(Princípio da rogação ou instância -Sexta parte)
 
Des. Ricardo Dip
 
552. Tal o vimos, admite-se o mandato tácito na rogação registral, mas cabe agora indagar se, em algum caso, suposto seja o requerente de um registro pessoa diversa do interessado na inscrição −interessado segundo o registro (particeps secundum tabulam) e não segundo a plenitude dos interesses−, possa competir ao registrador controlar o consentimento desse interessado.
 
Esta indagação exige, à raiz, aferir a existência do mandato tácito, existência que, sendo embora uma questão de fato, só se objeta ordinariamente em situação de grave dúvida.
 
Afastada, porém que o seja, em dado quadro, a existência de mandato tácito, o pleito registral pode ainda admitir-se exercitado por terceiro interessado, de quem, no entanto, deverá o registrador solicitar esclarecimentos e prova bastante do interesse, designadamente na hipótese de solicitarem-se inscrições perfilhadas em alguma sorte de cisão do título (p.ex., sendo Semprônia credora em título de primeira hipoteca especializada com o valor, suponha-se, de um milhão de reais, vem Tício, na condição de terceiro interessado, solicitar o registro desse título com o valor parcial de cem mil reais, sem adequada prova de consentimento da potencial credora hipotecária).
 
553. Passemos a tratar do pacto de não inscrição.  É dizer: pode assumir-se, em um negócio jurídico, a obrigação acessória de não fazer (obligatio non faciendi) que consista na renúncia à inscrição predial?
 
Não parece possa admitir-se essa renúncia pactuada à registração, de logo porque as inscrições imobiliárias têm função social, na medida em que por elas se demarcam os domínios prediais, situação que muito interessa à paz comunal (cf. Roca Sastre). Acrescente-se que a renúncia, ademais, não inibiria a solicitação registral por terceiro interessado, num sistema servil à amplitude subjetiva na promoção do registro. Além disto, no atual direito brasileiro posto, essa renúncia enfrenta o disposto no art. 169 da Lei n. 6.015/1973, norma que consagra a obrigatoriedade de todas as inscrições prediais.
 
Uma coisa, porém, é negar a viabilidade dessa renúncia −ainda que se suponha a licitude moral e jurídica dos fins a que ela vise (p.ex., salvaguardar a privacidade: Tício, tendo um filho natural a quem almeja doar um imóvel, não deseja expor publicamente o fato desta filiação)−, outra, muito diversa, é impedir que, já estando em curso o processo registral, da inscrição não possa desistir o solicitante (rogatio contra rogationem).
 
554. A desistência de um processo registral é categoria diferenciada da renúncia, porque esta, que tem caráter principal substantivo, é definitiva por natureza, ao passo que a desistência, tendo caráter principal adjetivo, não contempla a intenção de perpetuidade.
 
Nada obstante, a desistência produz, ao menos, efeitos dilatórios da inscrição, e isto é, quodammodo, uma eficácia temporária análoga à da renúncia.
 
Desistir é um modo de dispor, ou seja, de “posicionar coisas distintas”, o que implica a ideia de ordem (unidade numa multiplicidade). Com admitir a desistência −ou dispositio− de um processo registral em curso, tem-se de reconhecer que essa posição de desistência atua na mesma ordem de coisas em que, tal o caso do registro de imóveis no Brasil (art. 169 da Lei n. 6.015), vigora preceito de compulsividade da inscrição. Equivale a dizer que o registro, embora seja obrigatório, convive com alguma facultatividade ou disponibilidade, tanto originária (a falta de rogação: abstentio rogationis), quanto sobrevinda (a rogatio contra rogationem −a rogação que se dirige a retirar a prossecução dos efeitos de uma anterior).
 
