O mundo avança cada vez mais para o emprego de inteligência artificial e novas tecnologias para o registro de documentos e fatos, de forma que a realidade do filme Blade Runner não está tão distante de nós.
 
A festejada tecnologia blockchain, que funciona como um livro contábil eletrônico, inicialmente criada para possibilitar o registro de transações com criptomoeda, no caso o bitcoin, já está sendo usada em outras atividades, como comercialização de imóveis ou registro de inovações tecnológicas, para fins de evitar pirataria.
 
Considera-se que o blockchain é um meio bastante seguro de registro de atividades, por conta do timestamp, que é o mecanismo que registra os dados do usuário, a hora e a data da transação, de forma que os blocos de transações posteriores sejam gerados através do repasse destas informações, sem poder adultera-los na cadeia de seu registro.
 
Além disso haveria uma grande transparência de dados para seus usuários, que validariam estas transações, por chaves criptografadas, de forma a evitar fraudes.
 
Fala-se, inclusive, em uma governança eletrônica para o setor público, onde o blockchain pudesse ser usado para garantir maior transparência em suas atividades.
 
Ocorre que essas maravilhas tecnológicas precisam ser vistas na ótica do Direito, devendo-se refletir sobre sua validade em um ramo como o Processo Penal.
 
Ora, com o avanço das fraudes digitais, principalmente empregadas para lavagem de capitais, precisamos examinar seu valor probatório numa ação penal.
 
Em um caso de lavagem de dinheiro, que envolvesse como prova o registro de venda de um imóvel na blockchain, por exemplo, teríamos alguns aspectos a considerar:
 
O Direito Civil impõe que alguns atos/contratos jurídicos devem ser revestidos de determinadas formalidades, para que sejam considerados válidos, ou seja, eles possuem a denominada forma prescrita em lei, conforme determina o artigo 104 do Código Civil:
 
A validade do negócio jurídico requer:
I – agente capaz;
II – objeto lícito, possível, determinado ou determinável;
III – forma prescrita ou não defesa em lei.
 
No caso da venda de imóveis, a mesma deve ser feita em um Registro Público, que confere fé pública ao ato, através da verificação do negócio documentado na sua escritura, de acordo com artigo 108 do referido diploma legal:
 
”Art. 108. Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no país.”
 
Frise-se que o registro imobiliário possui princípios, como o da continuidade cadastral, que justamente seria uma forma mais simplificada de timestamp, garantindo a fidelidade da cadeia de informações de vendedores e compradores.
 
Nesse sentido, o timestamp poderia modernizar o registro de venda de imóveis, diante do encadeamento eletrônico das informações apresentadas para aquele negócio.
 
No entanto, o oficial de registro examina outros aspectos, além das formalidades do ato, como a vontade expressa pelas partes, principalmente no caso de negociações envolvendo pessoas idosas, com problemas mentais ou de pouca instrução, verificando se aquelas são plenamente capazes de entender o conteúdo do ato, evitando-se a simulação e a invalidade do negócio.
 
Nesse sentido, uma pessoa portadora de Mal de Alzheimer, não interditada e sem procurador, poderia comprar um imóvel e registrar a transação na blockchain, que apenas conferiria publicidade ao negócio, mediante apresentação de dados e documentos.
 
No caso do blockchain, ele valida o ato, no sentido de identificação de dados (partes, preço e bem negociado) e da existência da operação em si, não possuindo a capacidade de aferir o conteúdo da vontade, que precisa ser verificado também.
 
Vemos então que a fé eletrônica é limitada nessa questão, pelo que, o conteúdo desse documento digital pode ter sua validade questionada, podendo até ser produzido com documentos de pessoas já falecidas, para mascarar negócios ilícitos.
 
Vale lembrar que a venda de imóveis requer a obtenção de uma série de certidões, que verificam a situação do bem negociado, conferindo segurança na transação.
 
Com isso, a autenticidade desse tipo de documento não é plena e pode ser questionada, porque a declaração de vontade pode omitir outras circunstâncias relacionadas ao negócio jurídico.
Num caso da lavagem de dinheiro, por exemplo, a compra de um imóvel documentada na blockchain poderia refletir informações falsas, ocultando a origem ilícita do negócio, podendo até incriminar uma pessoa inocente, causando a abertura de uma investigação contra si, caso o referido documento fosse usado como prova.
 
Mas, em termos de Processo Penal, surge a questão da classificação da prova por blockchain dentro da teoria das provas do Processo Penal, pelo que, poderia ser considerada como prova atípica.
 
Cumpre destacar que a prova atípica não tem previsão legal, de modo que deve ser analisada pelo magistrado, sob o manto do contraditório, antes de ser admitida em um processo que pode gerar uma condenação criminal.
 
Com isso, a prova por blockchain não poderá ser considerada como plenamente válida, antes de uma perícia, para aferir a autenticidade de seu conteúdo.
 
Assim sendo, não basta alegar-se a aplicação subsidiária do novo CPC, que prevê em seu artigo 369, que “ as partes têm o direito de empregar todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, para provar a verdade dos fatos em que se funda o pedido ou a defesa e influir eficazmente na convicção do juiz”, uma vez que essa regra não afasta a possibilidade de questionamento da validade da prova, diante do princípio da ampla defesa e da presunção de não culpabilidade, aplicáveis em matéria penal.
 
Ora, aplicar-se cegamente esta norma processual civil num caso criminal é uma atitude irresponsável, pois estamos diante de causa que envolve a possibilidade da perda da liberdade, o que é muito pior que mera perda de dinheiro, por invalidade posterior do negócio.
 
Logo, a existência de um contrato registrado na blockchain, ao lado de alguns depoimentos, não poderia ser suficiente para determinar-se o imediato ajuizamento de ação penal para apurar o cometimento de crime de lavagem de dinheiro, por exemplo, sem a realização de uma perícia.
 
Com isso, devem ser observados os direitos constitucionais do investigado, já na fase inquisitorial, pela atual possibilidade de peticionamento da sua defesa no inquérito policial, para requerer diligências em seu favor, como a perícia eletrônica, para poder modificar o rumo da investigação, conforme as modificações introduzidas pela Lei 13.245/16 no Código de Processo Penal, para aferir-se a admissão de prova penal por blockchain.