(seq. NOTÁRIO LATINO ou ROMÂNICO):
Pode apontar-se na Antiguidade o germe do notário latino (ou românico). Já, por exemplo, na larga extensão territorial do Império romano, havia mais de uma dezena de classes de funcionários: tabeliones, tabularii, chartularii, actuarii, librarii, cēt., e eles “participaban más o menos del carácter notarial” (Fernández Casado). Seria possível ir muito aquém desse tempo da Roma antiga e de seu Império, recolhendo a atuação “mais ou menos notarial” entre os assírios, os caldeus, os cartagineses, os persas, no antigo Egito, entre os judeus –que tinham, na expressão latina, seus scribæ regis, templi et populi.
Menos remotamente, contudo, podemos encontrar uma linha histórica mais contínua de ascendentes do notário latino a partir da passagem da Idade antiga para a Alta medieval, ou seja, entre o final do século V e a primeira metade do VI. Houve, por então, um fato que, embora de modo indireto, influiu decisivamente no itinerário da geração do Notariado latino: é que, tratando de reformar os estudos jurídicos, editou o Imperador Justiniano (c. 482-565) a Constituição Omnem (16-12-533), por ela determinando a redução dos centros públicos autorizados a ministrar estudos jurídicos, no larguíssimo Império romano, a apenas três lugares: Berito ou Beritós (hoje, Beirute), Constantinopla e Roma. Logo fechou-se a escola oppidi Romæ, e esses estudos especializados ficaram acanhadamente restritos às duas outras cidades (Berito e Constantinopla).
O efeito de fato dessa limitação imposta por Justiniano foi o de atraírem-se os práticos jurídicos do Império romano aos lugares em que se estudavam as artes do trivium, a saber: sobretudo, as escolas monásticas ou monacais.
Quando as escolas profanas que provinham da Antiguidade romana começaram a desaparecer por força das invasões bárbaras no Império do Ocidente, as escolas religiosas tornaram-se o único instrumento de preservação e transmissão da cultura. Se bem, principalmente, destinassem-se essas escolas à formação de clérigos, o fato é que nelas terminaram por admitir-se a presença de leigos –não só de crianças e jovens oriundos de famílias da nobreza, mas igualmente de meninos camponeses. A orientação que se adotou, de início, no monaquismo do Oriente, em que havia a prevalência do critério de formação ascética e moral, não persistiu na escola monástica do Ocidente, na qual “as letras foram de rigor”, de modo que no Oriente não surpreendia que um monge fosse analfabeto, mas o caráter letrado era uma nota comum dos monges ocidentais. Bastaria ver que, ao introduzir-se o monaquismo africano, a regra da primeira comunidade de estudos fundada por S. Agostinho, em Tagasta, previa a existência de uma biblioteca; também em Marmoutier, onde tem início o monaquismo gaulês, os monges de S. Martinho são copistas de manuscritos (cf., por todos, brevitatis causa, Henri Maurrou, Gustavo Eloy Ponferrada e Ruy Afonso da Costa Nunes). Os monges do Ocidente, em suma, conservavam, longe da agitação das cidades, os tesouros culturais do mundo antigo, estudando-os, aprofundando-os e transmitindo-os às gerações sucessivas, atividade de grandioso vulto, tão dinâmica quanto paciente, atividade que se expandiu para a vida urbana, criando-se, então, escolas paroquiais, claustrais, episcopais, catedralícias e palatinas, todas, cada qual a seu modo, com o ânimo de aprender os saberes e ensiná-los.
À falta de terem outras escolas devotadas a estudar e difundir o saber jurídico –cujo objeto, o direito, estava de todo conturbado pela presença invasora dos bárbaros–, os práticos da vida jurídica, ao longo daqueles tempos do Império romano, acolhiam-se nestas escolas religiosas, para nelas aprender algo que estivesse mais próximo de sua vocação, tal era o trivium (as três primeiras artes liberais: a gramática, a retórica e a lógica e/ou a dialética). Artes liberais são as artes dos homens livres, as artes “que não servem para ganhar dinheiro” (Ernest Robert Curtius), e as do trivium representam caminhos intelectuais que se cruzam e articulam-se (Miriam Joseph). As outras artes liberais eram as do quadrivium (aritmética, música, geometria e astronomia), mas seu desbordamento pode afirmar-se já com as Etimologias de S. Isidoro de Sevilha (560-636), em que, logo após as sete artes (do trivium e do quadrivium), tem-se o estudo da medicina, das línguas, do homem, dos animais, etc., e também –o que aqui muito interessa– o estudo das leis e dos ofícios eclesiásticos, porque “ele escrevia também para eruditos, jurisconsultos e monges” (Umberto Eco).
A germinação do notariado latino, remetida aqui concisamente ao início da Alta medieval, foi objeto de muitos estudos, entre eles os Rafael Núñez Lagos, Antonio Rodrígues Adrados e José Bono Huerta, sendo, a propósito, particularmente relevante a análise que ao tema dedicou Juan Vallet de Goytisolo, de maneira especial em sua Metodología de la determinación del derecho. Não se entenderá o discrimen entre a fé pública dos notários (fides publica notariorum) e sua autoridade (auctoritas), nem se compreenderá a natureza do notário latino como função da comunidade, se não o quadrarmos com sua trajetória histórica, com seu tempo de gestação nas scholæ medievais.
Continuaremos, pois, no assunto.