (necessária para eficácia de atos em relação a terceiros) ou da publicidade constitutiva (indispensável para que os atos produzam seus efeitos)[2].
O artigo 167 da Lei de Registros Públicos traz um elenco de instrumentos passíveis de serem matriculados, registrados ou averbados no Cartório de Registro de Imóveis, conquanto não haja previsão de qualquer mecanismo especificamente voltado à proteção do patrimônio cultural.
A falta de previsão expressa, entretanto, não afasta a possibilidade de uso do Registro de Imóveis para maior proteção do patrimônio cultural, pois conforme ensina o ilustre doutrinador Walter Ceneviva: “A enumeração constante do inciso I do art. 167 da lei 6015/93 é exemplificativa, na medida em que não esgota todos os registros possíveis”[3].
A própria Lei de Registros Públicos, em cláusula de abertura, prevê que: “Art. 246. Além dos casos expressamente indicados no item II do art. 167, serão averbadas na matrícula as sub-rogações e outras ocorrências que, por qualquer modo, alterem o registro”.
Dessa forma, considerando os princípios da publicidade (o registro deve tornar público e dar conhecimento a todos das particularidades incidentes sobre os bens registrados) e da concentração (devem ser concentrados no Registro de Imóveis todos os atos e fatos que possam implicar na alteração jurídica da coisa ou que possa repercutir no interesse de terceiros), e tendo em vista que o rol das hipóteses sujeitas à averbação na matrícula do artigo 167 da Lei 6.015/73 não é exaustivo, é cabível o lançamento no Registro de Imóveis de todo e qualquer ato que possa implicar em limitação ao direito de propriedade ou que possa repercutir na esfera jurídica alheia, o que é típico dos atos que envolvem a proteção do patrimônio cultural.
Esse entendimento encontra expressa acolhida, por exemplo, no Provimento 58/89 da Corregedoria-Geral de Justiça de São Paulo[4], que, no Tomo II, trata das normas de serviço dos cartórios extrajudiciais e que no Capítulo 20, item 11, b, 20, estabelece que:
No Registro de Imóveis, além da matrícula, serão feitos: a averbação de: restrições próprias dos imóveis reconhecidos como integrantes do patrimônio cultural, por forma diversa do tombamento, em decorrência de ato administrativo ou legislativo ou decisão judicial específicos; tombamento provisório e definitivo de bens imóveis, declarado por ato administrativo ou legislativo ou por decisão judicial; restrições próprias dos imóveis reconhecidos como integrantes do patrimônio cultural, por forma diversa do tombamento, em decorrência de ato administrativo ou legislativo ou decisão judicial específicos; restrições próprias dos imóveis situados na vizinhança dos bens tombados ou reconhecidos como integrantes do patrimônio cultural.
Nos termos do entendimento acima, leis de diretrizes especiais, decretos de desapropriação e inventários de proteção que incidam sobre imóveis, entre outros instrumentos, poderão ser levados ao Registro de Imóveis.
Quanto ao tombamento, a previsão do artigo 13, caput, do DL 25/37 constitui-se hipótese especial e expressa justificadora da averbação.
Walter Ceneviva, em comentários ao artigo 246 da LRP, ensina que: “O tombamento altera o registro e, portanto, é averbável. Consiste em ato de autoridade competente de que resultam restrições à alienação e ao uso do imóvel”. São dois os objetivos principais dessa averbação: dar publicidade da restrição em relação a terceiros que tenham interesse pelo bem, mormente possíveis adquirentes; e assegurar a verificação do cumprimento das regras relativas ao direito de preferência que toca à União, aos estados e aos municípios, nos termos do previsto no artigo 22, parágrafo 1º do DL 25/37.
Reitere-se que a averbação à margem do registro imobiliário não constitui condição de validade ou eficácia do tombamento e a sua ausência não afasta os efeitos protetivos do instituto[5], pois a simples publicidade do ato de tombamento é o suficiente para gerar a presunção de seu conhecimento por terceiros, independentemente da averbação imobiliária que, entretanto, é sempre recomendável, conquanto não obrigatória.
