(O registro de imóveis e os títulos materiais inscritíveis – Décima parte)
 
Des. Ricardo Dip
 
A vigente lei brasileira de registros públicos –Lei n. 6.015, de 1973– elenca, em seu art. 221, os títulos formais inscritíveis nos ofícios imobiliários, lista que pareceria impulsionar embora pelo texto de seu caput uma compreensão taxativa, mas que não pode evadir duas possibilidades, uma, a do concurso de títulos que estejam ou venham a ser previstos em norma extravagante dessa mesma lei; outra, a do aparente caráter enunciativo de algumas das hipóteses alistadas nesse dispositivo da Lei de Registros Públicos (bastaria aqui, para pôr em xeque estar in numero clauso o rol dos títulos quer registráveis sensu stricto, quer averbáveis, considerar os ns. 13 e 14 do inc. I do art. 167 da Lei n. 6.015 –sobre o que se dirá algo adiante– e o n. 12 de seu inc. II: “decisões, recursos e seus efeitos, que tenham por objeto atos ou títulos registrados ou averbados”).
 
Lendo-se no caput desse art. 221 que “somente são admitidos a registro” as (i) escrituras públicas, (ii) determinados escritos particulares, (iii) atos autênticos de países estrangeiros, com força de instrumento público, (iv) alguns títulos judiciais (cartas de sentença, formais de partilha, certidões e mandados extraídos de autos de processo) e (v) contratos e termos administrativos, pode parecer que o advérbio inaugural do preceito –o vocábulo somente– conduziria à clausura do acesso ao registro por títulos que não estivessem arrolados na sequência expressa do dispositivo. Com efeito, o sufixo do advérbio somente é significativo do sentido de intenção, disposição, ou seja, é um afixo de adjunto modal (cf. Rodolfo Ilari, Linguística românica), e o modo indicado é o da exclusão do não expresso, do que não é explícito.
 
Se isto acarretou, sobretudo nas primeiras décadas de vigência da Lei n. 6.015, uma orientação pretoriana rigorosa, tal, p.ex., a que inibiu o acesso registral a meros ofícios judiciais, o fato é que, paulatinamente, foi-se abrandando a rigidez de compreensão do dispositivo desse art. 221, para logo postergando o nomen ofício em favor de um conteúdo ordenatório (com que ofícios passaram a entender-se mandados), além de acolher-se comodamente cartas de adjudicação e de arrematação, não previstas, embora, de maneira expressa, no aludido preceito de regência. Da mesma sorte, prontamente se admitindo a registro as cédulas de crédito rural e industrial, estas porque previstas expressamente nos ns. 13 e 14 do inciso I do art. 167 da Lei n. 6.015, foi-se solidando a persuasão de que o art. 221 não dispunha de modo exauriente.
 
De outro lado, todavia, o uso do advérbio (somente) pôde resguardar-se razoavelmente para evitar que, a despeito de não se admitir o numerus clausus da previsão, pudesse sugerir-se um sistema excessivamente aberto que acarretasse produzir resultados de informalização ou deformação de uma instituição jurídica decididamente formalista.
 
Em síntese, admitem-se a registro outros títulos além dos expressamente previstos no art. 221 da Lei n. 6.015, mas isto não significa uma desconstrução sistêmica habilitada a albergar não importa qual forma de titulação. O núcleo da clivagem do acesso registral que se admite ou não é o do binômio economia-segurança jurídica. Economia de tempo, de custos e de esforços; segurança pela forma e pelos fins. (Salientemos, neste passo, que, em acepção clássica, a economia é um saber de ética prática –é ciência e é arte–, cuja finalidade é a justiça, tanto a comutativa, quanto a distributiva, ordenando a relação inter homines, com vistas à reta consecução dos bens terrenais. Importa sublinhar ser a economia critério fundamental em todos os processos de interesse humano, indo-se ao ponto de Álvaro Calderón sustentar, com bem lançados fundamentos, que inteiramente econômico foi até mesmo o processo de criação divina do próprio homem a partir do barro, evitando-se com isto a extinção de uma vida anterior –a de um macaco, a que tamanha devoção tributam os evolucionistas, ou de um cavalo pequeno, isto pareceria mais acomodado à quantidade da matéria do homem– e a desorganização de um organismo antecedente, o que provocaria reações adversas de todos os animalistas, preferindo-se, diversamente, uma organização do novo corpo criado, o do homem, sem o sacrifício de um animal precedente: “un buen arquitecto prefiere usar ladrillos nuevos y no ladrillos de demolición”).
 
