(O registro de imóveis e os direitos reais – Quinta parte)
 
682. Tal o vimos, a natureza das coisas é o pilar da propriedade −ou seja, o fundamento do domínio que os homens exercem sobre as coisas, excluindo o concurso de interferências turbadoras provenientes de terceiros (incluído o estado): é que o uso pleno, em ato, das coisas dominadas exclui seu concomitante serviço em ato a outros. Isto não impede, é certo, o desdobramento ou elasticidade do domínio, mas não avessa, todavia, a tendência centrípeta ou de consolidação dominial.
 
Quando se diz, porém, ser a natura rerum o pilar do domínio −firmamentum proprietatis− tem-se a ideia, bem apontada por Taparelli D’Azeglio, de que a natureza das coisas é apenas o germe da propriedade, cuja fecundação depende, posteriormente, dos fatos, das circunstâncias, das vicissitudes históricas que concretizam as aquisições das coisas, o que explica a larga variedade das singularizações dominiais na trajetória da humanidade.
 
683. Se, de logo, entretanto, é benefício do dono servir-se da coisa dominada −res servit domino−, isto não exclui que seu uso seja previdente. Vale dizer, que, dando-se o caso de possessão não transeunte (p.ex., a de um alimento), a estabilidade da relação do dominus com a res inclua sempre alguma previsão das necessidades futuras (individuais e familiares) e até mesmo uma responsabilidade previdencial com as gerações vindouras. Com efeito, dos animais brutos distinguem-se verdadeiramente os homens nisto em que estes (assim o disse Aristóteles, no livro da Política, Bkk. 1253 a 12) “têm a percepção do bem e do mal, do justo e do injusto”, dando-se conta, além disso, de que a natureza nada faz sem um fim, “nada faz em vão” (ainda Aristóteles: Bkk. 1256 b 12, e antes: “aquilo pelo qual algo existe, e é seu fim, constitui o melhor” −Bkk. 1253 a 9).
 
Ora, como já ficou visto, as coisas do universo são, por natureza, destinadas à humanidade, e ainda que a mesma natureza firme o domínio particular das coisas, não confere ao dominus uma potestade irracional de fruição, assim a de que derivasse um detrimento injusto quer para as gerações coevas, quer para as futuras.
 
Não se trata, no só plano de uma repercussão contemporânea, do mal da acumulação excessiva no domínio privado (tema de que adiante se cuidará) e do mal da supressão desse domínio, males a que Louis Salleron dedicou esta interessante crítica: “Porque o capitalismo liberal privou da propriedade um grande número de indivíduos, o comunismo propôs privá-la de todo mundo, como se a generalização do mal constituísse seu remédio” (in Diffuser la propriété, p. 193). É que se tem aqui de considerar também a responsabilidade do uso das coisas quanto às gerações futuras.
 
O registro de imóveis tem, neste capítulo, uma verdadeira missão em defesa do bem comum, porque deve ser o lugar atrativo da estabilização dos direitos dominiais imobiliários −é dizer, o lugar de sua conservação−, e isto significa, num primeiro momento, um acesso formal à segurança jurídica (uma acessão política: o direito de pretender um direito) e, adiante, um acesso substantivo à mesma segurança (o direito de conservar o direito). A tanto, na metódica registral, dá-se uma verdadeira definição de direitos, ou seja, sua demarcação objetiva e subjetiva (atribuição pessoal do imóvel): demarcação da coisa (limitatio rei) e de sua atribuição ao dono (imputatio domini). Ora, o fato mesmo dessa demarcação registral é indicativo de que se separam coisas, e separam-se não só no campo dos domínios privados, senão que também para distinguir as terras comunais (conceito que não abrange apenas os imóveis de domínio estatal, mas, igualmente, assim se deu na Europa medieval, os prédios que todos podiam, livremente, atravessar, ou deles recolher madeira ou neles introduzir o gado para pastar). Em resumo, o sistema do registro de imóveis testemunha tanto a destinação universal das coisas, quanto, por isto mesmo que essa destinação é universal, a necessidade da singularização de seu domínio. Além disto, um adequado registro imobiliário exige uma fácil acolhida das aquisições (que o maior número de pessoas possa adquirir propriedades) e a conservação que estabiliza o status jurídico, separando e custodiando as terras privadas e as comunais; quando, ao revés, o registro põe-se a serviço principal da dinâmica do (fictício) “mercado puro” −mobilizando o imóvel−, renegando exatamente da natura rerum immōbilium, serve antes à cupidez da riqueza (lucri cupiditatem) do que ao bem da comunidade.
 
