Introdução
 
Em 18 de novembro de 2015, publicamos artigo denominado: A ata notarial para fins de usucapião tem conteúdo financeiro.[1] O objetivo daquele artigo era esclarecer a forma de cobrança da ata notarial para fins de usucapião administrativa, prevista no art. 216-A[2], da Lei nº 6.015/73, com redação dada pelo art. 1.071 da Lei nº 13.105/2015 (que também contém o novo CPC).
 
Também tinha como objetivo analisar a questão da desnecessidade de nova lei  estadual para adequar as tabelas a essa nova realidade da ata notarial para fins de usucapião, diferente de todas as demais atas notariais até então previstas no ordenamento jurídico brasileiro. Naquela oportunidade, explicamos que todas as leis dos Estados já tinham previsão de escritura com conteúdo financeiro e a ata notarial para fins de usucapião era uma espécie dessas escrituras. Esse entendimento foi expressamente reconhecido pela Corregedoria da Bahia.
 
Em dezembro de 2017, finalmente, o Conselho Nacional de Justiça – CNJ, por meio do Provimento nº 65, de 14 de dezembro de 2017, que é uma norma interpretativa, reconheceu que a ata notarial para fins de usucapião sempre teve conteúdo financeiro, tanto que determinou a aplicação imediata das tabelas estaduais referentes a escrituras com conteúdo financeiro. O presente artigo busca esclarecer sobre a norma interpretativa tributária, que pode entrar em vigor de imediato.
 
1- O Provimento nº 65/CNJ e os emolumentos para as atas notariais para fins de usucapião extrajudicial
Conforme o Provimento nº 65/CNJ, os emolumentos para as atas notariais para fins de usucapião extrajudicial, – seja para as atas notariais completas, seja para aquelas relacionadas à usucapião, – na ausência de lei estadual específica, serão aqueles previstos no art. 26, I. Assim, as atas notariais para fins de usucapião, todas elas, têm conteúdo financeiro:
 
Art. 26. Enquanto não for editada, no âmbito dos Estados e do Distrito Federal, legislação específica acerca da fixação de emolumentos para o procedimento da usucapião extrajudicial, serão adotadas as seguintes regras:
 
I – no tabelionato de notas, a ata notarial será considerada ato de conteúdo econômico, devendo-se tomar por base para a cobrança de emolumentos o valor venal do imóvel relativo ao último lançamento do imposto predial e territorial urbano ou ao imposto territorial rural ou, quando não estipulado, o valor de mercado aproximado. (sem grifos no original)
 
Importante observar que o CNJ determinou que, DE IMEDIATO, a cobrança deve ser feita considerando que a ata notarial é ato com conteúdo econômico, devendo ter por base o valor venal do imóvel para fins de IPTU ou ITR, ou, quando não estipulado, o valor de mercado.
 
2- A razão pela qual a ata notarial para fins de usucapião extrajudicial sempre teve conteúdo financeiro
No Congresso do CNB 2015, no qual foram comemorados os 450 anos do Notariado no Brasil, foi publicado o ENUNCIADO CNB 2015 nº 8, com o seguinte conteúdo: A ata notarial para fins de usucapião tem conteúdo econômico.
 
Obviamente a ata notarial tem conteúdo financeiro, posto que é REQUISITO ESSENCIAL, previsto em lei, para a aquisição da propriedade por meio da usucapião extrajudicial.
 
Mas qual a conseqüência da afirmação de que a ata notarial para fins de usucapião tem conteúdo financeiro?
 
Para melhor compreender a questão, é necessário analisar a Lei Federal 10.169/2000, que regula o § 2o do art. 236 da Constituição Federal, mediante o estabelecimento de normas gerais para a fixação de emolumentos relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro.
Determina a referida Lei Federal, no que interessa ao presente estudo:
 
Art. 1o Os Estados e o Distrito Federal fixarão o valor dos emolumentos relativos aos atos praticados pelos respectivos serviços notariais e de registro, observadas as normas desta Lei.
Parágrafo único. O valor fixado para os emolumentos deverá corresponder ao efetivo custo e à adequada e suficiente remuneração dos serviços prestados.
Art. 2o Para a fixação do valor dos emolumentos, a Lei dos Estados e do Distrito Federal levará em conta a natureza pública e o caráter social dos serviços notariais e de registro, atendidas ainda as seguintes regras:
I – os valores dos emolumentos constarão de tabelas e serão expressos em moeda corrente do País;
II – os atos comuns aos vários tipos de serviços notariais e de registro serão remunerados por emolumentos específicos, fixados para cada espécie de ato;
III – os atos específicos de cada serviço serão classificados em:
a) atos relativos a situações jurídicas, sem conteúdo financeiro, cujos emolumentos atenderão às peculiaridades socioeconômicas de cada região;
b) atos relativos a situações jurídicas, com conteúdo financeiro, cujos emolumentos serão fixados mediante a observância de faixas que estabeleçam valores mínimos e máximos, nas quais enquadrar-se-á o valor constante do documento apresentado aos serviços notariais e de registro.
Parágrafo único. Nos casos em que, por força de lei, devam ser utilizados valores decorrentes de avaliação judicial ou fiscal, estes serão os valores considerados para os fins do disposto na alínea b do inciso III deste artigo. (sem grifos no original)
 
Logo, ao interpretar a legislação estadual referente aos emolumentos, sempre já deveriam ter sido observadas as normas acima reproduzidas, pois são NORMAS GERAIS FEDERAIS, que fundamentam todas as leis de emolumentos dos Estados-membros.
 
