(O registro de imóveis e os títulos materiais inscritíveis – Primeira parte)
 
695. Os saberes racionais raciocinados (ou discursivos) do direito distintos dos saberes racionais de evidência jurídica (não discursivos, mas intuídos: designadamente, os saberes próprios do hábito da sindérese) podem ser de (i) arte stricto sensu ou techné: p.ex., o exercício, na Alta medieval, da antiga ars dictandi a que se dedicavam, nas escolas do trivium, os scribæ antecessores dos tabeliães de notas; as fórmulas de textualização documentária; hoje: a cautelaridade das filas organizadas à frente dos guichês nos registros de imóveis; o controle de prazos do protocolo; a conservação dos indicadores; de (ii) prudência − que se admite denominar arte latiore sensu (temos já referido tantas vezes: o jurisconsulto Celso dizia que o direito é ars boni et æqui)−, e o saber prudencial é o saber mais próprio e tipológico das funções do notário e do registrador; de (iii) ciência −scl., de ciência média, em que nos valemos de fundamentos universais para disputar questões particulares; de (iv) sabedoria jurídica, em que resolvemos questões universais por meio de fundamentos universais.
 
Ao iniciar-se aqui o que se adivinha muito vasto capítulo relativo aos títulos materiais inscritíveis no registro imobiliário é preciso salientar que incursionaremos não mais no campo da ciência jurídico-registral stricto sensu, mas no da ciência média, que, em nosso quadro, é um composto heterogêneo de ciência e dogmática jurídica. O que pretendemos é aventurar-nos por alguma sorte de ciência do direito (em sentido estrito), mas segundo um itinerário particular: o do direito posto brasileiro (maxime, art. 167 da Lei n. 6.015, de 31-12-1973).
 
696. Revisitemos, à partida, contudo, ainda que muito rapidamente, assunto já visto ao largo destas nossas exposições: o do título em sentido formal ou documento, que é o veículo ou instrumento pelo qual se exprime, permanece e comunica-se o título em sentido material ou causa jurídica. Muito importa referir a conexão desses dois títulos o formal e o material, para pôr à mostra o quanto são eles necessários à politicidade humana, destinada à justiça.
 
In principio erat Verbum. Esta conhecidíssima expressão é a inaugural do Evangelho joanino, e S.João ali refere que pelo Verbum todas as coisas foram feitas omnia per se facta sunt, inclusos todos os conceitos, tanto o mental, quanto o verbal (que abrange o documental). Noutra parte, a propósito, deixou-se mesmo dito que pode não ser do melhor sabor literário a ideia de traduzir este magnífico introito de S.João pelo vernáculo “ao princípio era a Palavra”, mas não se pode dizer que isto seja falso, e na mesma senda andam expressões como “ao princípio era o Logos”, “ao princípio era o Sinal”, “ao princípio era o Texto” e, last, but not least, “ao princípio era o Documento” expressão esta última que vem de Rafael Núñez Lagos.
 
Todas essas proposições elencadas, incluída a sentença in principio erat documentum, não se resumem à sua raiz original e de evidente primazia teológica, porque se destinam a repercutir (tem-se mesmo de pensar que intencionalmente) num amplo espectro de saberes, até no de uma realidade antropológica que se confirma com a recolha de instrumentos de pedra e de osso, chifres, vasilhames, recipientes, gravuras, pinturas murais, ritos funerários, cēt., porque eles exprimem, recrutados já na pré-história, a politicidade natural dos homens, politicidade que é um próprio da natureza humana e reclama expressão, comunicação, verbo palavra interior e exterior (incluso o documento).
 
Excursionemos um tanto por este predicável de próprio, porque dele mais especificamente do próprio da sociabilidade ou politicidade é que se extrairá a indispensabilidade do verbo e do documento para a convivência humana. Em rigor, vai-se aqui à razão antropológica da necessidade mesma das notas e dos registros públicos. (Tanta vez se tem lido, e mais frequentemente parece fazer-se entre nós cotidiano, sobre uma aventável desnecessidade das notas e dos registros públicos, que é bom enfrentar, também embora aqui não seja este o objetivo estas impugnações contra-institucionais de aversão aos registros e às notas por uma razão mais remota que lhes confirme a necessidade secundum naturam rerum).
 
Enfim, que é um próprio quid est proprium?
 
697. Designa-se predicável todo conceito universal que possa predicar-se de vários sujeitos (é dizer, pode atribuir-se a eles); esta predicação, segundo o critério de sua universalidade conceitual, pode ocorrer de cinco modos diferentes: a título de gênero (p.ex., atribuindo-se o predicável animal ao sujeito homem), de diferença específica (assim, quando se atribui o predicável racional ao homem), de espécie (mediante a atribuição, v.g., do predicável animal racional ao homem), de acidente contingente (accidens logicum: atribuindo, p.ex., o predicável professor ou médico a um dado indivíduo) e, por fim, de próprio que é um acidente necessário, algo, pois, que não constitui a essência (porque é acidente), mas dela segue por necessidade (ex illa cum necessitate sequitur –Fröbes; in specie exhibitis necessario cohæret, ex is necessario consequitur -De Vries).
 
