(O registro de imóveis e os direitos reais – Oitava parte)
691. O capitalismo político ou capitalismo de laços, ainda que realidade ostensivamenteímproba, é apenas um dos capítulos da tragédia do regime de patrimonialismo das funções econômicas com que se confundem o ter e o poder, propiciando que “o dominium dos homens sobre as coisas se converta em uma dominação das coisas sobre os homens” (André Piettre). Mas um capítulo revelador, porque, para logo, põe à mostra o quanto há de mitificação na ideia da naturalidade de um mercado livre ou mercado puro, dando-se o caso de que as proclamadas vantagens da livre concorrência são vantagens amiguistas, ou seja, concedidas pela interferência estatal em benefício de alguns (tenha-se em conta de exemplo gráfico a política protecionista que se aplica ao “livre” comércio internacional).
O caráter particularmente grave do capitalismo de laços está em que, privilegiando os amigos, o estado prejudica a atividade econômica dos que não são de sua predileção: chega-se mesmo ao ponto, em alguns casos, de atribuir-se um monopólio em favor de algum grupo privado, suprimindo a possibilidade de atuação daqueles todos que, antes, a realizavam (e, no extremo, sequer falta a desfaçatez retórica de grupos favorecidos afirmarem-se representantes dos que padecem dos efeitos da debilitação ou mesmo supressão de todas ou parte de suas anteriores atividades). Não é só, pois, o regime estatalista de planificação econômica, mas também as interferências factuais (entre elas, as típicas do capitalismo de laços) o que desnuda a mitologia do livre mercado concorrencial e permite a diagnose do prejuízo das pequenas unidades, asfixiadas pela concentração monopolítica.
É possível para não dizer mesmo provável que haja quem acene a uma aparente secundariedade do registro de imóveis na concretização da “filosofia” (em alguns casos, mais propriamente, ideologia) da propriedade privada na variedade dos países. Decerto, o registro está subposto à legalidade, e, neste sentido, seu papel, realmente, apenas secunda a cosmovisão que dirija a ordem (ou desordem) econômica pretendida. Mas isto não retira do registro imobiliário sua função de agente dessa ordem ou desordem, e, sobretudo, não dispensa moralmente os registradores da ciência e da consciência do que deva conduzir a propriedade a seu justíssimo fim de atender ao bem comunitário.
Clássica é a lição de que nenhuma potestade ꟷainda que muito poderosa pode agir sobre algo remoto sem que o faça por meio de agentes intermediários (cf. S.th., I, q. 8, art. 1, ad3um), de maneira que, atuando na ordenação da propriedade privada de imóveis, o registro, se bem não tenha relação imediata (contactu quantitatis) é dizer, neste quadro, contacto extratabularꟷ com as coisas dominadas, tem com elas, no entanto, o que se designa contactu virtutis, porque atua sobre intermédios e, mediante eles, afeta as relações de domínio. De que segue a nunca suficientemente salientada relevância da atuação dos registradores para a observância de bons critérios normativos e, quanto (e o mais) possível, o abrandamento dos efeitos sempre deletérios de preceitos que se desviem da natureza das coisas e de sua lei (lex naturæ rerum).
692. É verdade que os registradores, subordinados que são à legalidade, hão de oficiar secundum legem (ou, no limite, præter legem), e não por meio do ativismo com que, fossem iudices de legibus, afastar-se-iam das normas postas. Sem embargo disto, o registrador sempre pode, com sua autoridade, sustentar e difundir a doutrina adequada, mas, além disto e enquanto seja possível, ele deve, no exercício de sua arte (ars iuris), diminuir os consequentes nefandos de uma cosmovisão injusta em matéria econômica, adotando e aconselhando os caminhos mais frutuosos para resolver os problemas registrais (função de respondere), prevenindo e precavendo melhores soluções (função de cavere), desenvolvendo o sentido do justo concreto (equidade).
Os critérios objetivos que norteiam essa doutrina são exatamente os recolhidos na natureza mesma das coisas. Meditemos, a propósito, brevitatis studio, sobre esta lição, que traduzo livremente, ditada pelo grande notário espanhol que foi Juan Vallet de Goytisolo:
“As normas legais positivas boas ou más, ajustadas ou desajustadas à natureza, o que é o mesmo que dizer [ajustadas ou desajustadas] da realidade e da justiça são quais marcos dispostos de maneira tal que podem servir tanto para guiar-nos, quanto para alertar-nos, sob o modo de obstáculos que podem ser ou não, justos ou injustos, transponíveis ou não, apresentados ao desenvolvimento de nossa tarefa de juristas. Tarefa que sempre deve ser pensada em atenção à realidade viva, para ir achando em nosso caminho cotidiano o justo concreto mais adequado, sem esquecer os princípios básicos que, conforme a mesma natureza das coisas, salvaguardam toda a sociedade de sua dissolução, e, especificamente, protegem a sociedade onde vivemos e em que exercemos nossa função. Vale dizer que para elaborar o direito em sentido estrito, ou seja, «o direito», os juristas estamos situados entre as normas de barragem [de limite] do país legal e as instituições de raiz traçadas pelo país real ou sociedade civil; e aí devemos mediar entre a ordenada liberdade civil e sua devida correção pelo poder legal.”
