Responsável por comandar a Seção de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo, o desembargador Ricardo Henry Marques Dip fica incomodado com a tendência de desembargadores a apresentar votos longos e recheados de citações, mas defende com veemência o respeito à independência da magistratura. Segundo ele, a jurisprudência não deve engessar a atividade de juízes, como se todos fossem “soldadinhos de chumbo”.
 
“Hoje a doutrina perdeu muito espaço factual como fonte do Direito; o costume, nem se diga; só se atende aos julgados de turno”, afirma. O importante, segundo ele, deve ser sempre a substância da decisão, ou substância do justo.
 
Para o desembargador, um exemplo nesse sentido são os precedentes que permitem a mudança de informações pessoais em registros civis. No próprio TJ/SP há decisões que autorizam a troca de gênero mesmo quando a pessoa não passou por cirurgia de mudança de sexo. Ele tem entendimento contrário. Negando qualquer preconceito, Dip afirma que as sensações individuais não podem mudar a função dos registros públicos como “repositórios da verdade”. “Com o direito à volúvel felicidade hiperindividualista, cria-se um problema grave, porque se abandona um legado de segurança.”
 
Dip acumula experiência na área: atuou na 1ª Vara de Registros Públicos de São Paulo, foi assessor da Corregedoria-Geral da Justiça nesse mesmo tema (1986-1987 e 1991-1992) e já lecionou sobre o assunto na Escola Paulista da Magistratura. Convidado a auxiliar a ministra Nancy Andrighi na Corregedoria Nacional de Justiça, a partir de 2014, também a representou em eventos que tentam uniformizar critérios de registros e notas no país. Em dezembro de 2016, lançou o livro Seguridad jurídica y crisis del mundo posmoderno (Segurança jurídica e crise do mundo pós-moderno), em Madri, na Espanha.
 
Há um ano, ocupa a cadeira da Seção que reúne 20 câmaras ordinárias (incluindo duas especializadas em meio ambiente); 90 desembargadores, 23 juízes substitutos em segundo grau, 4 juízes convocados e 29.945 processos em andamento, até novembro de 2016. “A tarefa é muito trabalhosa, sabe? Eu estava acostumado com um trabalho mais tranquilo. De meia em meia hora, aqui, há gente querendo falar comigo, marcando audiência, versando dezenas e dezenas de assuntos.”
 
Foi em meio a esse trabalho que o desembargador recebeu a equipe do Anuário da Justiça. Também formado em Jornalismo e de perfil reservado, aceitou avaliar o andamento do Direito Público em São Paulo, tratou da judicialização da saúde e apontou mudança no julgamento de ações de improbidade administrativa — que deixou de funcionar como um “juizado de pequenas causas”. Declarou ainda que as regras do novo Código de Processo Civil não devem gerar a celeridade almejada.
 
Leia a entrevista:
 
ConJur — Como o senhor avalia o funcionamento atual da Seção de Direito Público do TJ/SP?
 
Ricardo Dip — Preciso reconhecer que as administrações anteriores foram muito boas; então, meu trabalho tem sido favorecido. Além disso, a Seção é muito boa tanto no plano da qualidade dos magistrados que a integram, quanto no da quantidade da repartição de justiça. É claro que não podemos desconsiderar o ritmo pessoal das ponderações de cada julgador diante dos processos. A celeridade, por si só, porém, não é virtude nem vício; é só um acidente da distribuição do justo, e nem sempre a rapidez se compatibiliza com a meditação exigível em dados processos. A decisão jurisdicional é ato de prudência e não de fabricação de coisas.
 
O principal gargalo na tramitação dos processos não é culpa de nossa corte: é o problema do cadastro desses processos na ascensão dos recursos especiais. Delegou-se para nós o trabalho físico, burocrático, do cadastramento dos processos. Então, quando se trata de processar o recurso especial, é preciso parar tudo, extrair todas as folhas dos autos, escaneá-las, depois despachá-lo… Isto leva um tempo muito grande. Estamos falando em uma entrada média de 25 mil recursos por mês.
 
E, hoje em dia, há quem entenda que todo acórdão precisa ter muitas laudas para ser considerado bom. Lembro-me que o ministro [José Geraldo Rodrigues de] Alckmin, um grande ministro do Supremo Tribunal Federal, escrevia votos curtos, muito claros. Agora, pensam alguns que escrever longamente é o único jeito de evitar as nulidades. Parece-me excessiva essa tendência de largos textos.
 
ConJur — Enquanto presidente da Seção, o senhor pode orientar que os desembargadores atuem nesse sentido?
 
