No Brasil, estamos a retomar debates sobre o alcance da reforma tributária. São propostas que vão de panaceias até mesmo a tentativas de reformular todo o sistema. Nenhuma, porém, vê-se apta a conferir soluções concretas e definitivas para resolver os reais problemas do modelo brasileiro: falta de segurança jurídica, grave conflitividade, complexidade crescente e burocracia excessiva e custosa. Vejamos um caso muito significativo para explicitar que reformas sérias podem trazer soluções com textos infraconstitucionais simples e bem marcados: a cobrança de impostos sobre doações.
 
Desde 1988, a Constituição Federal, em seu artigo 155, inciso I e parágrafo 1º, na discriminação da competência dos estados para instituir e cobrar o Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD), traz um grupo de regras que são reiteradamente descumpridas por muitos dos estados, in verbis:
 
“Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:
I – transmissão causa mortis e doação, de quaisquer bens ou direitos; (…)
§ 1º O imposto previsto no inciso I:
I – relativamente a bens imóveis e respectivos direitos, compete ao Estado da situação do bem, ou ao Distrito Federal;
II – relativamente a bens móveis, títulos e créditos, compete ao Estado onde se processar o inventário ou arrolamento, ou tiver domicílio o doador, ou ao Distrito Federal;
III – terá competência para sua instituição regulada por lei complementar:
a) se o doador tiver domicilio ou residência no exterior; (…)
IV – terá suas alíquotas máximas fixadas pelo Senado Federal”.
 
Observe-se que o texto constitucional modificou o regime precedente e retirou a competência impositiva dos estados federados para instituir o imposto sobre a transmissão de bens imóveis a título oneroso (a qual foi transferida aos municípios). Com isso, o inciso I, do artigo 155 da CF quedou-se restrito às doações a título gratuito, afora o campo material para tributar a transmissão “causa mortis”.
 
A tributação sobre a doação de bens ou direitos recebeu da Constituição critérios de conexão bem demarcados, em face dos quais os estados não tem qualquer competência para prover modificações, a saber:
 
doação de bens imóveis e respectivos direitos (critério de conexão territorial ou locus rei sitae): a competência será do estado da “situação do bem”, inclusive quanto à doação dos respectivos direitos (artigo 155, parágrafo 1º, I da CF).
doação de bens móveis, títulos e créditos (critério de conexão subjetivo): a competência vê-se atribuída ao estado de domicílio do doador dos bens móveis, títulos e créditos (artigo 155, parágrafo 1º, II).
Como se pode aferir do texto constitucional, a repartição de competências praticamente elimina qualquer potencial conflito de competência, na medida que se vê bem definida em seus requisitos, sem qualquer necessidade de apelar para lei complementar definir, no plano interno, quem possa ser o respectivo contribuinte e sobre quais possam ser considerados os fatos geradores do imposto.
 
O artigo 35 do Código Tributário Nacional, recepcionado como lei complementar pela CF/88, trata somente dos bens imóveis. Nesse contexto, alguns estados (a maioria) passaram a entender que a matéria seria típica de competência concorrente (artigo 24, I da CF) sobre matéria tributária[1]. Assim, passaram a editar suas respectivas leis estaduais, como se estas fossem supletivas da ausência de lei complementar, mormente para os casos de domicílios diferentes entre doadores e donatários, situados em estados distintos.
 
Nada mais equivocado.
 
A competência do artigo 155, parágrafo 1º, I e II da CF foi conferida de forma exaustiva e sem qualquer espaço para modificações por conta própria dos estados. Assim, são inconstitucionais todos os critérios de conexão adotados pelos estados e divergentes daqueles contidos nas regras do artigo 155, parágrafo 1º, I e II da CF. É o caso, por exemplo, da tentativa de tributar o “donatário” quando este se encontra em estado diverso do doador.
 