O próprio, portanto, é um predicável acidental não se exige ao modo categorial da substância (ens in se), tampouco, pois, sendo constitutivo da espécie ou da essência; mas é um acidente necessário porque deriva consequentemente da mesma essência, seja de seu todo (espécie: o próprio da liberdade do homem resulta do composto humano), seja de uma de suas partes (p.ex., do gênero: a quantidade física, no homem, é um próprio de seu corpo). O próprio, para resumir, pode conceituar-se, seguindo-se aqui as lições de Van Acker, o predicável não-essencial (ou não-substancial) atribuível a um sujeito de determinada espécie ou classe (omni), de modo exclusivo (soli) e constante (semper).
 
A politicidade (ou sociabilidade) é um próprio do homem, tal o são também, v.g., a risibilidade (a capacidade de rir) e o livre arbítrio, porque o ser político ou social é atributo omni, soli e semper dos homens: isto é uma lição clássica de Aristóteles, já no Livro I da Política: “… é evidente que a cidade é uma das coisas naturais, e que o homem é um animal social [ou animal cívico, animal político, animal que vive na polis], e que o associal por natureza e não por mal social é ou um ser inferior ou um ser superior ao homem” (Bkk. 1.253 a).
 
A politicidade é atributo omni, porque, com efeito, é notório que os homens se mostram debilitados para a vida solitária ou associetária, seja ela a material (não só em relação a seus contemporâneos, mas também por seus débitos quanto a antecessores: de fato e basta uma só ilustração: quanto devemos à invenção da roda?), seja a vida intelectual (quer na recepção, quer na transmissão de bens culturais), seja, enfim, a vida moral (pense-se, p.ex., no que ensinou Aristóteles acerca do papel da docilidade como condição da virtude da prudência). Em bom rigor, os homens não vivem, convivem: o relato bíblico da criação da mulher é também a referência da politicidade: com Eva nasceu a sociedade, por não ser bom estar só o homem non est bonum esse hominem solum.
 
A sociabilidade é, neste mundo terreno, um predicável soli dos homens, porque os animais gregários só analogamente se dizem sociais, primeiro porque, embora vivam instintivamente em conjunto, neles não há inteligibilidade, mas simples repetição de comportamentos inatos; segundo porque ainda uma vez é ensinamento de Aristóteles, “o homem é o único animal que tem palavra”, palavra “para manifestar o conveniente e o prejudicial, assim como o justo e o injusto”, certo que somente o homem “possui, apenas ele, o sentido do bem e do mal, do justo e do injusto, e dos demais valores, de modo que a participação comunitária destas coisas constitui a casa e a cidade” (Bkk. 1.253 a 12).
 
Por fim, a politicidade é atributo semper dos homens, porque, ao largo de sua existência, têm eles o dever de contribuir para o necessário à conservação da sociedade, designadamente realizando o bem que sua inteligência compreende sob o modo de verdade (lembremo-nos de que a verdade e o bem são transcendentais, e, pois, conversíveis entre si: não há distinção real entre o ente e a verdade, mas apenas uma distinção lógica, na medida em que a verdade expressa uma relação com a inteligência; tampouco há distinção real entre o ente e o bem, mas somente uma distinção lógica, pois o bem supõe um relacionamento com a vontade; assim, realmente, todos os entes são verdades, e todas as verdades são entes; todos os entes são bens, todos os bens são entes; logo, todas as verdades são bens, todos os bens são verdades).
 
698.  Ora, entre os deveres consequentes da politicidade humana está o da veracidade, que é uma das partes da virtude da justiça, a que se destina a palavra humana. Ao versar esta matéria, S.Tomás de Aquino observa que, para a convivência política, é necessário “dar mútuo crédito às palavras” (S.th., IIa.-IIæ., q. 109, art. 3, ad1um), não apenas às palavras internas verba interiora, mas à sua expressão (dictum exterius), incluída a documentária (dictum in vel per documentum).
 
Carnelutti, numa de suas sínteses geniais já antes referida ao largo destas nossas exposições, disse que documento é uma coisa que docet, ou seja, é algo que ensina, é algo que tem em si a virtude de fazer conhecer; é algo também, acrescentemos, que tem virtude para permanecer: com efeito, é o objeto corpóreo com traços de atividade humana destinado a registrar uma notícia aos pósteros e principalmente àqueles que a procuram (Schultze). É de Chiovenda, por sua vez, referir ser o documento toda e qualquer representação material dirigida a reproduzir duradouramente uma representação do pensamento (verbum interius); daí a expressão vox mortua, vale dizer, a voz fixada permanentemente por meio de escrito ou outro sinal corpóreo, com que o documento se consagra por ser uma coisa representativa de outra coisa, a coisa que docet outra coisa.
 
As palavras exteriores (dicta) referem-se diretamente às interiores (verba interiora) as escritas, às orais, ambas às universais paixões da alma, e só indiretamente às coisas. Assim, o dictum se se quiser, o documento no qual e pelo qual se exprime e comunica o verbum interius cumpre um papel manifestativo e comunicativo exigido pela politicidade humana: pode mesmo dizer-se que o documento é um próprio da sociedade dos homens. Ou seja: o homem não pode existir sem a sociedade política; a sociedade política não pode existir sem o documento (documento que já foi gravado em pedra, bronze, mármore, ladrilhos, folhas de oliveira, peles, tábuas de cera, pergaminho papiro, papel); ergo, o homem não pode conviver sem o documento.