(Princípio da prioridade registral -Quinta parte)
 
Des. Ricardo Dip
 
597. Continuemos neste breve excurso ao direito posto brasileiro atual, visitando-lhe a disciplina da prenotação registral, e agora tratando do momentoso problema do registro de permuta.
 
Lê-se no art. 187 da Lei n. 6.015, de 1973: “Em caso de permuta, e pertencendo os imóveis à mesma circunscrição, serão feitos os registros nas matrículas correspondentes, sob um único número de ordem no Protocolo”.
 
Sublinhe-se, para realçar a atualidade do tema e, não se nega, a persistente controvérsia sobre ele, que, após admitir-se no Conselho Superior da Magistratura de São Paulo, em fins de 2016, isto por apertada maioria de votos (quatro a três), o registro parcial de uma permuta de imóveis (Ap n. 1004930-06.2015.8.26.0362, da Comarca de Mogi Guaçu), já ao final de 2017 o mesmo Conselho, agora em votação unânime, reconheceu cabível o registro parcelar da permuta (Ap n. 1000311-58.2016.8.26.0019, da Comarca de Americana, Relator Des. Manoel Pereira Calças).
 
Resume-se essencialmente essa controvérsia em saber se é possível registrar parte do negócio de permuta (scl., uma de duas aquisições; duas dentre três ou mais, etc.) ou se, ao revés, a unitariedade negocial impede o registro fracionado.
 
A tese do aproveitamento pleno da inscrição de permuta −ou seja, de que não se admita seu registro parcial− já era sufragada, entre nós, por Lysippo Garcia, no volume I (A transcripção) de seu O registro de imóveis (ed. 1922), abonando expressamente uma opinião de Troplong, bem como calcando-se na letra do art. 256 do Regulamento brasileiro n. 370/1890 (de 2-5), para adversar, em síntese, o entendimento de que, no contrato de permuta, o imóvel ocupe simplesmente o lugar do preço. É que, se na venda e compra, “a propriedade de uma coisa é transferida por um preço” (vale dizer, por moeda), já na permuta “a propriedade de uma coisa é transferida pela aquisição de uma coisa”. Daí a conclusão de Lyssipo Garcia no sentido de que, numa permuta de imóveis, “não seria “possível a transcrição de um dos prédios, sem que se fizesse a do outro”.
 
A norma do referido art. 256 do Decreto n. 370, de 1890 (“Quando o objecto da transcripção for uma permutação, ou subrogação de immoveis, haverá duas transcripções, com referencia reciproca e numeros de ordem seguidos no Protocollo e no livro de transcripção, sendo tambem distinctas e com referencia reciproca as indicações do −Indicador real”) reiterava, essencialmente, a enunciação do art. 281 do Decreto nacional n. 3.453 (de 26-4-1865), que assim dispunha: “Quando o objecto da transcripção fór uma permuta ou subrogação de immoveis, haverá duas transcripções com referencia reciproca, e numeros de ordem seguidos no Protocollo, e no livro de transcripção, sendo tambem distinctas e com referencia reciproca as indicações do Indicador real”.
 
Sulcando a mesma trilha, o Regulamento de 1939 (Dec, n. 4.857, de 9-11) preceituou que “na permuta haverá duas transcrições com referências recíprocas e números de ordem seguidos no protocolo e no livro de transcrição, sendo tambem distintas e com referências recíprocas as indicações no indicador real” (art. 281), admitindo-se de comum, em boa parte da doutrina brasileira, o entendimento de Lysippo Garcia (por todos, vidē Serpa Lopes, item 557 de seu magistral Tratado dos registos públicos; posição intermédia foi indicada por Amaral Gurgel: admitia ele a quebra do aproveitamento plenário somente quando os imóveis objeto se situassem em circunscrições diversas).
 
598. Nada obstante o prestígio dessa orientação de Lysippo Garcia −empolgada também sobre afirmado, mas controverso, pilar textual do art. 187 da atual Lei brasileira de registros públicos−, já Carvalho de Mendonça ensinara que o permutante não se restringia, em caso de lesão, à demanda de perdas e danos, podendo “repetir o que deu se a outra parte não realizou sua prestação ou lhe transferiu a coisa que não lhe pertencia” (in Contratos no direito civil brasileiro, item 166).
 
Assim é que, entre outros, na doutrina brasileira, Gilberto Valente da Silva, Ademar Fioranelli, Antonio Albergaria Pereira e Josué Modesto Passos, e, em nossa jurisprudência pretoriana, Gilberto Passos de Freitas, adotaram o entendimento de admitir na via registrária a cisão do título de permuta, ainda que com a ressalva de fortuita recorrência a demandas judiciais.
 
599. É a solução, esta última, que atraiu minha persuasão.
 
O contrato de permuta apresenta tanto uma equivalência de obrigações dos contratantes, quanto uma recíproca e dúplice função dos bens permutados. Tratando-se de permuta de imóveis, são estes, secundum quid, (i) o objeto material de uma aquisição jurídica, e, também, (ii) simples instrumento de pagamento da aquisição concorrente.
 
Essa característica da permuta não importa, ipso facto, em negativa da autonomia jurídica dos títulos de aquisição (ou, se se quiser, de alienação), de modo que deve admitir-se sua consequente cindibilidade formal e material.
 
