(Princípio da legalidade -Vigésima-primeira parte)
Des. Ricardo Dip
435. Já examinado, ainda que com uma inevitável escassez ditada pelas circunstâncias, o tema da competência para a expedição de títulos administrativos, devemos agora considerar outras formalidades extrínsecas desses documentos de origem administrativas. Fala-se aqui em outras formalidades, porque, em rigor, a competência também deve inserir-se no âmbito da forma dos títulos emitidos pela Administração pública.
436. Se, de um lado, acerca dessas formalidades, parece ajustar-se, no quadro brasileiro, a crítica de que, muitas vezes, delas faltam, nas leis e nos regulamentos, indicações explícitas e completas, há, de outro lado e paradoxalmente, uma diáspora de seus requisitos ao largo de inúmeros textos normativos editados nas diferentes esferas políticas de nosso Estado composto (União, Estados-membros, Municípios, Distrito federal).
Isto agrava em complexidade a qualificação registral dos títulos administrativos no que diz respeito ao controle de suas formalidades extrínsecas, complicador a que ainda pode acrescentar-se o tema da sua variedade, já enquanto esses títulos configuram atos-continentes (vale dizer, o modo como eles se exteriorizam; com frequência, os atos-continentes manifestam-se sob a forma de certidão ou traslado, ao modo de um espelho dos expedientes da Administração pública), mas também no que concerne ao controle dos atos administrativos, enquanto eles sejam atos-conteúdos (título em sentido material: p.ex., aprovação, autorização, dispensa, homologação, licença, permissão, protocolo, renúncia, visto, etc.), cada qual com suas características. Saliente-se que cabe estimar-lhes a variedade, até mesmo, à vezes, sob um mesmo nomen de ato-continente: v.g., alvará, com que tanto pode instrumentar-se uma licença −assim, um alvará de licença para construir, ato administrativo vinculado, presumidamente definitivo−, quanto veicular-se a autorização, tal a de trânsito por algum lugar, ato administrativo discricionário, precário.
Além disto, pode dar-se o caso de eventuais atos normativos −ao menos os atos nominalmente normativos−, como o sejam leis (de efeitos concretos: p.ex., para instituir-se servidão administrativa), decretos, resoluções, deliberações, e atos ordinatórios: instruções, portarias, ofícios, e via dicendo, serem atraídos ao registro de imóveis, desde que veiculem conteúdo que possuam virtualidade para uma eficácia de transcendência real imobiliária.
Por toda essa amplitude é que, com bons fundamentos, disse Ramón de la Rica Maritorena, que, em matéria de títulos administrativos, “sería difícil no pecar de incompleto y pretender relacionarlos de modo exhaustivo practicamente imposible”.
437. Para mais, não se pode ladear a circunstância de que, entre os títulos administrativos devam não só contar-se os unilaterais (figura comum dos atos administrativos), mas também os bilaterais, que empolgam quer os contratos de que a Administração pública participa com sua potestas, a qualidade de seu Poder público (contratos administrativos, regidos só pelo direito público), quer os contratos “privados” da Administração pública (contratos da Administração)− que, sem prejuízo de sua subordinação predominante ao direito público, são, em parte, atrativos de alguma sorte de regência de direito privado. (Para o caso brasileiro, dispõe o art. 54 da Lei n. 8.666/1993, de 21-6, que os contratos administrativos “regulam-se pelas suas cláusulas e pelos preceitos de direito público, aplicando-se-lhes, supletivamente, os princípios da teoria geral dos contratos e as disposições de direito privado”. Todavia, adverte Marçal Justen Filho que “certas atividades não comportam a aplicação do regime de direito público, porque isso produziria a desnaturação do mercado privado, da livre concorrência e de outros valores protegidos constitucionalmente”).
438. Necessita-se de todo um tratado para, portanto, versar a largueza e profundidade da qualificação dos títulos administrativos.