684. Tratemos um pouco mais, ainda que muito brevemente, do tema da destinação universal dos bens.
 
Quer, de um lado, o conservacionismo ideológico −que, em derradeiro, chega a rematar na ilegitimidade da possessão e uso das coisas pelos homens, recusando-lhes o domínio seja privado, seja coletivo−, quer, de outro lado, o menosprezo com a destinação universal das coisas são consequentes, ambos, de uma cosmovisão imanentista e utilitária que, abdicando de compreender o sentido finalístico e transcendente da natura rerum, acarretou −nestas sábias palavras de Juan Claudio Sanahuja− “una confianza ciega −acrítica− en el poder de las tecnociencias: para ellas todo estará permitido”.
 
Foram de fato as ideologias imanentistas da modernidade (pense-se, p.ex., em Francis Bacon e René Descartes) que lançaram as bases da pretensão de submeter ilimitadamente a natureza, de maneira que a hoje mal ou bem designada “crise ecológica” é o tributo da incapacidade de os homens reconhecerem “las limitaciones que le imponen su condición de administrador, no de dueño de la Creación” (Sanahuja).
 
Em posição oposta, ergue-se uma doutrina cristã da propriedade que aposta na transcendência da dominação humana sobre as coisas, assim o podem resumir, por exemplo, duas referências de S.João Paulo II: a primeira, em discurso dirigido, no ano de 1989, ao corpo diplomático acreditado junto ao Governo de Madagascar:
 
“È urgente che la comunità internazionale si dia i mezzi giuridici e tecnici per garantire la protezione dell’ambiente naturale, per impedire gli abusi ispirati da ciò che potremmo chiamare l’egoismo di alcuni a scapito degli altri. La fede cristiana considera che l’uomo è stato fatto da Dio padrone della terra. Ciò significa che egli ne è responsabile, che egli ne è più l’amministratore che il proprietario discrezionale. Egli deve mantenerla viva e feconda per trasmetterla alle generazioni future.”
 
A segunda, na encíclica Sollicitudo rei socialis, de 30 de dezembro de 1987:
 
“[O homem] é posto no jardim, com a tarefa de cultivá-lo e guardá-lo, estando acima de todos os outros entes, postos por Deus sob seu domínio (…). Todavia, ao mesmo tempo, deve o homem permanecer submetido à vontade de Deus, que lhe impõe limites ao uso e domínio das coisas (…)” –[homo] in horto collocatur ut colat atque tueatur, idemque constituitur supra omnia animantia, quae Deus in eius potestate posuit (…). Uno vero eodemque tempore homo manere debet Dei voluntati subditus, qui in usu ac potestate rerum limites imponit ei (…).
 
A destinação universal dos entes, impondo aos homens um uso reverencial das coisas também em ordem ao futuro −é dizer, um uso previdente−, não significa, simpliciter, a recusa do submetimento das coisas ao domínio humano e sua substituição pela “totalidade dos entes”, sua substituição, enfim, pela perspectiva holística que constitui um regresso ao paganismo −tal o faz ver a autorizada obra de Pascal Bernardin, L’empire écologique−, perspectiva holística em que o proclamado “amor à natureza” mal dissimula o “ódio aos homens” (para aproveitarmos aqui uma expressão de Marcel Gauchet).
 
De uma parte, está-se diante de correntes imanentistas, materialistas, utilitárias e favoráveis ou ao direito absoluto de propriedade ou à negativa de todo o direito dominial. De outra parte, uma corrente que subordina o domínio das coisas pelos homens a um fim que a ambos transcende, concluindo em que os limites da propriedade dos bens materiais estão inscritos na própria natureza do direito dominial: há, pois, uma justiça econômica natural ou uma justiça nos domínios, algo submetido ao critério do suum cuique tribuere e não ao da mera utilidade. Bem o fez ver Christopher Ferrara, o verdadeiro direito de domínio convive, indispensavelmente, com deveres correlatos, e, entre esses deveres, está o de a propriedade servir aos próximos, primeiro aos mais chegados, depois ordenadamente aos outros, sem nisto recair em um igualitarismo contranatural.
 
Reencontrar o verdadeiro sentido amorável da propriedade está em afastar-se do que deságua tanto nos socialismos, quanto na doutrina liberal dos egoístas. Suprimir o domínio, como quer a ideologia socialista, ou torná-lo absoluto e egoístico, tal é o credo dos adictos ao “mercado livre”, é fomentar o desamor da propriedade −e com esse desamor, outro há: o desamor do registro; é o que o amor é sempre difusivo, expande-se aos outros, quer o bem dos próximos. O amor do domínio é verdadeiramente o afeto e o respeito por uma fruição que favoreça o bem da comunidade −a partir dos mais próximos (assim, a família) até chegar ao todo social−, e é a custódia de uma parcela valiosa desse amor, a serviço da Pátria de agora e da Pátria do futuro, que está entregue ao registro de imóveis: tem-se consciência da importância desta instituição?