Não custa observar que, além da variedade das coisas materiais suscetíveis de permutação (pensemos aqui, de maneira emblemática, na permuta de imóvel por móvel), não é raro que, no curso de negociações, uma venda e compra se converta de fato em “permuta”, ou uma permuta em “venda e compra”, dando ensejo aos casos que Pelayo de la Rosa designou in facultate solutionis, exigindo uma tomada de posição sobre o momento consumativo do negócio: ad exempla, (i) se, à origem, um dado ajuste se firme com a condição de recebimento de um preço (in pecunia numerata), sua intercorrente mudança, substituindo-se a moeda por outra coisa, torna o contrato juridicamente uma permuta?; (ii) se o ajuste é eclético, vale dizer, pactuado com indicação de pagamento monetário, mas com a faculdade de substituir-se a moeda por outra coisa, é negócio de venda e compra ou permuta? [Assinale-se que, no direito romano, a convenção inicial fixava o caráter do negócio, com independência de sua realização factual posterior: cf. Ulpiano, Digesto, 18, 1,2,1].
 
Ora, a permuta é um contrato de natureza consensual (vale por dizer que o título se aperfeiçoa sem a tradição da coisa), e, cuidando-se de permuta relativa a bem imóvel, o modo registral é, no direito brasileiro, constitutivo, ainda que o negócio já se tenha por aperfeiçoado com o só acordo de vontades, inclusivo da intenção da traditio.
 
É de todo possível −fez vê-lo já, entre nós, Carvalho de Mendonça− que a evicção e o vício redibitório possam acarretar o desfazimento da permuta, mas isto não é compulsivo, porque o prejudicado pode eleger entre a (i) indenização, (ii) a execução específica do negócio (obrigação de registrar) ou (iii) o recobro do imóvel que lhe serviu de meio de pagamento de sua aquisição frustrada (vidē também, neste sentido, a doutrina de Pelayo de la Rosa Diaz, La permuta: Desde Roma al derecho español actual, ed. 1976.).
 
O que, certamente, não se poderá admitir, contudo, é que o ajuste de permuta fique entregue à potestatividade de um dos contratantes, ao ponto de que, recusando-lhe o registro (isto é, frustrando-lhe a intenção da traditio implicada no consenso negocial), possa levar unilateralmente à resolução do contrato.
 
No plano do direito substantivo (ou seja, do direito das obrigações), o tema concerne à eficácia do negócio jurídico. Quem haja padecido o perdimento do domínio por força de um registro stricto sensu, adimpliu bem (equivale a dizer, é válido e eficaz o registro stricto sensu mediante o qual esse adimplemento se realizou), e esta inscrição −manifestação pública− atua em relação a terceiros.
 
Daí que a inviabilidade de outro ou de outros registros stricto sensu referentes a uma permutação (e, portanto, o inadimplemento da outra ou das outras prestações de um negócio de troca) não importe, necessariamente, na invalidade ou na ineficácia do adimplemento que já se cumpriu adequadamente.
 
Assim, com independência de outro registro stricto sensu que se houvesse de realizar, o primeiro desses registros é válido e eficaz, até que acaso se desfaça, desfazimento que dependerá do que, em âmbito extrarregistral, venham a ajustar os figurantes no contrato originário (também seus sucessores, quando o caso) ou decidir o juiz sobre o inadimplemento, em demanda própria e segundo o direito material.
 
Diversa conclusão viabilizaria que um figurante de má fé desfizesse unilateralmente o negócio de permuta, abdicando da intenção da traditio e recusando-se a dar a registro a transmissão que o beneficiasse.
 
Tenha-se em conta ainda que, quando se trate de negócio pro soluto, a inviabilidade do registro de uma das aquisições objeto de permuta atrai somente uma persecução indenitária. Por óbvio e diversamente, quando se tratar de negócio pro solvendo, não se põe em cena a desvinculação causal que emerge com o ajuste pro soluto.
 
A eventual intenção solidada dos contratantes em adquirir os imóveis objeto de permutação sugere estabeleçam condições −suspensiva ou resolutiva−, com caráter pro solvendo, de tal sorte que, cumprida ou desatendida a condição, caiba averbar-se o implemento ou o déficit, com os efeitos consequentes.
 
Por fim, a possibilidade de cisão do título de permuta viabiliza o registro do escambo de terreno por unidades edilícias futuras, o que pode realizar-se de logo por meio de um contrato definitivo (ainda que não se negue a possibilidade de uma contratação preliminar ao modo de um “compromisso de permuta” −cf., a propósito, Marcelo Terra, “Permuta de terreno por área construída”, in Doutrinas essenciais, vol. III, n. 20, p. 483 et sqq.). A recusa do registro da permuta, nesta situação, implicaria gravíssimo entrave à praxis imobiliária, com efeitos econômicos indesejáveis.
 
Ad summam, a unidade do número de ordem no protocolo (art. 187 da Lei n. 6.015) é apenas isto: um número para dar, quando possível, equivalente direito posicional a permutantes de imóveis situados em uma só e mesma circunscrição… nec plus ultra. Não se há de ler que essa equivalência de direito posicional signifique unicidade de qualificação, incindibilidade dos títulos formal e material, controle registral substituinte da via judiciária.