(O registro de imóveis e os títulos materiais inscritíveis – Segunda parte)
 
699. Bem se avista por suas mesmas denominações, que o  título em acepção formal (dictum, narratio, documentum, instrumentum) é uma dada forma do título em sentido material (causa jurídica, fato, ato, negócio jurídico, actum). Tal dictum é uma sobreforma do actum, uma vez que este, em geral preexistente, já possui uma forma anterior; vale dizer, que o dictum é uma causa formal ou sobrecausa do mesmo gênero da causa anterior determinante do actum. O que faz o título em sentido formal é exatamente dar nova forma a um fato, ato ou negócio antecedente; e que, pois, se se diz preexistente é porque já transcendera suas causas.
 
Esse papel sobrecausativo do título em sentido formal põe-lhe à mostra uma essencial limitação, tal como a refere, reportando-se ao tabelião de notas, a doutrina de Juan Vallet: “El dictum o narratio es propio del notario. Éste es su autor, aunque sea un autor especial y específico. No puede narrar lo que quiere –como el novelista– ni subjetivamente lo que objetivamente refiere –como el historiador o expositor científico–, sino sólo lo que ha de decir de conformidad a su función”. Em outros termos, a narratio deve conformar-se com o actum: o dictum deve ser uma luz projetada sobre um fato, um ato ou um negócio já concluídos ou só então rematados; é como que uma illuminatio obiecti, destinando-se frequentemente a tornar claras as vontades contratantes claritas voluntatum.
 
A formalização do dictum pode visar a diferentes fins especiais (Pachioni). Pode almejar-se com a instrumentação (i) o pontual escopo documentativo de uma prova de contrato já concluído; ou (ii) a só fixação jurídica de um acordo precedente; ou (iii) firmar-lhe o conteúdo definitivo;  ou (iv) dar-lhe a forma ad solemnitatem (incluso a de um negócio prometido pactum de contrahendo: cf. Vallet). Em qualquer dessas espécies e abdicando, aqui, brevitatis causa, das candentes discussões acerca das teses da renovatio contractus, do caráter interpretativo do dictum, do de seus fins confessório ou novatório cēt., não se pode menosprezar a relevância do instrumentum, enquanto tal, é dizer: com abstração de seu conteúdo material (actum), como fator de asseguração jurídica, o que põe em saliência a importância do documento notarial e sua vantagem manifesta diante do documento particular.
 
De começo, observe-se, com a lição de Núñez Lagos, que, à falta de unitariedade, o documento privado, por si só, não é eficaz em ato, mas apenas em potência, demandando uma atuação adicional: a do notário que lhe agregue o reconhecimento das firmas de seus autores (assim, o título particular é heterôntico, pois sua eficácia depende de um elemento adicional recognoscente). Já o documento notarial é dotado de unitariedade, e sua eficácia não exige  complemento: é um hortus conclusus, assim o disse Núñez Lagos, um instrumento claustral.
 
Não é só (nem principalmente) isto o que avantaja o documento notarial em face do título privado, pois este último o documento particular está no grau ínfimo da segurança jurídica documentária. É que se trata, na lição de Vallet, de um documento redigido sem necessário assessoramento de um jurista que indague, compreenda, interprete e ajuste as vontades contratantes ao ordenamento jurídico. A congregação notarial das funções de assessoramento, conselho (em que se inclui o eminente papel do cavere) e de textualização põem já em evidência as reconhecidas vantagens da documentação pública. Mas a elas deve ainda atrair-se a dação da fé pública, o testemunho qualificado do notário, o que torna indisputável sua vantagem em relação aos documentos particulares.
 
700.  Disse bem Vallet estar neste somatório de funções descortinado o binômio auctoritas-potestas próprio dos notários (e dos registradores públicos). Com efeito, são eles tanto profissionais de direito (juristas, exercentes de arte liberal), quanto delegatários de fé pública, ou seja, aqui, detentores de uma potestas neles delegada pelo estado; ali, titulares de uma auctoritas da qual se abandeiram, por motivos históricos, e em que devem lealmente perseverar.
 
Destaca-se, a propósito, de uma lição de Juan Vallet:
 
“La potestas notarial de dar fe se la atribuye el Estado; pero, si socialmente no se le reconociera, si nadie confiase en él, sería vana. La auctoritas notarial, como profesional del derecho, consejero, asesor y configurador de los negocios jurídicos, que le sean encomendados, requiere en él un saber teórico y práctico socialmente reconocido, que sus clientes muestran al ejercer libremente su elección.”
 
Em que consiste a auctoritas? Em que se distingue da potestas?
 
Ainda que no usus loquendi nossos vocábulos “autoridade” (correspondendo ao latino auctoritas) e “potestade” (equivalente a potestas) apareçam de modo intercambiável, a ponto mesmo de José Bono referir a constituição no cargo notarial mediante a concessão da licentia exercendi e a imposição da auctoritas  como “interposición del poder regio a todos y cada uno de los documentos que en la forma y con los requisitos legalmente prescritos autorizara el notario”, melhores razões parecem confortar esta distinção ensinada pelo grande romanista que foi Álvaro D’Ors:
 
“Podríamos definir la autoridad como la verdad socialmente reconocida, y la potestad como la voluntad de poder socialmente reconocida” (cf. Escritos varios sobre el derecho en crisis).
 
“Autoridad es el saber socialmente reconocido” (vidē Verbo, de Madri, n. 345-346).
 
