A união estável possui matriz constitucional, tendo sido os Direitos dos companheiros assegurados segundo os ditames do §3º do art. 226 da Constituição Federal[1]. Ato contínuo, o referido artigo foi regulamentado pelo Código Civil de 2002, que conceituou a União Estável em seu art. 1.723 como uma “entidade familiar entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”.
Evidencia-se, ainda, que a exigência de sexos distintos foi superada por decisão proferia pelo Supremo Tribunal Federal (STF) nos autos da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF nº 132, no sentido de dar interpretação conforme a Constituição Federal, e, desse modo, excluir qualquer entendimento acerca do artigo 1.723 do Código Civil que impeça o reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar.
Mas, considerando a consulta em epígrafe, a regra mais importante é trazida pelo §1º do referido artigo 1.723 do Código Civil, in verbis:
§ 1º A união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art. 1.521; não se aplicando a incidência do inciso VI no caso de a pessoa casada se achar separada de fato ou judicialmente.
Na sequência, por apreço à didática, reproduz-se abaixo o inciso VI do art. 1.521 do Código Civil que atinge diretamente o tema tratado, in verbis:
“Art. 1.521. Não podem casar:
(…)
VI – as pessoas casadas;
Portanto, de imediato, o Código Civil revela duas premissas: i) é vetada a configuração de união estável para pessoas casadas; ii) para fins de legitimação dos sujeitos da união estável, não se consideram casados aqueles que estão separados de fato ou judicialmente.
Sobre a separação de fato, vale ressaltar que não há qualquer critério temporal para sua configuração, mas sim a demonstração de que inexiste vínculo conjugal propriamente dito. Melhor explica Maria Berenice Dias[2]:
“Não obstante a dissolução da sociedade conjugal ocorrer com o divórcio, é a separação de fato que, realmente, põe um ponto final no casamento. Todos os efeitos decorrentes da nova situação fática passam a fluir da ruptura da união. […] O fim da vida em comum leva à cessação do regime de bens – seja ele qual for -, porquanto já ausente o ânimo socioafetivo, real motivação da comunicação patrimonial.”
A separação de fato produz os mesmos efeitos jurídicos da separação convencional ou do divórcio, tanto no campo obrigacional quanto no patrimonial, fazendo cessar, inclusive, o dever de fidelidade. Desta forma, estando os cônjuges separados de fato, não se vislumbra a impossibilidade de contrair união estável com terceiros e tão pouco a situação apresentada pelo art. 1727 do Código Civil, abaixo reproduzido:
“Art. 1.727. As relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar, constituem concubinato.”
Nessa senda, vale, ainda, citar a definição de União Estável para o autor Álvaro Villaça de Azevedo[3]:
“A convivência não adulterina nem incestuosa, duradoura, pública e contínua, de um homem e de uma mulher, sem vínculo matrimonial, convivendo como se casados fossem, sob o mesmo teto ou não, constituindo, assim, sua família de fato.”
Pois bem, acerca da manutenção do casamento (onde não existe separação de fato) concomitante com união estável, cola-se abaixo julgado que ilustram o tema:
“DIREITO DE FAMÍLIA E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL. HOMEM CASADO. OCORRÊNCIA DE CONCUBINATO. INDAGAÇÕES ACERCA DA VIDA ÍNTIMA DOS CÔNJUGES. IMPERTINÊNCIA. INVIOLABILIDADE DA VIDA PRIVADA. SEPARAÇÃO DE FATO NÃO PROVADA. ÔNUS DA PROVA QUE RECAI SOBRE A AUTORA DA AÇÃO. 1. A jurisprudência do STJ e do STF é sólida em não reconhecer como união estável a relação concubinária não eventual, simultânea ao casamento, quando não estiver provada a separação de fato ou de direito do parceiro casado. 2. O acórdão recorrido estabeleceu que o falecido não havia desfeito completamente o vínculo matrimonial – o qual, frise-se, perdurou por trinta e seis anos -, só isso seria o bastante para afastar a caracterização da união estável em relação aos últimos três anos de vida do de cujus, período em que sua esposa permaneceu transitoriamente inválida em razão de acidente. Descabe indagar com que propósito o falecido mantinha sua vida comum com a esposa, se por razões humanitárias ou qualquer outro motivo, ou se entre eles havia “vida íntima”. 3. Assim, não se mostra conveniente, sob o ponto de vista da segurança jurídica, inviolabilidade da intimidade, vida privada e dignidade da pessoa humana, discussão acerca da quebra da affectio familiae, com vistas ao reconhecimento de uniões estáveis paralelas a casamento válido, sob pena de se cometer grave injustiça, colocando em risco o direito sucessório do cônjuge sobrevivente. 4. Recurso especial provido. (REsp 1096539/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 27/03/2012, DJe 25/04/2012)”
Note-se que é uníssona a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) ao tratar da manutenção concomitante de casamento e união estável. Entretanto parte da doutrina vem admitindo a possibilidade de cumulação de duas ou mais relações, quando caracterizada a boa-fé do companheiro.
