REGISTROS SOBRE REGISTROS (n. 92)
 
(Princípio da prioridade registral -Quarta parte)
 
Des. Ricardo Dip
 
Que ocorre se a prenotação é lançada por pessoa a que falte competência para o lançamento protocolar −seja o caso de um preposto não autorizado, seja até mesmo o de alguém estranho ao ofício registral?
 
Já aqui bastante salientada a relevância da prenotação −“chave do registro geral”−, não surpreende seja sólida a doutrina que afirma caracterizar-se nulidade com o vício de incompetência na escrituração do protocolo. Assim, ad exempla, ensinara, ao tempo do Regulamento de 1939, a emérita autoridade de Serpa Lopes: “Se se tratar de nulidade, como se o ato foi realizado por um oficial evidentemente incompetente…”, e, na mesma linha, ainda entre os nossos, Valmir Pontes: “Nulos serão os lançamentos no protocolo, feitos por pessoa não autorizada, ou não habilitada…”.
 
Do reconhecimento dessa nulidade −a do protocolo− redundaria ainda outra, derivada ou consequencial, aflitiva do correspondente registro ou averbamento definitivo. Isto se deve à circunstância de que a prenotação é essencial à inscrição definitiva, de que resulta ser esta, sob certo aspecto, uma inscrição segunda, secundária, que secunda a prenotação.
 
Sem embargo, não está à margem de controvérsia saber se essa nulidade é absoluta, relativa ou mista (e já aqui antecipo meu entendimento no sentido de que se trate de uma nulidade registral mista).
 
Tal se sabe, a nulidade absoluta −que é frustrânea da finalidade a que seu suposto de fato se destine (vidē, por todos, Enneccerus-Nipperdey, parte geral, I-II, § 202)− é um ato ou negócio ordinariamente insanável.
 
Para a situação registrária particular, ora sob exame, isto significa dizer que o vício de incompetência na lavratura do protocolo, suposto seu caráter de nulidade absoluta, (i) não pode ratificar-se, mediante colmatação, com efeitos retroativos, (ii) nem converter-se, transformando-se o lançamento inválido em outra prenotação, com aproveitamento de seus efeitos originários, (iii) tampouco reduzir-se, conservando-se somente a parte regular da prenotação viciada −p.ex., os dados do título (cf., brevitatis causa, Manuel Domingues de Andrade).
 
Essa nulidade, a absoluta, no direito positivo registral vigente no Brasil, pode reconhecer-se com independência de demanda direta (caput do art. 214 da Lei n. 6.015, de 1973), porque tais nulidades operam sem necessidade de invocação dos interessados, é dizer que atuam ipsa vi legis, propter officium, são matéria de objeção. Ou seja, em palavras de Enneccerus-Nipperdey: “O juiz deve ter em conta a nulidade que lhe seja conhecida, ainda que não a invoque aquele a quem isto favoreça” (não custa, porém, observar a exigência legal, no Brasil, de resguardo do direito de defesa e de contraditório −vidē item LV do art. 5º da Constituição federal de 1988 e § 1º do art. 214 da Lei n. 6.015).
 
A nulidade relativa, por sua vez e diversamente, não atua ipso iure, senão que depende da manifestação de vontade dos que se favoreçam com seu reconhecimento −e apenas dos que se favoreçam com isto. Diferentemente da nulidade absoluta, a relativa pode ordinariamente sanear-se não só com o decurso do tempo, mas também, no âmbito negocial, pelo meio comum da confirmação (é dizer, de um ato de saneamento oriundo de quem tinha o direito de anular; ainda caberia neste passo referir figuras assemelhadas à confirmação: p.ex., a da renúncia do direito de anular e a da renovação negocial −cf. Rui de Alarcão), e, já aqui no campo registral, a nulidade relativa pode sanear-se mediante ratificação. Consiste a ratificação registral −que também, em algum caso, induz a retificação explícita de uma inscrição− na aprovação, por quem seja competente, de um lançamento tabular que, por vício de incompetência, padecia de ineficácia.
 
Cabe observar que tanto a nulidade relativa quanto a absoluta são ordinariamente submetidas aos regimes respectivos de sanação e não sanação. Vale por afirmar que, normalmente, as nulidade relativas são sanáveis, as absolutas, não; mas isto não é essencial a estas figuras. Pode ocorrer, com efeito, que nulidades absolutas sejam suscetíveis de sanação, e relativas não a admitam (Flume observou, a propósito, que a insanabilidade de um ato nulo não é deduzível de seu conceito nem lhe integra a natureza).
 
