(O registro de imóveis e os títulos materiais inscritíveis: a hipoteca – parte 13)
 
786. Embora tal já se referiu no item 722, retro o art. 221 da Lei brasileira n. 6.015/1973 use o advérbio somente ao alistar, de maneira expressa, os títulos que, em acepção formal, são admitidos a registro, não se pode compreender sob modo taxativo o rol indicado neste dispositivo legal, já por força de a mesma Lei n. 6.015 referir-se explicitamente a outros títulos idôneos à inscrição imobiliária assim, as cédulas de crédito rural e industrial (ns. 13 e 14 do inc. I de seu art. 167), já porque, sendo a Lei de Registros Públicos normativa da espécie ordinária (inc. III do art. 59 da Constituição federal de 1988), pode ela ser influída mediante posteriores lei de mesmo porte ou norma constitucional (arg. § 1º do art. 2º do Dec.-lei n. 4.657, de 4-9-1942).
 
Não se trata de repugnar a doutrina prudente de que se compreendam e interpretem de modo estrito “as frases que estabelecem formalidades em geral” (Carlos Maximiliano, com apoio em Sutherland), nem de aferrar-se à “particolare venerazione della lettera” (Giovanni Tarello), mas, isto sim, de proceder a uma concordância lógica entre, de um lado, o caráter geral restritivo da norma do art. 221 da Lei n. 6.015/1973, repulsando expansões analógicas, e, de outro lado, a possibilidade de a lei (i.e., a mesma Lei n. 6.015 ou leis ordinárias dela extravagantes, ou ainda norma constitucional) alargar o elenco de títulos formais acessíveis ao registro.
 
O que parece, no entanto, inadmissível é a previsão de outros títulos inscritíveis no registro imobiliário no bojo de normativas apartadas da repartição competencial e das formas previstas no Código político (p.ex., a admissão de títulos registráveis por meio de decretos, resoluções, portarias e até mesmo de resoluções e provimentos de órgãos judiciários).
 
Todavia, não se vê empecilho em que uma lei ordinária posterior à Lei n. 6.015 e tal o é, v.g., o Código brasileiro de processo civil institua um novo título, seja em sentido formal, seja em material, suscetível de aceder ao registro imobiliário.
 
Assim é que, à lista do art. 221 da Lei n. 6.015/1973, de que “somente são admitidos a registro” as (i) escrituras públicas, (ii) determinados escritos particulares, (iii) atos autênticos de países estrangeiros, com força de instrumento público, (iv) alguns títulos judiciais (cartas de sentença, formais de partilha, certidões e mandados extraídos de autos de processo) e (v) contratos e termos administrativos, nosso vigente Código processual civil acrescentou a cópia da sentença fundacional da hipoteca judiciária (cf. § 2º do art. 495: “A hipoteca judiciária poderá ser realizada mediante apresentação de cópia da sentença perante o cartório de registro imobiliário, independentemente de ordem judicial, de declaração expressa do juiz ou de demonstração de urgência”).
 
Alguns temas parecem de logo clamar a atenção nesta regra: (i) o da forma do título, empolgando os modos possíveis de sua exibição; (ii) o da indiferença de pronunciamento judicial ordinatório ou declarativo expresso acerca da hipoteca; (iii) o da rogação pelo credor; (iv) o da observância ou não da regra do art. 225 da Lei de Registros Públicos. A estes pontos concorre ainda o previsto no § 3º do art. 495 do Código: “No prazo de até 15 (quinze) dias da data de realização da hipoteca, a parte informá-la-á ao juízo da causa, que determinará a intimação da outra parte para que tome ciência do ato”.
 
787. Prevê, pois, o Código de processo civil a possibilidade de inscrever-se a hipoteca judiciária “mediante apresentação de cópia da sentença perante o cartório de registro imobiliário” (§ 2º do art. 495). A lei processual, com efeito, refere-se a que “a hipoteca judiciária poderá ser realizada” (não se emprega, portanto, o verbo dever).
 
Tratando-se de uma faculdade do apresentante, contra cujo exercício não pode o oficial do registro opor exigência de apresentação de mandado, carta de sentença ou certidão, tanto quanto não pode o registrador inibir que o interessado solicite a inscrição mediante mandado, certidão ou carta de sentença. Diversamente, no entanto, o sempre muito autorizado Narciso Orlandi Neto sustenta que “não pode ser outro o título”.
 
Este mesmo autor designa essa cópia de sentença com a expressão carta de sentença “particular”, dela dizendo que há de formar-se pelo próprio interessado, “com as peças suficientes para satisfazer as exigências do art. 176 da Lei de Registros Públicos”, acrescentando que a cópia da sentença deve ser autenticada pelo “escrivão, diretor ou chefe de secretaria do cartório judicial”, para atender-se ao que dispõem os arts. 216 do Código civil brasileiro e o inciso I do art. 425 de nosso Código de processo civil.
 