A título de estudo, longe de se esgotar o tema nesta ocasião, vale a reflexão de alguns doutrinadores de que caso o companheiro tenha ciência da união marital havida na qual esteja envolvida a outra parte, tem-se a existência da má-fé, denominando-se assim concubinato impuro. Lado outro, reconhece-se a existência pura de tal união, qual seja, a existência de todos os requisitos da união estável sem que o companheiro saiba do casamento da outra parte, restando configurada a boa-fé, cuja principal repercussão será a produção de efeitos no campo patrimonial, tendo tal companheiro os mesmos direitos aplicáveis ao cônjuge. Nessa linha, Álvaro Villaça Azevedo[4]:
“[…] concubinato impuro ou concubinagem, não deve merecer apoio dos órgãos públicos e, mesmo, da sociedade. Entendemos, ainda, que deste não deve surtir efeito, a não ser o concubinato de boa-fé, como acontece, analogamente, com o casamento putativo, e para evitar-se locupletamento ilícito.”
Feito esse breve passeio sobre o instituto da União Estável frente ao casamento pré-existente, vale agora analisar a questão no mundo notarial. Em primeiro plano, deve-se recordar que embora a Escritura de Declaração de União Estável possa ser registrada no Livro “E” do Registro Civil das Pessoas Naturais e no Registro de Imóveis, o referido ato notarial não é constitutivo, mas sim declaratório, uma vez que a União Estável é situação de fato que é configurada pelo preenchimento dos critérios estabelecidos no artigo 1.527 do Código Civil.
Logo, o Notário quando recebe a demanda para lavrar a Escritura Pública de Declaração de União Estável deve ter em mente afastar as ilegalidades, não sendo possível imputar a ele a investigação da vida privada do cidadão, restando, neste aspecto, apenas captar as declarações das partes. Em outras palavras, se está evidente que existe casamento válido, não é possível lavrar a escritura, pois estar-se-á diante de uma evidente ilegalidade.
Por outro lado, a separação de fato não se mostra evidente e, portanto, não pode obstar a lavratura da escritura pública, mas também não autoriza ao Tabelião de Notas a afirmar em seu ato que a parte é separada de fato, restando nesse caso consignar que a parte assim se declarou, ficando a necessidade de prova para momento oportuno, caso se faça necessário.
Portanto, a negativa à pergunta em tela é evidente em relação às pessoas que tenham seus casamentos válidos e positiva para aqueles com casamentos formalmente desfeitos, mas no que toca aqueles que apenas se separaram de fato, o Tabelião de Notas deve avaliar bem o caso e compreender, dentro de sua independência funcional, se não há indícios de grave risco à fraude ou ineficácia, remanescendo a possibilidade de consignar a declaração das partes sobre seus respectivos estados civis. E, finalmente, o mesmo ocorre ainda em relação aos que se declaram solteiros.
[1] “Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. (…) § 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
2 DIAS, Maria Berenice, Manual de Direito das Famílias. 10. Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015.
3 Azevedo, Álvaro Villaça. União Estável, artigo publicado na revista advogado nº 58, AASP, São Paulo, Março/2000.
4 AZEVEDO, Álvaro Villaça. Estatuto da Família de Fato, 2001. p. 211.