Solucionar os conflitos envolvendo a vontade de pessoas que já faleceram é normalmente um desafio. A incerteza a respeito da possibilidade ou não de doação de órgãos, por exemplo, pode levar a questão para o Judiciário.
Um caso recente julgado pelo Superior Tribunal de Justiça envolvendo uma técnica pouco comum no Brasil, mostra bem como pode ser difícil identificar qual era o real desejo do falecido. Diante disso, uma atuação preventiva, que se antecipe a controvérsias como essa, ganha cada vez mais importância.
Mas primeiro vamos ao caso. Trata-se do Recurso Especial 1.693.718. Ele envolve um homem que morava no Rio de Janeiro com uma de suas filhas e faleceu lá. Após sua morte, o corpo foi levado a uma câmara frigorífica, de onde seria levado aos Estados Unidos para ser preservado com técnicas de criogenia, com vistas a uma possível reanimação no futuro, com o avanço da ciência.
Duas outras filhas, que moram no Rio Grande do Sul e são de um casamento anterior do falecido, tinham o desejo de que o pai fosse sepultado ao lado da mãe delas e eram céticas a respeito não só a respeito da técnica de criogenia em si, mas também duvidavam que essa era mesmo a vontade de seu pai. Instalou-se então o conflito.
O processo teve várias reviravoltas, com juízes ora se posicionando ao lado das filhas que o queriam sepultado, ora ao lado da filha que sustentava a submissão do falecido à criogenia. Mais que unificar a vontade das filhas, ficou claro que era necessário investigar qual a vontade do morto. Para resumir, os argumentos contrapostos eram os seguintes:
1) de um lado, o juiz de primeiro grau e os desembargadores do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro que julgaram os embargos infringentes (um dos vários recursos do caso) entenderam que:
– o sepultamento “de acordo com os padrões ordinários” é o que preservaria a dignidade[1] do falecido;
– a regra geral, de acordo com a Lei de Registros Públicos, é o sepultamento, e para algo diverso disso (como por exemplo a cremação) deveria haver manifestação de vontade expressa[2];
– o falecido sofreu um AVC alguns anos antes de sua morte, o que teria comprometido seu discernimento – tanto que havia uma ação de interdição em curso;
– se o falecido pretendesse realmente voltar à vida no futuro (pressuposto da opção pela criogenia) não teria organizado a partilha de seus bens;
– o quadro de doenças do falecido à época de sua morte indica que o sucesso de reanimação futura seria pouco provável, e mesmo o avanço da ciência deve ser lido sob o prisma da dignidade humana.
2) de outro lado, os desembargadores que julgaram o recurso de apelação e os ministros do STJ entenderam que:
– ao contrário do que teria feito o juiz de primeiro grau, concepções religiosas sobre o que é “normal” em termos de sepultamento não poderiam guiar o que fazer no caso concreto, considerando que estamos em um Estado laico;
– o fato de não existir testamento, que seria o canal mais adequado para exprimir a vontade de ser submetido à criogenia, não impede que essa vontade seja pesquisada por meio de outros elementos. Entre eles, estão: (a) mais de quinze declarações de “pessoas que guardavam os mais diversos vínculos com o de cujus [falecido] — médicos, empregados domésticos, fonoaudiólogos, fisioterapeutas, parentes e amigos” segundo as quais essa era a sua vontade; (b) a procuração que o pai outorgou à filha que morava com ele – o que demonstraria uma confiança irrestrita e, por isso, sua “aptidão para dizer acerca do melhor destino para os restos mortais do falecido”[3];
– não haveria provas no sentido de que o falecido gostaria de ser sepultado ao lado de sua primeira mulher (principalmente por ter se casado de novo no Rio), nem de que as filhas desse primeiro casamento mantivessem contato próximo com o pai de modo a legitimar qualquer intepretação que elas fizessem sobre a vontade de dele;
– o AVC teria comprometido a locomoção e a fala do falecido, mas não seu discernimento.
O argumento central da decisão do STJ é justamente a preservação da esfera de liberdades do indivíduo quando não há lei que proíba alguma vontade sua. O acórdão lembra do artigo 14 do Código Civil, que permite destinar o próprio cadáver para fins científicos (como a doação para uma faculdade de Medicina, por exemplo), para concluir que “as disposições acerca do próprio corpo estão incluídas nesse espaço de autonomia”[4].
De fato, como escreve o jurista português António Menezes Cordeiro, a liberdade e o direito subjetivo são importantes vetores da civilização ocidental, e é importante a preservação desses espaços onde as pessoas são convidadas a agir[5].
Outro ponto a ser notado é a possibilidade de atuação preventiva, de modo a evitar disputas como a que foi comentada aqui. Longe de organizar apenas questões patrimoniais, as pessoas também estão se importando cada vez mais em organizar em manifestações de vontade expressas, por exemplo, o destino dado a seus corpos e o procedimento a ser adotado em caso de descoberta de uma doença de difícil tratamento – o que vem sendo chamado de “testamento vital”.
*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).
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[1] Sentença, Autos n. 00567606-61.2012.8.19.0001, Vara de Registros Públicos da Comarca do Rio de Janeiro/RJ, julg. 28.02.2012.
[2] Acórdão que julgou os embargos infringentes n. 0057606-61.2012.8.19.0001, 7ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Relator Desembargador Ricardo Couto de Castro, julg. 20.08.2014.
[3] Acórdão que julgou o recurso de apelação n. 00567606-61.2012.8.19.0001, 20ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Relatora para o acórdão Desembargadora Flávia Romano de Rezende, julg. 25.06.2012.
[4] Acórdão que julgou o Recurso Especial 1693718, 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, Relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, julg. 26.03.2019.
[5] CORDEIRO, António Menezes. Teoria geral do direito civil. 2. ed. rev. atual. Lisboa: Associação Académica da Faculdade de Direito, 1994. v. 1. p. 217 e 468.