Ricardo Dip — Não. Esse é um ponto de honra para mim: não deixar que a administração intervenha na orientação jurisdicional. Tem-se crescentemente falado em independência do Poder Judiciário, e cada vez menos na independência do juiz. A independência verdadeira na função jurisdicional é a de cada juiz, do magistrado lá de Mirante de Paranapanema, de Itapecerica da Serra, da minha antiga Comarca de Sertãozinho, do juiz substituto que está proferindo sua primeira sentença. Essa independência é que interessa para nós enquanto partícipes do bem comum.
 
ConJur — Essa ampla autonomia não pode afetar negativamente a jurisprudência?
 
Ricardo Dip — Nos casos jurídicos, por sua mesma natureza, sempre haverá diferenças, distinções e contradistinções. Além disto, o volume de questões apresentadas ao Judiciário é tão grande que se torna difícil, quando não impossível, fixar tudo, com uma espécie de solidez imprudente que mal ou nada resiste à experiência.
 
De par com o tema das circunstâncias de cada caso, a exigir peculiar estimativa, há também o da modificação do próprio entendimento dos magistrados. Considere-se um exemplo: o do recente julgado do Supremo Tribunal Federal sobre a prisão [logo após condenação] em segunda instância. Poucos meses depois de uma definição importante sobre isto, manteve-se, já agora mais apertada, a mesma solução, mas com a mudança de um voto [o ministro Dias Toffoli acompanhou voto vencedor de um pedido de Habeas Corpus, em fevereiro, que reconheceu a prisão antes do trânsito em julgado; em outubro, quando foram pautadas duas ações de controle concentrado, declarou que a pena só deveria ser decretada depois de decisão do Superior Tribunal de Justiça].
 
Se, em um caso como esse, estamos sujeitos a modificação, imagine-se em outros tipos menos delimitados de situação. No fundo, estamos em busca de uma segurança que não existe, uma segurança absoluta na vida humana. Nós não sabemos se daqui a dois minutos estaremos vivos. Então temos que nos acostumar com algumas surpresas da vida.
 
ConJur — Mas o Judiciário não busca uniformizar as decisões?
 
Ricardo Dip — Aristóteles faz uma indagação muito interessante: ao estudar um dado assunto, devemos sempre partir da estaca zero? Ele faz uma sugestão muito prudente: nós temos que saber fazer as perguntas, descobrir as premissas prováveis. E como descobri-las? Verificando o que disseram todos, ou pelo menos a maioria, incluindo os mais sábios. Partimos disso como de uma verdade provisória.
 
No campo do Direito precisamos dar audição ao ensinamento da jurisprudência doutrinária e da pretoriana, mas, como disse muito bem o ministro [aposentado Cesar] Peluso, nosso respeito maior é, ao divergimos dessa jurisprudência, mostrar por que divergimos, e não sempre acatar tudo, como se fôssemos “soldadinhos de chumbo”. Hoje a doutrina perdeu muito espaço factual como fonte do Direito; o costume, nem se diga; só se atende aos julgados de turno. Ainda bons doutrinadores têm, às vezes, incidido em conduta que, com todo o respeito, não me parece adequada: “Sempre pensei, dizem, que isto fosse branco, mas, como o Supremo disse outro dia que é vermelho, passo a dizer que é vermelho”. Não se trata de persuasão, mas de adesão ao critério do magister dixit.
 
Um atualíssimo exemplo disso é a autorização para que pessoas alterem a enunciação de sua a identidade nos cartórios de registro civil. O problema começa a ser grave quando alguém quer impor à sociedade uma identidade a que se atribui arbitrariamente. Se alguém hoje disser “não me sinto João, me sinto Maria”, é questão identitária individual. O problema põe-se politicamente quando essa sensação individual tenta modificar o registro civil. Com o direito à volúvel felicidade hiperindividualista, cria-se um problema grave, porque se abandona um legado de segurança.
 
Se alguém obrigar o registro civil, ao só capricho do postulante, a alterar a menção de seu sexo, de masculino para feminino, outra pessoa poderá dizer que não se sente feliz em ter 65 anos; quer ter 40… Vamos ter, enfim, que decidir se queremos uma sociedade respeitosa da verdade ou se apenas respeitosa da vontade individual e arbitrária de cada um.
 
ConJur — O senhor defende então que sejam adotados parâmetros: quem fizer a cirurgia para mudança de sexo, por exemplo, pode mudar o registro?
 
Ricardo Dip — Há uma pergunta preliminar, e é a seguinte: qual conceito de sexo está sendo adotado? É o sexo fenotípico? Cromossômico? Psicológico? Gonádico?
 