Nesse sentido, veja-se o caso da Lei 10.705/2000 (atualizada pela Lei 16.050/2015) do estado de São Paulo:
 
“Artigo 3º – Também sujeita-se ao imposto a transmissão de: (…)
§ 2º – O bem móvel, o título e o direito em geral, inclusive os que se encontrem em outro Estado ou no Distrito Federal, também ficam sujeitos ao imposto de que trata esta lei, no caso de o inventário ou arrolamento processar-se neste Estado ou nele tiver domicílio o doador”.
 
Não há autorização constitucional para que a competência dos estados seja exercida para além dos limites entabulados nos itens do artigo 155, parágrafo 1º, I e II da CF. Sendo assim, o donatário somente pode ser tributado na condição de responsável tributário, quando provado que o contribuinte não foi alcançado, logo, por responsabilidade supletiva. E não importa se ambos se encontram na mesma ou em unidades federativas diversas.
 
Na jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo é unânime a aplicação do dispositivo constitucional, em prejuízo do Fisco estadual, a saber:
 
“DIREITO PÚBLICO – TRIBUTÁRIO – AÇÃO ANULATÓRIA DE DÉBITO FISCAL – I.T.C.M.D. – SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA – APELAÇÃO DA RÉ – DESPROVIMENTO – Incidência sobre doação cujo doador era residente e domiciliado em outro Estado da Federação (Paraná) – Ausência de competência do Fisco do Estado de São Paulo para exigir o tributo incidente na espécie – Inteligência dos arts. 155, I, e § 1º, II, da Constituição Federal e art. 3º, § 2º, da Lei Estadual nº 10.705/2000 – Precedentes – Sentença de procedência mantida – Recurso desprovido”[2].
 
“APELAÇÃO – Ação anulatória de débito fiscal – Incidência de ITCMD sobre doação em dinheiro realizada por doador domiciliado em outro Estado – Cobrança realizada pela Fazenda Pública do Estado de São Paulo – Inadmissibilidade – Imposto devido ao Estado em que o doador é domiciliado – Inteligência dos artigos 3º, inciso II e §2º, da Lei 10.705/00 e 155, inciso I e §1º, da Constituição Federal – Precedentes – Sentença mantida – Recurso desprovido”[3].
 
Outro aspecto reclama atenção, que é a doação internacional. Neste caso, a Constituição não deixou dúvidas quanto a duas possibilidades:
 
doador domiciliado no Brasil: aplica os regimes do artigo 155, parágrafo 1º, I e II da CF, quando houver doação para o exterior;
doador com domicílio ou residência no exterior: competência para sua instituição regulada por lei complementar.
Neste último caso, enquanto não advier lei complementar nacional para regular a matéria, de modo inconteste, não poderá o legislador estadual pretender colmatar suposta lacuna, mediante exercício de competência local, na medida que não se trata de matéria reservada a competência concorrente (artigo 24, I da CF).
 
Ao mais, interessante destacar que o modelo de convenção de dupla tributação da OCDE em matéria de sucessões e doações atribuiu o direito de tributar, exclusivamente, ao estado do domicílio do doador. De fato, esse é um critério com foros de universalidade.
 
O artigo 155, parágrafo 1º, III, “a” da CF exige lei complementar como reclamo para que a competência estadual seja exercida, na condição de norma especial, não geral. Desse modo, o texto é sobremodo claro: “terá competência para sua instituição regulada por lei complementar: a) se o doador tiver domicilio ou residência no exterior”. Logo, enquanto não advier a lei complementar, deveras, os estados não terão competência para instituir o ITCMD quando o doador se encontra no exterior.
 
Não obstante, lei do estado de São Paulo previu a tributação da doação, mesmo que o doador tenha domicílio no exterior. In verbis:
 
“Artigo 4º – O imposto é devido nas hipóteses abaixo especificadas, sempre que o doador residir ou tiver domicílio no exterior, e, no caso de morte, se o “de cujus” possuía bens, era residente ou teve seu inventário processado fora do país:
I – sendo corpóreo o bem transmitido:
a) quando se encontrar no território do Estado;
b) quando se encontrar no exterior e o herdeiro, legatário ou donatário tiver domicilio neste Estado;
II – sendo incorpóreo o bem transmitido:
a) quando o ato de sua transferência ou liquidação ocorrer neste Estado;
b) quando o ato referido na alínea anterior ocorrer no exterior e o herdeiro, legatário ou donatário tiver domicílio neste Estado”.
 
