No dia 30 de abril de 2019 o presidente da República, Jair Bolsonaro, editou a Medida Provisória nº 881/2019 que institui a “Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, estabelece garantias de livre mercado, análise de impacto regulatório, e dá outras providências”.

Acerca de sua aplicação e interpretação, o disposto nesta Medida Provisória é direcionado ao direito civil, empresarial, econômico, urbanístico e do trabalho, nas relações jurídicas que se encontrem em seu âmbito de aplicação e na ordenação pública sobre o exercício das profissões, juntas comerciais, produção e consumo e proteção ao meio ambiente.

Da leitura, ainda que perfunctória, de seu inteiro teor, fica evidente que a principal finalidade da Medida Provisória reside na facilitação das práticas de livre mercado e na redução da burocracia para o estabelecimento de negócios, ampliando o fomento econômico, no Brasil.

Nessa toada, a norma visa estabelecer diretrizes de proteção e incentivo à livre iniciativa e ao livre exercício de atividade econômica, enfatizando o papel do Estado como agente normativo e regulador, devendo intervir o mínimo possível nas relações privadas.

Feita essa rápida abordagem geral, importa esclarecer que o presente artigo se restringe à análise de um dos pontos da Medida Provisória em tela: a proposta de alteração do art. 421 do Código Civil e sua repercussão no campo do direito das famílias.

Dentre as modificações pretendidas pela MP nº 881/2019, assoma a alteração procedida no caput do art. 421 do Código Civil, principal base legal do princípio da função social do contrato na legislação atual. Nesse sentido, pretende-se incluir novas expressões na parte final de seu teor, que tem o condão de alterar substancialmente sua compreensão e valoração jurídica.

A Medida Provisória nº 881/2019 apresenta a seguinte redação para o art. 421: “a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato, observado o disposto na Declaração de Direitos de Liberdade Econômica”.

Sobre a função social do contrato, é importante resgatar as lições de Miguel Reale, ao estabelecer uma base tríplice ao anteprojeto do Código Civil vigente, fundado na “eticidade, socialidade e operabilidade”. É justamente a partir da compreensão da base norteadora da legislação civil que se identifica o grande prestígio da função social do contrato, como um dos reflexos do fenômeno de constitucionalização dos institutos de direito privado.

A função social encontra-se inserida dentro dos Direitos Humanos de Segunda Geração (“os direitos sociais”) e jamais representou uma eliminação da liberdade dos agentes privados… Isso deve quedar muito claro! Em verdade, sob o prisma subjetivo, a função social cria o dever do sujeito condicionar a sua autonomia privada a certos preceitos da ordem social e, de outro lado, sob o prisma institucional, cria o poder do Estado de intervir nas relações privadas com o fito de preservar a ordem social e os interesses da coletividade.

Destarte, esse binômio ditado pelo paradigma da socialidade densifica o exercício da autonomia , tornando-o mais complexo e responsável, na medida em que orientado pela busca de um trato contratual justo e solidário.

Percebe-se, pois, que a partir da base estabelecida pela função social, o caráter interventivo do Estado nas relações econômicas privadas não se dá de maneira ampla e invasiva, sendo somente admissível no âmbito do caso concreto, alicerçado no princípio da função social.

Nesse contexto, a Medida Provisória nº 881/2019 representa indícios de retrocesso ao criar um condicionamento à função social do contrato, na medida em que se passa a exigir a observância do disposto na Declaração de Liberdade Econômica.

Outro ponto fundamental a ser doravante escrutinado pela doutrina refere-se ao parágrafo único acrescentado ao art. 421, que passa a dispor o seguinte: “nas relações contratuais privadas, prevalecerá o princípio da intervenção mínima do Estado, por qualquer dos seus poderes, e a revisão contratual determinada de forma externa às partes será excepcional”.

Impende ressaltar que, na forma dos princípios norteadores da Medida Provisória (art. 2º), identifica-se o amparo a intervenção subsidiária, mínima e excepcional do Estado sobre o exercício de atividades econômicas.

Anderson Schreiber ressalta que “a intervenção do Estado nas relações contratuais de natureza privada é imprescindível, quer para assegurar a força vinculante dos contratos, quer para garantir a incidência das normas jurídicas, inclusive das normas constitucionais, de hierarquia superior à referida Medida Provisória. A MP 881/2019 parece ter se deixado levar aqui por uma certa ideologia que enxerga o Estado como inimigo da liberdade de contratar, quando, na verdade, a presença do Estado – e, por conseguinte, o próprio Direito – afigura-se necessária para assegurar o exercício da referida liberdade[1]”.