A verdade entende-se aquilo que não depende da minha inteligência para existir. Os registros públicos deveriam funcionar como repositório da verdade, ou então não servem para nada. Não se trata, portanto, de preconceito, discriminação, desejo de invadir a liberdade de atuação de cada um, de atentar contra o tal direito à felicidade. Os registros de interesse da sociedade não podem ser o repositório das arbitrariedades pessoais que se imponham a toda a vida social. Se alguém faz cirurgia para mudar o sexo fenotípico, suposto se entenda que essa mudança deva constar do registro, a informação verdadeira que deve ali constar exige que se indique o fato da cirurgia. De não ser assim, o registro passará a ser um lugar de recolha de, no máximo, meias verdades.
 
ConJur — Os tribunais superiores estão com muitos pedidos de repercussão geral e recursos repetitivos. O senhor tem alguma sugestão para agilizar as demandas?
 
Ricardo Dip — Francamente, não. A Constituição Federal de 1988 se preocupou com as gerações futuras, com um mundo que não era o nosso. Acho que é apenas mais um caso, comum desde nossa primeira Constituição republicana, de um código de política silogística, para lembrar aqui a célebre expressão de Joaquim Nabuco. Gerou-se um “demandismo” imenso, impulsionou-se a procura pelo Judiciário sem dar-lhe meios para enfrentar essa demanda toda. Tenho citado em meus votos um psiquiatra alemão, Manfred Lütz, que considera loucura qualquer país colocar nas suas leis o direito à saúde. O Brasil colocou… E como clausula pétrea! Há uma avalanche correspondente.
 
ConJur — A avaliação da situação econômica da pessoa é parâmetro importante diante da judicialização da saúde?
 
Ricardo Dip — A Constituição não diz isso, a assistência é universal.
 
ConJur — O senhor avalia que o Estado é obrigado a arcar com um tratamento experimental nos Estados Unidos, por exemplo?
 
Ricardo Dip — Esse é um problema delicado, é preciso examinar caso a caso. Nossa legislação prevê que remédios em fases de experiência já possam ser distribuídos, e não só os aprovados na lista do SUS.
 
ConJur — Esse entendimento inclui a fosfoetanolamina, a chamada “pílula contra o câncer”?
 
Ricardo Dip — Na fase de apreciação de pedidos liminares, concedi todos, deferindo medidas de urgência para determinar que a Universidade de São Paulo fornecesse a substância, porque preferi seguir o princípio in dubio pro vita. Ao analisar pela primeira vez o mérito de um caso a mim distribuído, considerei temerário impor ao Estado, com base apenas em testemunhos extrajudiciais e sem nenhum amparo do médico assistente, a obrigação de fornecer pílulas sobre a qual ainda não há estudos científicos suficientes para garantir sua eficácia e tampouco segurança no uso por seres humanos.
 
ConJur — Como foi a adaptação ao novo Código de Processo Civil?
 
Ricardo Dip — Os colegas têm se queixado muito de alguns pontos. Se a ideia era a de celeridade, não será com esse Código que conseguiremos obtê-la. Vejam a situação do julgamento dos Incidentes de Resolução de Demandas Repetitivas, por exemplo. O desembargador [Luis Antonio] Ganzerla já declarou, durante uma sessão pública, que qualquer incidente que ingresse na Turma Especial tende a demorar um ano de paralisação do processo. O instrumento é interessante, na tentativa de estabilizar a jurisprudência, mas ninguém havia pensado antes nesse problema da demora. Mas, enfim, a função do juiz é aplicar a lei da forma melhor possível.
 
ConJur — Por que demora tanto tempo?
 
Ricardo Dip — Processamento. Há a fase de admissibilidade, é preciso dar vista à parte contrária. E estabilizar a jurisprudência só é bom se a jurisprudência for boa. A estabilidade é importante, sem dúvida, mas não é mais importante do que a substância da decisão – é dizer, a substância do justo. É preciso ter muita cautela para bem fixar as teses e limitá-las, do contrário poderão ficar muito amplas, e os casos concretos anteciparão o inferno. A Turma Especial, que julgava as dúvidas de competência, passou a ter uma importância maior dentro da Seção. A desembargadora Luciana Bresciani — um modelo para a magistratura — tem marcado pelo menos duas sessões por mês para a Turma.
 
ConJur — Para substituir os embargos infringentes, o novo CPC determina novo julgamento quando o resultado da apelação não for unânime. Essa nova regra tem gerado problemas?
 
Ricardo Dip — Só em algumas situações esporádicas. Na 11ª Câmara, a minha estimada câmara de origem, houve um período em que nós ficamos só com quatro membros. Um estava viajando, e eu, afastado. Então pedi autorização para a Presidência do tribunal e voltei para julgar um ou outro caso, de forma excepcional. Para outra câmara, sugeri que convidassem um juiz substituto em segundo grau, para integrar a turma do julgamento expansivo. Foram procedimentos práticos para evitar delongas e julgar o mais adequadamente possível.
 