Parece de todo discreta esta cautela sugerida por Narciso Orlandi, à luz do art. 216 do vigente Código civil (“Farão a mesma prova que os originais as certidões textuais de qualquer peça judicial, do protocolo das audiências, ou de outro qualquer livro a cargo do escrivão, sendo extraídas por ele, ou sob a sua vigilância, e por ele subscritas, assim como os traslados de autos, quando por outro escrivão consertados”), cujo se reiterou, quase à letra, pelo Código processual civil de 2015: “Fazem a mesma prova que os originais: I – as certidões textuais de qualquer peça dos autos, do protocolo das audiências ou de outro livro a cargo do escrivão ou do chefe de secretaria, se extraídas por ele ou sob sua vigilância e por ele subscritas” (art. 425).
 
Todavia, além de essa cautela não se exigir expressamente na regra do § 2º do art. 495 do Código de processo civil, admite Narciso Orlandi, invocando o inciso IV do art. 425 desse Código, que também se satisfaça a precaução com o fato de o advogado declarar a autenticidade das cópias. É controversa, porém, a incidência dessa regra no processo de registro da hipoteca, em que pese ao disposto no art. 15 do Código, porque a previsão em pauta supõe, prima facie, uma ocasião prévia de contraditório específico direito do devedor, inexistente na via registral (lê-se, com efeito, no aludido inc. IV do art. 425: “as cópias reprográficas de peças do próprio processo judicial declaradas autênticas pelo advogado, sob sua responsabilidade pessoal, se não lhes for impugnada a autenticidade”).
 
Mais ainda, Narciso Orlandi Neto aduz que, se eletrônico for o processo, “o interessado poderá materializar as peças que apresentará ao Registro de Imóveis e o oficial registrador conferirá a autenticidade com consulta ao processo eletrônico”. O autor põe a salvo o caso do processo que, eletrônico embora, tramite sob segredo de justiça, situação em que “a autenticação das peças deverá ser feita na origem”.
 
788. É de todo indiferente, para admitir-se a hipoteca judiciária, haja na sentença judicial pronunciamento que lhe declare ou ordene o cabimento. Tampouco se impõe indicação de urgência da medida (§ 2º do art. 495 do Cód.pr.civ.).
 
Nada obstante, a necessidade de especialização da hipoteca judiciária acarreta a exigência de pronunciamento judicial sobre a especificação da garantia, ainda que o seja apenas quanto ao imóvel onerado (suposto se aceite o valor da causa para a especialização do quantum garantido).
 
Assim o vem decidindo alguma jurisprudência pretoriana, com entender-se que a despeito de constituir a hipoteca judiciária um efeito secundário da sentença, com indiferença de seu trânsito em julgado, é, contudo, “imprescindível sua especialização, como forma de individualização do bem a respaldar a obrigação” (REsp 1.120.024 -STJ, Rel. Min. Marco Buzzi), dando-se, então, oportunidade processual a que o devedor se manifeste. No mesmo sentido, lê-se em outro julgado que há “necessidade de procedimento próprio de jurisdição voluntária para registro da hipoteca judiciária, eis que é necessária a prévia avaliação dos bens indicados pela embargante, com a realização de prova técnica” (AgR no AREsp 595.548 – Min. Marco Aurélio Bellizze).
 
Nestas circunstâncias, ainda que não se reclame haja, na sentença condenatória, proferimento ordinatório ou declarativo da hipoteca judicial, caberá uma decisão judicial acerca do imóvel ou imóveis objeto da garantia, bem como sobre o valor da dívida referencial, salvo o caso de adotar-se, a seu propósito, o valor atribuído à causa).
 
789. Tem inteiro acerto Narciso Orlandi Neto ao ensinar que “ao juiz não compete mandar inscrever, de ofício ou a requerimento, a hipoteca judiciária”.
 
A rogação é direta, perante o registro de imóveis, e deve proceder do credor ou de seu advogado constituído nos autos em que prolatada a sentença da qual deriva a hipoteca.
 
A instância registral há de ser direta, ao revés do que, no processo eletrônico, tem sido frequente, com a remessa dos títulos inscritíveis por iniciativa e diligência do cartório judicial. O problema que se põe, quanto à hipoteca judiciária, está em que o solicitante não pode ser qualquer pessoa, mas apenas o credor (ainda que o seja por meio de mandatário, munido de instrumento de mandato) ou o advogado que o patrocine nos autos em que proferida a sentença da qual emana a garantia hipotecária.
 
É que nosso Código de processo civil prevê a responsabilização objetiva do credor se houver cassação ou reforma da sentença, de modo a que esse credor responda, “independentemente de culpa, pelos danos que a outra parte tiver sofrido em razão da constituição da garantia, devendo o valor da indenização ser liquidado e executado nos próprios autos” (§ 5º do art. 495).
 
Diante dessa estatuição sancionatória, não pode qualquer pessoa solicitar o registro da hipoteca judicial, mas somente aquela o credor (por si próprio ou por meio de quem o represente de maneira legítima) que responde pelos riscos da inscrição.
 
Atribui-se ao registrador, neste quadro, a aferição da legitimidade rogatória.
 
Prosseguiremos.