(O registro de imóveis e os títulos materiais inscritíveis – Sétima parte)
716. A parte dispositiva ou stipulatio na escritura notarial –deixando, por ora, suspensa uma distinção de matiz no uso destes termos– corresponde, na expressão metafórica de Chico Ortiz e Ramirez Ramirez, ao reflexo da encarnação do negócio jurídico, na medida em que torna visíveis os acordos e os modos contratuais que se solenizam no instrumento público (Giménez Arnau) como um consequente lógico e cronológico da audiência notarial e da expositio.
A parte dispositiva na escritura é aquela em que se expressa literalmente o estabelecimento, a modificação ou a extinção das relações de direito (Fernandez Casado), de maneira que ela se configura, na estruturação interna do instrumento público, qual uma dada conclusão lógica do procedimento –ou discurso– notarial a que, cronologicamente, sucede. Por isto, sem embargo de a comparência –é dizer, a compresença dos clientes e do notário– ser a realidade principal do instrumento público (Chico Ortiz e Ramirez Ramirez), comparecimento que é a ocasião propícia para a recolha dos motivos do ato ou negócio (expositio), pode admitir-se, por outro aspecto, que a parte dispositiva é para a escritura “la esencia, el alma, la razón de ser” (Emérito González), ou, tal o diz Gomá Salcedo, “el centro y la razón de ser de la escritura pública”.
Não há contradição em reconhecer o acerto de ambas essas referências, tão aparentemente conflitivas entre si. É que a comparência notarial, enquanto é o tempo da audição, da compreensão, da interpretação da vontade dos clientes, constitui, ao lado da expositio, as premissas ou antecedentes que despontam na conclusão dispositiva do instrumento público. De modo que, secundum quid, aqueles, comparecimento e exposição, são principais por seu relevo causal, ao passo que, não menos relativamente, a parte dispositiva é principal enquanto res effecta, efeito buscado pelos comparecentes. Por outro aspecto, se é certo dizer que, no conjunto das causas, o fim seja a principal delas –e certo é não menos que a disposição ou conclusão do negócio seja o que buscam o notário e os clientes–, não se pode recusar, em contrapartida, que o mais importante da missão notarial está na função do cavere, e esta função é, sobretudo, própria do tempo da preparação do ato, ou seja, do tempo da invenção das premissas (inventio præmissæ) que constituem o logos da conclusão ou disposição do ato notarial.
717. Denomina-se, frequentemente, estipulação –ou, no plural, estipulações– a parte dispositiva da escritura notarial. O termo e o próprio conceito provêm de stipulatio, contrato que, no direito romano, com dezenas de espécies, consistia, fundamentalmente, numa fórmula promissória em que o contratante futuro credor (stipulator) dirigia uma pergunta ao contratante devedor (promissor), que a respondia, aceitando o pacto (assim, indagava o credor: dabisne? e respondia o devedor: dabo; promittisne?; promitto; faciesne? faciam).
Tenha-se em conta, a propósito, que a stipulatio romana foi, num primeiro momento da prática do instrumento público, o resultado da crescente necessidade de passar da mera testatio (documento de testemunho) à cautio (documento preventivo em que se trata de textualizar particularidades difíceis de serem, integral e fielmente, retidas pela memória –cf. Álvaro D’Ors); aí estava a stipulatio ao modo de uma simples “acta de un acto oral” (Rafael Núñez Lagos), correspondendo, pois, ao desfecho escrito ou conclusão do procedimento dos notários, embora seu texto amplificado não raro contivesse também referência aos convênios antecedentes. Todavia, quando se tornou mais complexa a redação dos negócios objeto das escrituras públicas, a stipulatio –na perspectiva do desfecho do ato notarial– tornou-se não mais que uma cláusula estipulatória, mera confirmação do conteúdo do instrumento; é isto o que diz Núñez Lagos: “La stipulatio es una mera confirmatio del contenido de la escritura. La fórmula que se emplea es: ea quæ scripta sunt, promittis? Promitto”, e isto acarretou, ao fim, “la sustitución definitiva del acto oral por el documento mismo” (D’Ors).
Além disto, observe-se que a stipulatio, a exemplo do que ocorreu com a expositio, admitiu a enunciação elíptica, omitindo-se frequentemente a pergunta, por entendê-la inferida da resposta (com efeito, se consta que o promissor disse spondeo é porque o stipulator indagou spondesne?). Três pontos dão apoio a esta construção elíptica: primeiro, o de que, contrato solene, a stipulatio implicava sempre o uso do mesmo verbo nos pares correspondentes de perguntas e respostas: se o verbo é do, a resposta é do ou dabo, cēt.; se o verbo é facio, a resposta tem de ser facio ou faciam, etc. Segundo: como a resposta é que tem caráter institutivo da obrigação pactada, isto justifica a razão de sua expressão preferir à da pergunta. Terceiro: antes da resposta do promissor não há confirmação do contrato.