Quanto à sua prática, diversas ações foram ajuizadas, a partir das quais o TJ-SP consolidou jurisprudência no sentido da impossibilidade da tributação, ao tempo que reconheceu a inconstitucionalidade do artigo 4º, inciso II, alínea “b” da lei estadual, como se extrai das ementas que seguem:
 
“AGRAVO DE INSTRUMENTO – MANDADO DE SEGURANÇA – ITCMD – DOAÇÕES FEITAS POR PESSOA RESIDENTE NO EXTERIOR – Pretensão de suspender a exigibilidade de ITCMD em doação feita por pessoa domiciliada no exterior – Cabimento – Verificada a plausibilidade do direito e o periculum in mora – Ausência de Lei Complementar disciplinando a competência para a sua instituição (artigo 155, §1º, III, 'a' da CF/88) – Inconstitucionalidade do artigo 4º, II, 'b' da Lei Estadual nº 10.705/00 reconhecida pelo Colendo Órgão Especial – Indevida a incidência do imposto– Decisão reformada – Recurso provido”[4].
 
“Incidente de Arguição de Inconstitucionalidade Cível I – Arguição de inconstitucionalidade. A instituição de imposto sobre transmissão 'causa mortis' e doação de bens localizados no exterior deve ser feita por meio de Lei Complementar. Inteligência do art. 155, §1°, inciso III, Aline b, da Constituição Federal. II – O Legislador Constituinte atribuiu ao Congresso Nacional um maior debate político sobre os critérios de fixação de normas gerais de competência tributária para instituição do imposto sobre transmissão de bens – móveis/imóveis, corpóreos/incorpóreos – localizados no exterior, justamente com o intuito de evitar conflitos de competência, geradores de bitributação, entre os Estados da Federação , mantendo uniforme o sistema de tributos. III – Inconstitucionalidade da alínea 'b' do inciso II do art. 4o da Lei paulista n° 10.705, de/%8 de dezembro de 2000, reconhecida. Incide/te de inconstitucionalidade procedente”[5].
 
No que tange à doação realizada por domiciliado no exterior, em muitos outros estados persistem até hoje estas controvérsias, que vêm sendo levadas ao Judiciário, o que se encontra na espera, inclusive, de decisão do Supremo Tribunal Federal, por repercussão geral pelo STF, em recurso extraordinário assim ementado:
 
“EMENTA RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL. ITCMD. BENS LOCALIZADOS NO EXTERIOR. ARTIGO 155, § 1º, III, LETRAS A E B, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. LEI COMPLEMENTAR. NORMAS GERAIS. COMPETÊNCIA PARA INSTITUIÇÃO. É de se definir, nas hipóteses previstas no art. 155, § 1º, III, letras a e b, da Constituição, se, ante a omissão do legislador nacional em estabelecer as normas gerais pertinentes à competência para instituir imposto sobre transmissão causa mortis ou doação de quaisquer bens ou direitos (ITCMD), os Estados-membros podem fazer uso de sua competência legislativa plena com fulcro no art. 24, § 3º, da Constituição e no art. 34, § 3º, do ADCT”[6].
 
Em conclusão, no caso de bens móveis, títulos ou créditos, uma doação será tributada pelo estado sempre que o doador nele residir, independentemente do local em que ocorra a entrega do objeto do ato de doação, onde seja aperfeiçoado o contrato ou onde resida o donatário. Ou seja, o donatário poderá residir no mesmo estado do doador, em outro estado ou até mesmo no exterior. Em qualquer uma destas situações, o imposto deverá ser recolhido ao estado de domicílio do doador.
 
Logicamente, a Constituição não atribuiu exigência expressa de lei complementar para o regime dos bens imóveis. E o fez muito bem, porquanto, neste caso, o critério de conexão será aquele do lugar de territorialidade do imóvel. Logo, não há como haver conflito de competência, pela fixação da competência segundo o critério locus rei sitae.
 