E a Lei Federal nº 10.169/2000 estabeleceu critérios para a fixação dos emolumentos, determinando, de forma expressa, que os atos relativos a situações jurídicas sem conteúdo financeiro terão valores fixos e os atos relativos a situações jurídicas com conteúdo financeiro serão fixados mediante a observância de faixas de valor.
 
Assim, nos Estados nos quais a legislação somente prevê a ata notarial em valor fixo, há que se compreender, tendo em vista a determinação da lei federal, que aquela ata notarial  é a SEM CONTEÚDO FINANCEIRO.
 
E como se cobra a ata com conteúdo financeiro? Da mesma forma que se cobram todas as escrituras com conteúdo financeiro.
 
O conceito de escritura pública consta do Código civil:
 
Art. 215. A escritura pública, lavrada em notas de tabelião, é documento dotado de fé pública, fazendo prova plena.
 
Assim, o Código Civil considera “escritura pública” aquela que é lavrada em notas de tabelião, sendo dotada de fé pública, fazendo prova plena. Trata-se de um conceito de escritura em sentido amplo.
 
A palavra “escritura” pode ser usada em sentido amplo, como gênero, da qual são espécies: a procuração, a ata notarial sem conteúdo financeiro, a  escritura sem conteúdo financeiro e a escritura pública com conteúdo financeiro (que engloba tanto a ata notarial com conteúdo financeiro quanto as escrituras públicas em sentido estrito – ou seja, os negócios jurídicos).
 
O Código de Normas de Minas Gerais (Provimento nº 260/CGJ-MG) deixa ainda mais claro que a ata notarial para usucapião está compreendida no conceito de escritura pública com conteúdo financeiro, pois assim dispõe:
 
CAPÍTULO II
DAS ESCRITURAS PÚBLICAS
Art. 155. A escritura pública é o instrumento público notarial dotado de fé pública e força probante plena, em que são acolhidas declarações sobre atos jurídicos ou declarações de vontade inerentes a negócios jurídicos para as quais os participantes devam ou queiram dar essa forma legal.
§ 1º As escrituras públicas podem referir-se a situações jurídicas com ou sem conteúdo financeiro.
§ 2º Consideram-se escrituras públicas relativas a situações jurídicas com conteúdo financeiro aquelas cujo objeto tenha repercussão econômica central e imediata, materializando ou sendo parte de negócio jurídico com relevância patrimonial ou econômica, como a transmissão, a aquisição de bens, direitos e valores, a constituição de direitos reais sobre eles ou a sua divisão. (grifamos)
 
Assim, desde sempre, como se cobra a ata com conteúdo financeiro? Da mesma forma que se cobram todas as escrituras com conteúdo financeiro, ou seja, aplicando-se o item 4, b, da Tabela 1.
 
E tal conclusão também corresponde à determinação do parágrafo único do art. 1º da Lei Federal nº 10.169/2000, pois o valor fixado para os emolumentos deverá corresponder ao efetivo custo e à adequada e suficiente remuneração dos serviços prestados.
 
A ata notarial para fins de usucapião é tão trabalhosa[3] quanto qualquer outra escritura relativa a situação jurídica com conteúdo financeiro, já que deverá incluir o depoimento pessoal do requerente sobre o tempo de sua posse e de seus antecessores; o depoimento, se possível, dos titulares de direitos reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo e na matrícula dos imóveis confinantes; o depoimento, se possível, de todos os confrontantes da gleba a localizar, condôminos ou não; a descrição da ocupação após diligência do tabelião ou de seu preposto[4], se houver solicitação respectiva; a menção ao justo título ou a quaisquer outros documentos que demonstrem a origem, a continuidade, a natureza e o tempo da posse, tais como o pagamento dos impostos e das taxas que incidirem sobre o imóvel; a menção à planta e memorial descritivo mencionados no inciso II do art. 216-A; a menção às certidões negativas dos distribuidores da comarca da situação do imóvel e do domicílio do requerente; devendo permanecer arquivados no Tabelionato cópias simples de todos os documentos originais que instruirão a ata, que será juntada ao processo administrativo de usucapião.
 
Nesse sentido o ENUNCIADO CNB – 2015 nº 7:   
 
A ata notarial para fins de usucapião extrajudicial, prevista no inciso I do artigo 216-A do Código de Processo Civil, deve conter todas as informações e constatações possíveis para comprovar a existência da posse.
 