Não se trata de os registradores atuarem “imaginativa ni ideológicamente, aislados de la realidad” (Vallet), senão que, vivendo realmente aquilo que fazem, fiquem “inmersos en la naturaleza de las cosas vividas, sea como autores o como coadyudantes asesores de las partes en los actos y negocios jurídicos (…), viéndolos plenamente donde sus entrañas”.
É certo dizer que, num dado sentido, o “natural” contraponha-se ao “artificial”. Mas é preciso discernir um tanto mais a ideia de “natural”, para nela incluir, ao lado da “natureza ontológica”, a “naturalidade histórica” das coisas. Álvaro D’Ors, depois de observar que “artificial” é aquilo que o homem faz com seu engenho, ao passo que “natural” é o que as coisas são em virtude de sua criação divina, acrescenta: “En la medida en que lo artifical viene a desarollar lo natural, puede hablarse de naturalidad de lo que el hombre hace; en la medida en que el hombre perturba el orden natural, obra contra la naturaleza, [y] su actividad es reprochable”.
693. Ora bem, adotando-se a propensão principal de beneficiar o crédito de modo que, com isto, concede-se um privilégio à segurança dinâmica sobre a estática, o registro colabora para a “mobilização do imóvel” ou pecuniarização predial, o que fomenta a especulação do solo, é dizer, sua retenção especulativa, o que lhe avessa não só a natura rei, mas também a própria natureza histórica, pois, bem o indicou Roca Sastre, os imóveis são “solo nacional” e “assento da família” estas são os indicativos de sua natureza institucional, e não um meio substituinte da moeda ou um instrumento voltado, principalmente, à garantia dos créditos e à satisfação de interesses financeiros estatais ou privados.
A natureza do imóvel é ser imóvel, e ainda que tenha ele sua correspondência monetária, não é moeda, nem tem o fim capital de garantir empréstimos pecuniários. Afonso Botelho, nas preciosas páginas de seu Da saudade ao saudosismo, diz que “cavalo e homem, Deus os fez para se realizem juntos, por isso que desde tempos que se perdem na distância se compreendem e se definem como cavalo e cavaleiro. Deus os criou e os ordenou”. E prossegue este que foi um dos maiores pensadores portugueses do século XX:
“Se assim não fora, o poder bruto do animal inferiorizaria o poder fraco do homem, mas a ordenação natural faz-se sempre no sentido do ser mais livre, e o homem, usando da sua maior liberdade, ordena o poder do cavalo ao seu próprio poder.”
Perfilhando-se a primazia do crédito no registro de imóveis, o cavalo parece trocar de lugar com o cavaleiro… o imóvel faz-se móvel; a segurança estática perde em importância para a dinâmica; o assento familiar desconstrói-se em favor da moeda: “la casa se construyó más para tenerla que para venderla; la finca rústica se respeta más para disfrutarla que para hipotecarla” (Pelayo Hore). De onde o remate: “en materia inmobiliaria, parece mejor proteger lo estático, aunque sea a riesgo de lo dinámico”.
694. Por fim, repise-se a ideia de ser o registro de imóveis o locus institucional propício para a fluidez do domínio imobiliário, de sorte que não parece convir o erguimento de obstáculos ꟷsobretudo os fiscais e de excessivos custosꟷ à consecução das inscrições. O melhor parece estar em que os impostos não sejam entraves à registração, rendendo-se a eles via própria para a cobrança.
Também na esfera da qualificação registral, se bem devam aferir-se com prudência os requisitos de idoneidade dos títulos inscritíveis, é preciso considerar que os critérios de compreensão e interpretação das normas e dos títulos a que corresponda uma qualificação in concreto não favoreçam a formação de barreiras registrais. Ainda que o primeiro critério a nortear a qualificação seja o da segurança jurídica estática a conservação dos registros, isto não significa devam os registradores embaraçar, com nonadas formais, as inscrições pretendidas, desde que se ponha a salvo aquela segurança.