Outra hipótese em que o Registro de Imóveis pode ser utilizado com proveito diz respeito ao trâmite de ações judiciais ou da existência de decisões envolvendo a proteção do patrimônio cultural (uma ação civil pública que pretende a declaração do valor cultural de um casarão, ou uma liminar que impede a construção de determinada obra em um terreno, por exemplo). Nesses casos, a averbação no Cartório de Registro de Imóveis serve tanto para assegurar publicidade em relação à pretensão ou restrição, em si, como para acautelar interesses de possíveis terceiros adquirentes, notadamente porque a obrigação de conservar ou restaurar bens imóveis dotados de valor cultural tem natureza propter rem.
Sobre o tema, há precedente do STJ considerando legítima, inclusive para fins de proteção dos direitos dos consumidores, a averbação no Registro de Imóveis da existência de ação civil pública envolvendo empreendimento imobiliário sem licenciamento ambiental. A decisão do STJ invoca o direito básico dos consumidores à informação adequada aos consumidores, bem como os princípios da transparência e boa-fé[6].
No mesmo sentido:
AVERBAÇÃO DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA NA MATRÍCULA DO IMÓVEL. POSSIBILIDADE. PRECEDENTES JURISPRUDENCIAIS. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. Com o intuito de resguardar os terceiros de boa-fé, deve ser acolhido o pedido para propiciar a publicidade a respeito da existência da ação civil pública junto ao registro de imóveis (TJ-MS; AI 1405641-86.2014.8.12.0000; Ponta Porã; 4ª Câmara Cível; rel. des. Dorival Renato Pavan; DJMS 23/9/2014; pág. 14)
Por fim, e dentro da mesma lógica, como forma de se dar publicidade à atuação do Ministério Público e prevenir a ocorrência de atos lesivos ao meio ambiente cultural ou ao direito de terceiros, entendemos ser plenamente possível a inserção no Registro de Imóveis, tanto da existência de investigação formal em sede ministerial, a exemplo de inquérito civil público, quanto da celebração de eventual termo de ajustamento de conduta envolvendo imóvel de valor cultural.
A legitimidade do Ministério Público para requerer a averbação está prevista no artigo 13, III, da Lei de Registros Públicos[7] combinado como artigo 26, VI, da Lei 8.625/93[8].
Ante o exposto, concluímos que o Registro de Imóveis mostra-se, potencialmente, como um importante aliado na difusão de informações relacionadas à proteção do patrimônio cultural, podendo ser considerado como mais uma forma de acautelamento de tal bem jurídico, nos exatos termos do que prevê o artigo 216, parágrafo 1º, da Constituição Federal.
[1] FREITAS, Juarez. O Controle dos Atos Administrativos e os princípios fundamentais, 2.a. ed. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 70.
[2] Melo, Marcelo Augusto Santana de. O meio ambiente e o registro de imóveis. p. 35. In: CRIADO, Francisco de Asís Palacios et. all. Registro de imóveis e meio ambiente. São Paulo: Saraiva. 2010. p. 17-90.
[3] Lei dos Registros Públicos comentada; Editora Saraiva, 8ª Edição, 1993, pág. 288.
[4] http://www.tjsp.jus.br/Download/Corregedoria/NormasExtrajudiciais/NSCGJTomoII.pdf.
[5] MIRANDA, Marcos Paulo de Souza. Lei do Tombamento Comentada. Belo Horizonte: Del Rey. 2014. p. 78.
[6] REsp 1.161.300 – SC (2009/0197645-0) – rel. ministro Herman Benjamin.
[7] Art. 13. Salvo as anotações e as averbações obrigatórias, os atos do registro serão praticados: III – a requerimento do Ministério Público, quando a lei autorizar.
[8] Art. 26. No exercício de suas funções, o Ministério Público poderá: VI – dar publicidade dos procedimentos administrativos não disciplinares que instaurar e das medidas adotadas;
* Marcos Paulo de Souza Miranda é promotor de Justiça em Minas Gerais, especialista em Direito Ambiental, secretário da Associação Brasileira dos Membros do Ministério Público de Meio Ambiente, professor de Direito do Patrimônio Cultural, integrante da Comissão de Memória Institucional do Conselho Nacional do Ministério Público e membro do International Council of Monuments and Sites (Icomos) Brasil.