3- A norma interpretativa tributária
 
As normas tributárias interpretativas são aquelas declaratórias de direitos já assegurados por normas anteriores, sendo publicadas apenas para esclarecer o conteúdo dessas normas publicadas antes, integrando-se com o sistema jurídico vigente. Aliomar Baleeiro[5] esclarece sobre a norma interpretativa:
 
Apesar da cláusula “em qualquer caso”, cremos que o texto se refere à lei realmente interpretativa, isto é, que revela o exato alcance da lei anterior, sem lhe introduzir gravame novo, nem submeter à penalidade por ato que repousou no entendimento anterior.
 
O Código Tributário Nacional[6] admite até mesmo a retroatividade de norma tributária interpretativa, assim, não há dúvida de que pode o Conselho Nacional de Justiça, no Provimento nº 65, publicar uma norma que entra em vigor de imediato, porque simplesmente está esclarecendo que a lei estadual referente às escrituras com valor sempre foi aplicável às atas notariais para fins de usucapião.
 
Conclusão
 
Como já tínhamos esclarecido em 18 de novembro de 2015, no nosso artigo denominado A ata notarial para fins de usucapião tem conteúdo financeiro, a forma de cobrança da ata notarial para fins de usucapião administrativa, na ausência de norma específica, é a mesma aplicável às demais escrituras com conteúdo financeiro.
 
O Conselho Nacional de Justiça – CNJ, por meio do Provimento nº 65, de 14 de dezembro de 2017, que é uma norma interpretativa, reconheceu que a ata notarial para fins de usucapião sempre teve foi uma escritura com conteúdo financeiro, tanto que determinou a aplicação imediata das tabelas estaduais  referentes a essas escrituras.
 
As normas fiscais interpretativas são aquelas declaratórias de direitos já assegurados por normas anteriores, sendo publicadas apenas para esclarecer o conteúdo das normas anteriormente publicadas, e podem até mesmo ser aplicadas de forma retroativa.
 
Não há dúvida, pois, de que pode o Conselho Nacional de Justiça, no Provimento nº 65, determinar que, na ausência de lei estadual específica, os emolumentos relativos à ata notarial para fins de usucapião serão aqueles aplicáveis aos atos de conteúdo econômico. E a determinação do CNJ está de acordo com o ordenamento jurídico vigente porque simplesmente está esclarecendo que a lei estadual referente às escrituras com valor sempre foi aplicável às atas notariais para fins de usucapião.
 
* Letícia Franco Maculan Assumpção é graduada em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (1991), pós-graduada e mestre em Direito Público. Foi Procuradora do Município de Belo Horizonte e Procuradora da Fazenda Nacional. Aprovada em concurso, desde 1º de agosto de 2007 é Oficial do Cartório do Registro Civil e Notas do Distrito de Barreiro, em Belo Horizonte, MG. É professora e coordenadora da pós-graduação em Direito Notarial e Registral do CEDIN – Centro de Direito e Negócios e autora de diversos artigos na área de Direito Tributário, Direito Administrativo, Direito Civil e Direito Notarial, publicados em revistas jurídicas. É autora dos livros “Função Notarial e de Registro” e “Casamento e Divórcio em Cartórios Extrajudiciais do Brasil”. É Presidente do Colégio do Registro Civil de Minas Gerais e Diretora do CNB/MG.
 
[1] Disponível em: http://www.notariado.org.br/index.php?pG=X19leGliZV9ub3RpY2lhcw==&in=NjY0MA. Acesso em: 25 jan. 2018.

[2] Art. 216-A. Sem prejuízo da via jurisdicional, é admitido o pedido de reconhecimento extrajudicial de usucapião, que será processado diretamente perante o cartório do registro de imóveis da comarca em que estiver situado o imóvel usucapiendo, a requerimento do interessado, representado por advogado, instruído com:
I – ata notarial lavrada pelo tabelião, atestando o tempo de posse do requerente e seus antecessores, conforme o caso e suas circunstâncias; (sem grifos no original)
 
[3] Na verdade a ata notarial para fins de usucapião é até mais trabalhosa do que a grande maioria das demais escrituras públicas relativas a situação jurídica com conteúdo financeiro, como compra e venda e doação.

[4] Sobre a diligência do tabelião ou seu preposto para verificar a ocupação da área objeto de usucapião, houve manifestação de alguns registradores de imóveis no sentido de que a diligência seria OBRIGATÓRIA para dar segurança jurídica ao ato. Importante ressaltar que tal DILIGÊNCIA somente pode ser realizada por Tabelião do Município onde está localizada a área, posto que, nos termos do art. 9º da Lei nº 8.935/94 o tabelião de notas não pode praticar atos fora do Município para o qual recebeu a delegação.
Lei 8.935/94 –  Art. 9º O tabelião de notas não poderá praticar atos de seu ofício fora do Município para o qual recebeu delegação.
 
[5] BALEEIRO, Aliomar. Direto Tributário Brasileiro. 10ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1993.
 
[6] Art. 106, I do Código Tributário Nacional.