A desistência do processo registral −que se formaliza por meio escrito− supõe sempre esteja esse processo in itinere. Uma vez concluída a inscrição, já não é possível desistir dos efeitos consumados da rogação precedente. Deste modo, tem-se que a desistência é sempre interina: ela exige a recepção antecedente da rogatio e não pode ir além do tempo da pendência do processo de registro.
 
555. Tanto a exigência da rogatio registral originária, quanto a admissão da rogatio contra rogationem −desistência de um registro rogado− reclamam que se considere o problema convivencial com o preceito da obrigatoriedade dos registros.
 
Ou seja, de um lado preceitua-se a compulsoriedade, e, de outro lado, admite-se a disponibilidade (não perpétua) da inscrição.
 
O que se trata de concertar aí é a exigência da publicidade imobiliária (enquanto apresenta a função social de demarcação dos domínios prediais) sobre o pano de fundo da autonomia de vontades, ou, em outros termos, uma conveniência de direito público em um território de direito privado.
 
É legítimo, nesta situação, que a lei estimule o mais possível a inscrição obrigatória, em atenção ao bem comum, mas não a ponto de cominar uma sanção demasiado grave para sua não observância. A normativa brasileira atual, por exemplo, não apenas tolera a largueza de tempo para a promoção das inscrições, senão que abdica de estatuir repressão específica para a omissão correspondente.
 
Realce-se, a propósito, nos termos do art. 217 da Lei nacional n. 6.015, como já ficou dito, “o registro e a averbação poderão ser provocados por qualquer pessoa”, o que justifica não se imputar mora ex re, de maneira singular, a uma ou a algumas delas, razão bastante para que a normativa de regência não assine prazo para “qualquer pessoa” promover o registro.
 
Nas obrigações sem prazo, a mora apenas pode reconhecer-se com a atividade do credor que diligencie o adimplemento obrigacional (era assim no Código civil de 1916, segunda parte do art. 960; é assim no Código Civil em vigor: “Não havendo termo, a mora se constitui mediante interpelação judicial ou extrajudicial” −par.ún. do art. 397). Assim, a mora, nas obrigações carentes de prazo certo, demanda “reclamação do cumprimento imediato feito pelo credor” (Antunes Varela), porque, “em tais casos, a obrigação não se vence pelo decurso do tempo, por mais longo que ele seja” (Agostinho Alvim). De sorte que, até regular constituição em mora, não se pode cogitar de ilicitude no comportamento objeto da obrigação, uma vez que “o ato ilícito consiste em o devedor deixar de efetuar oportunamente a prestação” (Galvão Telles).
 
556. Correntemente, na praxis registral, as rogações são genéricas: ainda quando se trate de solicitações literais, comumente não se explicita o modo da inscrição (é dizer, se se almeja um registro em sentido estrito ou um averbamento). Pode pensar-se aí numa rogatio in albis, que tem um antecedente de algum modo similar com a rogito medieval, ou seja, a traditio chartæ ad scribendum pela qual o pergaminho se entregava em branco ao notário (era uma sorte de suspensão do exercício judicial do direito correspondente −cf. Núñez Lagos).
 
Trata-se, com efeito, na mera rogação registralad inscriptionem, de uma rogação sine modō, uma rogatio ordinaria que contrasta −embora esta outra, entre nós, pouco frequente na praxis− com uma rogação registrária com intenção modal específica (rogatio modalis), por meio da qual o solicitante pontualiza seu intento de ato registrário sob modo específico: v.g., requer-se, de maneira explícita, o averbamento e não o registro de um dado título, quase sempre por visar-se a uma economia de gastos.
 
Desde que se saiba, com segurança, que se trate não de um equívoco de linguagem (o de pleitear-se, neste exemplo anterior, sob o nome “averbação”, a prática da inscrição que se entenda cabível), mas de uma firme intenção modal singular do solicitante, deve considerar-se caracterizada a rogatio modalis, de sorte que não se haja de meramente supor aí um lapso terminológico. A qualificação, neste quadro, deve remeter-se à intenção do solicitante.