Sem embargo, é possível um acercamento da matéria, e a doutrina tem indicado alguns requisitos que podem servir de bússola para os fins dessa qualificação registral. Assim −tal pode recolher-se em Chico Ortiz, De la Rica e Martínez Santos−, têm-se por necessárias para o acesso registral de um título administrativo
(i) sua integralidade,
(ii) a determinação imobiliária −quando não mesmo a especialidade objetiva−,
(iii) a determinação subjetiva,
(iv) a congruência do título em si próprio,
(v) sua correlação com o registro ou averbamento rogado,
(vi) sua subscrição,
(vi) sua validade temporal e
(vii) sua harmonia, quando o caso, com o trato consecutivo e a especialidade objetiva.
438. Aferir a integralidade de um dado título administrativo consiste em verificar-lhe a completeza, ou seja, se o documento administrativo contém, de par com o título ordinário, os títulos complementares que, em cada situação −normativa e de fato−, sejam exigíveis (p.ex., plantas que, segundo a lei de regência, devam acompanhar alvarás de licença de loteamento; laudos de inspeção técnica, nas vistorias).
Sem que se saiba a que determinado imóvel se refere um título administrativo, carece ele de suporte material para sua validade e aplicação, e, em alguns títulos, além de, por evidente, exigir-se a individualização do órgão administrativo (fundamental para o controle do tema da competência atribucional), cabe também a determinação subjetiva de outros partícipes (é o caso, p.ex., das convenções celebradas entre o Poder público e particulares para a instituição de servidões administrativas).
O título administrativo deve ter congruência interna, equivale a dizer: não pode opor-se a si próprio. Não se trata, aqui, de mero (e suplantável) problema de incongruência nominal (v.g., designar-se “alvará de licença” um documento de “autorização”), porque o registrador deverá considerar, em princípio, levar em conta o conteúdo e não o nomen do título em sentido formal. O tema da incongruência interna ou endógena é o da oposição no âmbito do próprio conteúdo do ato: expede-se, p.ex., uma alvará de licença edilícia, noticiando-se, contudo, que o projeto de edificação não foi aprovado.
Também deve considerar-se a relação do título administrativo com o registro ou averbação solicitados; nem todo ato administrativo comporta inscrição no registro imobiliário (tome-se aqui por exemplo um alvará de autorização para o corte de uma árvore num dado imóvel; este documento, embora se refira a um prédio matriculado, não se atrai ao registro).
O título administrativo deve estar subscrito (ainda que eletronicamente) e, além disto, quando o caso (de a lei o ditar), referir o prazo de sua validade temporal.
Por derradeiro, põe-se, se não sempre, com alguma frequência, o problema do cotejo do título com o registro anterior, para o controle tanto do trato consecutivo, quanto da especialidade objetiva. Ali, p.ex., para verificar se um acordo relativo a uma servidão administrativa ou a uma compra e venda ou doação convencionadas sob a rubrica de “desapropriação amigável” observam o requisito do consentimento formal dos legitimados tabulares. Ou ainda, já agora versando o problema da especialidade imobiliária, se o prédio objeto de negócios jurídicos com a Administração apresenta harmonia com a o imóvel de que trata o registro vigente.
439. É fácil ver que há, neste campo vastíssimo, um mundo de questões a explorar e de controvérsias.
São temas conflitivos como o do controle registral do valor dos impostos incidentes em negócios imobiliários −saber até mesmo se a recolha dos tributos deva ser requisito para a registração (ou se sua exigência fomenta o clandestinismo predial)− ou o da aferição dos limites em que o conteúdo dos atos administrativos pode comportar a qualificação registral (em outras palavras: até que medida a presunção iuris tantum de legitimidade dos atos administrativos interdita seu controle administrativo póstero pelo registrador, por ele que também exercita função administrativa? Ou seja: como se dá a sobreposição de controles administrativos?). São temas, enfim, que abrem um larguíssimo espectro de discussão, a exigir, tal se disse, um tratado,que não é possível substituir-se por esta série acanhada de artigos. Ficam apenas algumas aproximações, à espera de estudos aprofundados.
Neste âmbito extenso frui de particular interesse o problema da “recusa” ou desaplicação administrativa da lei, mormente se a atuação contra legem se assenta em sua inconstitucionalidade (em outros termos: pode o órgão administrativo negar de maneira expressa a observância de uma lei subconstitucional? Pode o registrador qualificar negativamente um ato administrativo por entendê-lo viciado de incompatibilidade vertical?).