O termo auctoritas é isto ainda uma referência de D’Ors contaminou-se com o significado de potestas, mas, em rigor, auctoritas é o que aumenta (e aumentar provém do verbo latino augere) com a aprovação do saber mediante um ato advindo de terceiros; vale dizer, que, no conceito de autoridade, há um elemento de acréscimo, de aumento da força de quem se reveste da auctoritas. Por isto, pode entender-se que a noção de autoridade corresponda a de ato digno de fé e obediência.
 
Este acréscimo ou reconhecimento social para a configuração da auctoritas é um dado de fato, algo relativo, graduado (ora mais, ora menos), sujeito a vicissitudes circunstanciais que podem, além de aumentar (augere) a autoridade, diminuí-la (minus fieri) ou mesmo, conforme o caso, levá-la à desaparição com o tempo. A auctoritas pode ser singularmente pessoal (p.ex., Aristóteles, Quintiliano, Dante e Alessandro Manzoni detêm reconhecida autoridade autoridade pessoal, singular, respectivamente, na filosofia, na oratória, na poesia e no romance histórico), mas pode ser um auctoritas coletiva ou institucional, tal a situação dos que recebem um patrimônio histórico marcado pela continuidade diacrônica da auctoritas: é exatamente o quadro dos notários e dos registradores públicos, que se abandeiram do legado de seus Maiores, sucedendo-lhes, enquanto partícipes de uma corporação, no atributo da auctoritas, mas que têm sobre os ombros a gravíssima responsabilidade de, quando menos, preservar, para não dizer mesmo a de aumentar a autoridade que recepcionaram.
 
A auctoritas corresponde, pois, ao prestígio do saber (D’Ors). Note-se uma distinção relevante: pode alguém suceder, como partícipe de uma instituição, no patrimônio transmitido: o tabelião e o registrador são sucessores de seus Maiores no Notariado e nos Registros, mas assim o são enquanto participam do todo institucional; por isto, diz-se que são eles abandeirados da tradição das notas e dos registros. Coisa diversa é que o prestígio do saber (auctoritas) não possa ser sucedido a um modo pessoal (os filhos do grande Alessandro Manzoni não herdaram a autoridade literária do autor do mais admirável dos romances históricos já escritos Os noivos, I promessi sposi). Diz acertadamente, ainda uma vez, Álvaro D’Ors: “La autoridad no es nunca delegada ni delegable…”.
 
Esta valiosa asserção de D’Ors (“La autoridad no es nunca delegada ni delegable…”) vem assim rematada: “…a diferencia de la potestad” (ou seja: a potestas pode delegar-se), até porque, ensina o mesmo D’Ors, todas as potestades humanas, de modo mediato ou imediato, são delegadas. Ao revés da auctoritas, que exige o prestígio ou reconhecimento social, a potestade não tem origem nesse reconhecimento; ele é sua mera condição.
 
701.  Três são as funções próprias da auctoritas, saber socialmente reconhecido, quais sejam: uma, residente na inteligência; outra, na vontade; a terceira, transcendente de quem possui autoridade. Radica no intelecto uma função paideica ou magisterial, que consiste na sabedoria ou veracidade reconhecida (recordemos que D’Ors define a auctoritas não só “saber socialmente reconocido”, mas também “verdad socialmente reconocida”); em acepção principal, a ideia de “ter autoridade” é um indicativo exatamente de que alguém (dotado de reconhecida sabedoria) pode fazer aumentar o conhecimento dos demais (scl. “la sabedoría sirve de argumento para la aceptación de su enseñanza” – Álvaro Calderón).
 
Além dessa função intelectual, a autoridade possui uma função de caráter moral, de garantia, de fidúcia, de confiança: seus portadores, dotados de sabedoria reconhecida, são também probi homines, homens honestos, com virtude provada (socialmente reconhecidos), observantes do dever de veracidade (são fontes de “verdad socialmente reconocida”) e, pois, dignos de confiança. Não apenas, pela inteligência, sabedores da verdade, mas, pela vontade, inclinados  a custodiar e realizar a verdade sob a forma de bem (verum et bonum convertuntur; função de jusificação).
 
Confluem essas duas funções em que, pelo ensinamento e pelo exemplo, pela retidão de suas ações, os homines probi, dotados de autoridade, conduzem os demais partícipes ou conviventes da sociedade a amar e buscar o bem comum (função de prudência social, que, em rigor, apenas reúne as funções anteriores ao modo de suas partes formais).
 
Notários e registradores públicos, enquanto se abandeiram na tradição mais que milenar de suas nobilíssimas instituições, na possessão do legado recebido, muito têm ainda de responsabilidade para preservar e até aumentar, por meios de suas condutas pessoais, o reconhecimento da auctoritas do Notariado e dos Registros públicos, ensinando a verdade (função magisterial) e concordando os corações para o bem comum (função moral de justificação ou de concórdia social, de paz jurídica), no exercício probo de suas altíssimas profissões (função conclusiva de prudência social): será esta, enfim, a expressão mais sólida e animadora do histórico e provado amor que eles dedicaram por séculos ao bem comum e, aguarda-se isto, ainda hão de sempre e sempre devotá-lo.
 
Em suma, não foi nem é a potestade da fé pública que justificou e justifica o notário e o registrador. Exatamente ao revés: foi e é a autoridade dos registradores e notários que justificou e justifica neles a delegação da fé pública. Só a leal continuidade dos notários e registradores na possessão dessa auctoritas ou seja, apenas a perseverança do prestígio de seu saber intelectual, de seu querer moral e de sua inclinação social ao justo justificará a permanência da fides publica nas valiosas instituições jurídicas da paz jurídica.