O argumento daqueles que sustentam a constitucionalidade dos dispositivos das leis estaduais que determinam a tributação do donatário, quando o doador for domiciliado no exterior, não se sustenta à luz do texto constitucional. E isso porque a competência do artigo 155, parágrafo 1º, II e III da CF é exaustiva. Não há qualquer cabimento de competência concorrente, nos termos do artigo 24, parágrafo 3º, da CF, bem como do artigo 34, parágrafo 3º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias[7]. O Constituinte exigiu lei complementar apenas para os casos previstos pelo inciso III do parágrafo 1º do artigo 155 da CF.
 
A CF/88 foi clara ao estabelecer a competência do estado de domicílio do doador para a cobrança do imposto. E, ao fazê-lo, definiu o fato gerador como sendo o ato de transmitir, de doar o bem, de modo que não se pode admitir o donatário como contribuinte do Imposto sobre Doações. De se ver, são inconstitucionais todas as leis que atribuem ao donatário o dever de pagar o ITCMD.
 
Numa síntese, no caso de doador domiciliado no exterior não há critério de conexão suficiente para autorizar a tributação, e isso porque ausente qualquer competência do estado para tributar a doação oriunda de domiciliado no exterior[8].
 
Este, portanto, é um bom exemplo de medida infraconstitucional (edição de lei complementar) suficiente para eliminar conflitos de competência entre estados, reduzir a conflitividade com os contribuintes, pela segurança e certeza do direito aplicável, e, consequentemente, melhor e maior arrecadação para os estados na prática do ITCMD. Logo, a “reforma tributária” consiste em cumprir a Constituição. Um grande avanço.
 
[1] “Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:
I – direito tributário, financeiro, penitenciário, econômico e urbanístico”.
[2] TJSP; Apelação Cível 1008261-78.2014.8.26.0152; Relator (a): Antonio Tadeu Ottoni; Órgão Julgador: 13ª Câmara de Direito Público; Foro de Cotia – 2ª Vara Cível; Data do Julgamento: 13/02/2019; Data de Registro: 14/02/2019.
[3] TJSP; Apelação Cível 1024761-26.2017.8.26.0053; Relator (a): Renato Delbianco; Órgão Julgador: 2ª Câmara de Direito Público; Foro Central – Fazenda Pública/Acidentes – 8ª Vara de Fazenda Pública; Data do Julgamento: 15/05/2018; Data de Registro: 15/05/2018.
[4] TJSP; Agravo de Instrumento 2245853-87.2018.8.26.0000; Relator (a): Maurício Fiorito; Órgão Julgador: 3ª Câmara de Direito Público; Foro Central – Fazenda Pública/Acidentes – 1ª Vara de Fazenda Pública; Data do Julgamento: 09/04/2019; Data de Registro: 10/04/2019.
[5] TJSP; Incidente De Arguição de Inconstitucionalidade Cível 0004604-24.2011.8.26.0000; Relator (a): Guerrieri Rezende; Órgão Julgador: Órgão Especial; Foro Central – Fazenda Pública/Acidentes – 8ª Vara de Fazenda Pública; Data do Julgamento: 30/03/2011; Data de Registro: 07/04/2011.
[6] RE 851108 RG, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, julgado em 25/06/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-163 DIVULG 19-08-2015 PUBLIC 20-08-2015.
[7] “Art. 34. O sistema tributário nacional entrará em vigor a partir do primeiro dia do quinto mês seguinte ao da promulgação da Constituição, mantido, até então, o da Constituição de 1967, com a redação dada pela Emenda nº 1, de 1969, e pelas posteriores. (…)
§ 3º Promulgada a Constituição, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão editar as leis necessárias à aplicação do sistema tributário nacional nela previsto.”
[8] MARTINS, Ives Gandra da Silva. Necessidade de lei complementar para a conformação do imposto de transmissão causa mortis e por doação de bens e recursos recebidos do exterior. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva; BRITO, Edvaldo (orgs.). Direito Tributário: impostos estaduais. vol. IV. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 105.