Acrescente-se que, como o disse Núñez Lagos no excelente estudo preliminar à Aurora de Rolandino, avultando-se muitos negócios e cláusulas num só ato, surgiu a necessidade de “un rosario de preguntas y respuestas”, disso advindo que a transcrição a cerimônia parecia um “confuso diálogo de una monótona comedia”, razão pela qual a metódica dialógica da stipulatio foi substituída pela narrativa indireta, sumária e objetiva (stipulatus est; spondit).
Assim, tendo em conta, primeiro que a redução ou mesmo degeneração da stipulatio limitara seu papel ao de uma cláusula de estilo, porque, ao realizar-se, já estava textualizado inteiramente o ato, só se produzindo a fórmula estipulatória ao modo de uma clausura ritual, e, adiante, que a stipulatio se converteu em uma narrativa indireta pelo notarius, pode bem compreender-se a razão pelas qual a parte dispositiva das escrituras notariais recebeu, ao lado do nome estipulação e, nas Siete Partidas de Dom Alfonso X, promisión, os nomes de cláusula, de texto e de homologação.
Cabe aqui, entretanto, ainda quanto ao uso do nome estipulação notarial, distinguir um sentido menos propício e outro mais estrito. Esse termo estipulação parece próprio para os casos de pactos ou convênios entre os clientes, é dizer, quando se trate de contratos, como corresponde à stipulatio romana. Diversamente, falar em estipulação quando se cuide de ato unilateral (p.ex., testamento, doação) é impróprio, porque então a vontade está destinada a um terceiro (cf. Gomá Salcedo, Chico Ortiz e Ramirez Ramirez); melhor é, então, neste quadro, falar em mera disposição ou outorga. É o que também entende Giménez Arnau: “…la palabra estipulación parece hacer referencia a un acuerdo bilateral, en tanto que la disposición supone un acto de carácter más bien unilateral”.
718. Enfim, na estipulação notarial consolida-se a expressão fiel das vontades contratantes, assim as pôde compreender e interpretar o notário, e também sua textualização deve guardar harmonia com os efeitos jurídicos almejados pelos clientes e os moldes legais que assegurem essa eficácia (cf. Chico Ortiz e Ramirez Ramirez).
Por mais deva, de resto, afirmar-se a importância, marcante na etapa da audição notarial, quanto à compreensão das vontades contratantes e sua interpretação, não se deve reduzir em relevância a tarefa redacional da parte dispositiva da escritura.
Para já, é essa a parte, a dispositiva ou estipulativa, em que mais se centra a posterior qualificação registral, nada obstante o registrador possa valer-se da expositio para, também ele, compreender e interpretar as vontades expressadas no título notarial. Não é demasiado insistir, neste passo, que o registrador não é um amanuense matricial –um mero copiador de textos escriturados pelo notário. O registrador, que é um jurista e não um mero documentador, é também um criador de textos, para os quais recolhe atos, negócios e vontades instrumentados na escritura notarial.
O que ainda parece deva destacar-se é que, na estipulação notarial, por ser ela um consequente da comparência e da expositio, há um campo de liberdade na atuação do notário; mais exatamente, é neste momento que se solidam a compreensão e a interpretação notariais das vontades contratantes, bem como o submetimento dos negócios à moldura legal escolhida ou, mais amplamente, ao quadro do direito que justifica a eficácia dos contratos. Mas vai-se um tanto além, porque não basta –oralmente– compreender, interpretar e exercer a função de conselho e previdência (a tarefa do cavere, a função previsora de danos e lesões), senão que o notário tem ainda uma derradeira liberdade (que se reclama responsável, que se recomenda clara, que se exige veraz): a de textualizar o quanto compreendeu, interpretou e pôs sob o molde do direito aplicável.
Há, pois, sobretudo na parte dispositiva da escritura, uma importante correlação entre a escrita notarial e o escritor notarial.
Nem sempre se tem advertido, de um modo genérico e, em particular, na fase de estipulação notarial, esta relevância da “personalidad del Notario” (Giménez Arnau). Em 1977, no XIV Congresso Internacional do Notariado Latino, coube a Juan Vallet redigir a apresentação dos notários espanhóis, salientando “que la institución notarial se basa en la persona del notario y en su labor”. Em tempos como os atuais, parece muito oportuno insistir, sublinhadamente, em que o instrumento público é uma obra (externa) formada a partir de uma operação imanente do agir humano de um profissional dotado de independência jurídica e formação especializada: o notário não é um artífice servil limitado a observar, com maior ou menor destreza, as regras e o modo de gerar um documento que, talvez, um aparato tecnológico melhor pudesse produzir. Não, não: o notário é um profissional do direito, um artista liberal que exercita, renovando-a, a vetus ars boni et æqui; é um jurista, enfim, não um servus mechanicus.