Uma conhecida ambiguidade no uso do termo título tem conduzido a uma aparente perplexidade, quando se trate de saber qual a causa material da inscrição imobiliária. É que tanto pode falar-se em título como documento (o título em sentido formal), quanto como causa jurídica –título em acepção material.
 
Ora, a acessão da causa ou título sensu materiali no registro imobiliário demanda sempre a forma documentária (título em acepção formal). Daí que não seja incorreta a afirmação, p.ex., entre nós, esta de Valmir Pontes, de que “o registro de imóveis é registro documental por excelência”, porque, prossegue o autor, “todos os atos a ele sujeitos devem ser fundados em documentos, públicos ou particulares, jamais se admitindo, nele, simples declarações verbais dos interessados, feitas diretamente ao oficial, como no Registro Civil das Pessoas Naturais”.
 
Todavia, isto apenas significa que não se procede a nenhuma inscrição imobiliária sem apoio em uma base documentária. Não é o documento, porém, o suficiente quid registral, como se bastara para a inscrição. Já o deixamos dito:“propriamente, o que se inscreve é o título em acepção material”. Sendo o documento aquilo que instrumenta ou veicula a causa jurídica, opera como forma do titulus materialis e como que uma condição para que a causa jurídica acesse o registro imobiliário. Neste sentido, o registro predial é também um registro de títulos (e, algumas vezes, quando tenha caráter declarativo, um registro de direitos). Daí a expressão de que o registro de imóveis inscreva títulos documentados –ou títulos titulados.
 
Os títulos, em sua acepção formal, expressam de maneira determinativa ou individuante os títulos em sentido material; dão-lhe existência (põem-no fora de seus fatores causais) e provam-lhe o conteúdo. Deste modo, o título sensu formali cumpre as finalidades de exprimir, de determinar e de provar uma causa jurídica ou título materiali sensu. Não há um sem o outro, porque respondem ambos pela substância; um é significante, outro, significado; um é sinalizante, outro, sinalizado; um é ensinado, outro, docet; um é actum, outro é dictum; um é numen, outro é nomen. Um sozinho é palavra oculta; outro, isolado, é palavra vácua. Se a forma deve moldar a matéria, esta deve dispor-se a recepcioná-la: ambas fazem a substância.
 
Supera-se, assim, o só aparente conflito: o registro imobiliário é um registro de títulos substancialmente unitários: tanto, pois, secundum quid, é registro de documentos, quanto, não menos relativamente, é registro de causas jurídicas, e por mais que estas sejam o objeto das inscrições prediais, não repugnam a essencial exigência do documento para suas correspondentes registrações.
 
E, portanto, já nos encontramos nos umbrais das causas jurídicas suscetíveis de aceder ao registro imobiliário brasileiro.
 
Não se trata só do disposto no elenco dos incisos do art. 167 da Lei n. 6.015, de 1973, embora esse preceito possa considerar-se ao modo de um grande roteiro, que, na maior parte das vezes, alista explicitamente causas jurídicas (títulos em sentido material), outras, refere-se a documentos (p.ex., contratos, sentenças).
 
Em sua primeira parte, esse art. 167 elenca títulos que propiciam atos de registro em sentido estrito (inc. I), ao passo em que, adiante (inc. II), arrola títulos que ensejam atos de averbação.
 
Começaremos pelos primeiros, mais exatamente pelo bem de família, indicação inaugural da lista dos títulos registráveis sensu stricto, objeto de disciplina específica no Código Civil brasileiro (arts. 1.711 a 1.722) e na mesma Lei n. 6.015/1973 (arts. 260 a 265).