Daí que não estranhe reconhecerem-se nulidades mistas −ou, talvez com mais exatidão, regimes mistos de nulidade. (Tenha-se presente que a noção de nulidade mista que aqui mais de perto havemos de considerar é a exclusivamente registral, vale dizer: nulidade exclusivamente formal, sem liame com o título inscritível; dela se distingue a nulidade mista de que muito e bem trata Serpa Lopes, nulidade que afeta quer o título, quer o registro).
 
A nulidade registral mista (que também pode denominar-se nulidade registral híbrida −cf. Domingues de Andrade) é a que convive no regime próprio das nulidades absolutas (designadamente pense-se aqui na insanabilidade) e na regência das nulidades relativas (com a possibilidade de sua sanação). Ou seja, uma nulidade sujeita a moldura assimétrica, podendo submeter-se ou não a saneamento, conforme as circunstâncias.
 
A questão nuclear, pois, está em saber quais são essas circunstâncias que permitirão conduzir o ato a um ou outro desses regimes de nulidade.
 
Parece forrar-se de razoabilidade a adoção do critério do prejuízo evidente para o fim de distinguir a aplicação de um desses regimes aos casos de nulidades registrais mistas. Já isto se revolvera em antigas lições doutrinárias (p.ex., Troplong). Havendo evidência de prejuízo com o ato registral nulo, deve impor-se o critério regencial da nulidade absoluta. À míngua dessa evidência, ao revés, deve permitir-se a ratificação, perfilhando-se, portanto, o regime da nulidade relativa.
 
Neste sentido é a lição de Lacruz, ao observar que, tendo o assento registral um valor assinalativo e desde que não se trate de falsidade (situação de prejuízo evidente), pode convalidar-se a inscrição, inibindo-se, deste modo, que o favorecido pelo ato seja prejudicado por um procedimento cujo erro não provocou, nem estava em condições de evitar.
 
Resumindo: tanto se afaste a evidência de prejuízo com a lavratura de prenotação por agente sem competência, pode o ato ratificar-se. A solução é de todo mais econômica (em tempo, gastos e esforços) e não aflige a segurança jurídica.
 
Tendo em linha de conta que o controle da legalidade do processo registral emerge com a qualificação e não com o só lançamento no protocolo (vidē Afrânio da Carvalho), é durante a qualificação que o registrador apreciará e decidirá acerca da regularidade de todo o processo iniciado com a prenotação, de modo que, contanto afaste a evidência de prejuízo, poderá ratificar o lançamento no protocolo −preferencialmente, de maneira explícita (averbando-se a ratificação; mas não se impede a ratificação tácita).
 
Este saneamento registral −deixemos isto bem sublinhado− não implica, entretanto, superação ipso facto de eventual responsabilidade disciplinar, supostas as culpas in eligendo vel in vigilando.
 
596. Detenhamo-nos brevemente sobre o conceito de evidência −em vista do relevo pontual do tema do prejuízo evidente.
 
Uma linguagem redutora, em nossos tempos, vem trasladando da prática judiciária norte-americana a expressão evident, qual se fora sinônima de prova (em rigor, porém, o inglês evident é o easy to see, o obvious, o clear −p.ex., Longman−, não qualquer prova, que pode ser indiciária, pode ser dúbia, obscura, “prova difícil” etc.).
 
Evidência −cuja definição é inviável, bastando-nos uma descrição analógica− é aquilo que se vê com clareza, “o que salta aos olhos”, “o que se vê bem”, “o que se compreende por si” (Giovanni Brichetti); a clara e atual manifestação de uma realidade (De Alejandro), de uma verdade clara.
 
Desta maneira, em nosso quadro de um lançamento registral por agente sem competência, o que impedirá a ratificação é a pronta e clara inteligibilidade de prejuízo, é a manifestação atual de que o ato se praticou com propósito fraudatório ou que, ainda sem esse propósito, lesou de maneira evidente (que salta aos olhos, que se vê claramente) um interesse concreto, singular, visível (e não abstrato, indeterminado, impreciso, potencial).
 
Tomemos um exemplo: pouco tempo depois de uma inscrição protocolar viciosa lança-se a prenotação de um título suscetível de estimar-se configurar um “direito real contraditório” do lançamento precedente. Nesta situação, cabe atuar o regime da nulidade absoluta. Não cabe a ratificação.
 
Não havendo, contudo, evidência de prejuízo, deve ratificar-se o lançamento viciado, deixando-se a salvo, decerto, a via anulatória em favor de eventual prejudicado (cf. art. 216 da Lei brasileira n. 6.015/1973).
 
(Útil parece ser que se aclare a expressão “direitos reais contraditórios” −de uso muito frequente−, e que vem assim conceituada em Serpa Lopes: “os que, oriundos de um só transmitente e por este atribuídos a titulares diversos e recaindo sobre o mesmo imóvel, se contradizem no seu conteúdo, de modo a se anularem reciprocamente, se fossem transcritos ou inscritos, contemporaneamente”).