ConJur — Geralmente esses julgamentos ocorrem na próxima sessão?
 
Ricardo Dip — Na 11ª, na maior parte das vezes o caso é votado no mesmo dia. Na Câmara Especial, por vezes se julga bastante no mesmo dia, quando há sustentação oral e o caso está “vivo”; e em outras situações, alguém pede vista para julgar na sessão seguinte. Depende se o juiz responsável por proferir o voto se sente suficientemente instruído de fato para julgar de pronto…
 
ConJur — O novo CPC também prevê sustentação oral por videoconferência. Há alguma previsão para que a regra seja adotada?
 
Ricardo Dip — Isso está em discussão no Conselho Superior da Magistratura, porque demanda um aporte técnico que não é muito simples. O tema está sendo estudado.
 
ConJur — Tem aumentado o número de audiências de conciliação e mediação, fixadas pelo novo CPC?
 
Ricardo Dip — De modo geral, esse tema no Direito Público é pouco frequente, porque a Fazenda não costuma fazer acordo.
 
ConJur — Existe diálogo da Seção de Direito Público com os demais órgãos públicos para reduzir litigiosidade?
 
Ricardo Dip — Isso já foi feito em administrações anteriores. Sem a intenção de avaliar de forma negativa essa prática, entendo que o tribunal deve ser independente, julgar o que lhe aparecer de casos. Não somos nós quem deve limitar as ações. Outro dia mesmo comentei isto com dois simpáticos defensores públicos que vieram visitar-me: o tribunal tem que ser independente, respeitoso das partes, mas não parceiro de parte alguma.
 
ConJur — Com a crise política e econômica, houve algum impacto na litigância na parte de Direito Público?
 
Ricardo Dip — Não parece que tenha ocorrido. O que aconteceu foi o seguinte: como a composição do tribunal há dez anos incluía muitos membros do antigo Tribunal da Alçada Criminal – de onde eu mesmo vim –, o perfil era muito rígido nos casos referentes à improbidade. Até começarmos a notar que apareciam muitos réus das cidades de 2 mil almas, ou seja, de cidades pequenas. Nós estávamos virando um juizado de pequenas causas de improbidade. Também começamos a compreender um pouco mais o problema da falta de consciência. Existem prefeitos que apenas assinaram algum documentou errado. Com o tempo nós começamos a descobrir que, no fundo, alguém estava pagando por coisas muito maiores. A jurisprudência está bastante consolidada, bastante calma. Os critérios são muito mais realistas. A Seção amadureceu. Não nos esqueçamos de que só foi criada há dez anos. Parece que houve uma evolução favorável neste sentido.
 
ConJur — No Conselho Superior da Magistratura, o senhor votou por reconhecer o direito de que juízes em segundo grau sejam chamados de desembargadores no exercício profissional…
 
Ricardo Dip — Votei favoravelmente para que sejam chamados segundo a função. O que me convenceu é o seguinte: eu tenho apoio de juízes auxiliares. Temporariamente, eles deixam de assinar segundo o local de que são titulares e passam a identificar-se na condição de “juiz auxiliar da Presidência da Seção”. Leva-se em conta a função que eles exercem, não seus cargos. O juiz substituto em segundo grau também deve ser tratado como tal. Ele está na função de desembargador. O voto dele vale tanto quanto o meu. Isso não quer dizer que eles vão ter outros benefícios.
 
Também é preciso reconhecer que eles passam por um momento peculiar… Alguns deles estavam à beira da promoção quando a mal designada “PEC da Bengala” aumentou o prazo da aposentadoria compulsória – de 70 para 75 anos. É natural certa angústia. Mas aqui na minha Seção tenho motivo de muita satisfação com os substitutos, todos trabalham com muita dedicação e são muito respeitosos.
 
ConJur — Como o senhor avalia sua atuação na Presidência da Seção de Direito Público, neste primeiro ano?
 
Ricardo Dip — A tarefa é muito trabalhosa, sabe? Eu estava acostumado com um trabalho mais tranquilo. De meia em meia hora, aqui, há gente querendo falar comigo, marcando audiência, versando dezenas e dezenas de assuntos. Antes, eu próprio sindicava os processos, pesquisava as fontes e redigia meus votos. Hoje, isso não é possível sem auxílio de assessores. Mas estou muito contente! Não tenho a pretensão de sair em dois anos com a casa pronta. Procuro fazer, tal como meus antecessores, e elevar a Seção para um patamar ainda melhor, dando um passo na linha de continuidade bem cultivada por aqueles que me precederam. Tenho-me dedicado efetivamente a fazer isso.