Assim sendo, o viés puramente liberal da proposta supramencionada nos remonta à celebre frase de Anatole François, escritor francês, agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura, em 1921, que em sua Crainquebille, no contexto de uma justiça meramente retributiva, asseverava que “o dever do justo é garantir a cada um o que lhe cabe, ao rico a sua riqueza e ao pobre a sua pobreza”[2].

A nova proposta de redação ao art. 421 aponta para a ressureição do prestígio da autonomia da vontade em detrimento de outros valores constitucionais tutelados pela nossa legislação, incluindo a própria função social. Tal afirmativa se sustenta em um breve comparativo com o Código Civil de 1916, arquitetado pelo saudoso e ilustre Clóvis Bevilacqua, oportunidade histórica de claro prestígio do individualismo em detrimento de outros valores jurídicos.

Flávio Tartuce observa que “com o devido respeito, o texto da Medida Provisória parece ter ressuscitado antigos fantasmas de temor a respeito da função social do contrato, no momento em que o princípio encontrou certa estabilidade de aplicação, seja pela doutrina ou pela jurisprudência. […] A MP também parece voltar ao espírito individualista, que inspirou o Código Civil de 1916, tido por muitos civilistas como superado e que foi substituído por um modelo mais intervencionista, do Código Civil de 2002. E, na realidade contratual brasileira, não se pode negar a sua vital importância, ao lado da boa-fé objetiva para mitigar – e não eliminar – a autonomia privada e a força obrigatória, mormente em casos de desequilíbrios e abusividades praticados por um dos contratantes perante o outro[3]”.

Em síntese, a proposta parece caminhar em rota de colisão com as premissas fundamentais, amparadas pelo ordenamento jurídico contemporâneo, que resultaram num amadurecimento da perspectiva sobre as relações negociais, não mais encaradas como um feudo da autonomia absoluta da vontade, cujo reinado tantas distorções e opressões gerou.

Releva perceber, também, que, embora a concentração dos reflexos de tal alteração se verifique, mais acentuadamente, nas relações empresariais e de consumo, não se pode olvidar que sua afetação alcança todo o direito privado, incluindo o direito das famílias. Neste mister, é imperativo avaliar possíveis consequências das referidas alterações em sede de relações familiares, mormente no que tange aos seus aspectos patrimoniais, precisamente quando existentes “elementos patrimoniais” nas situações em análise.

A reflexão se mostra plausível e soa verdadeiramente necessária, na medida em que, no âmbito do Direito das Famílias, é fundamental compreender a existência de relações de caráter patrimonial e de caráter existencial, sendo que estas últimas demandam tratamento diferenciado, por força da axiologia consagrada na Constituição Federal.

Na esfera existencial, urge enfatizar a importância da consolidação da intervenção mínima do Estado nas relações familiares. Tal doutrina vem se apresentando muito sólida desde a entrada em vigor do Código Civil de 2002, ao vislumbrar-se com clareza, em seu artigo 1.513, que “é defeso a qualquer pessoa, de direito público ou privado, interferir na comunhão de vida instituída pela família”.

Assim, para garantir a eficácia dos princípios constitucionais no lócus das relações familiares, a liberdade (e por consequência, a intervenção mínima do Estado) devem restar consagradas e eficazes.

Na linha desse entendimento, leciona Rodrigo da Cunha Pereira[4] que “ o Estado vem abandonando sua figura de protetor-repressor, para assumir postura de Estado protetor-provedor-assistencialista, cuja tônica não é de uma total ingerência, mas, em algumas vezes, até mesmo de substituição a eventual lacuna deixada pela própria família, como, por exemplo, no que concerne à educação e saúde dos filhos (artigo 227, caput, da CF). A intervenção do Estado deve, apenas e tão somente, ter o condão de tutelar a família e dar-lhe garantias, inclusive de ampla manifestação de vontade e de que seus membros vivam em condições propícias à manutenção do núcleo afetivo”.

Nesse mister, resta claro que essa autonomia deve constar firme no campo existencial das relações de família, assegurando a devida liberdade para a formação das entidades familiares e para suas vivências, e proporcionando-lhes a devida isonomia no campo da proteção jurídica.

E é justamente no plano da proteção jurídica que se impõe refletir sobre o outro campo de afetação das relações de família: o dos direitos patrimoniais. Afinal, é precisamente na busca do garantimento da devida proteção para tais direitos, sem desconsiderar as peculiaridades que estes exibem, quando inseridos em relações familiares, que se mostra temerário afastar completamente do arbítrio do Estado a liberdade e autonomia acerca dos aspectos econômicos e patrimoniais que integram as entidades familiares.

Na esfera das relações de caráter patrimonial, é indubitável que os conceitos jurídicos familiaristas perpassam por uma ótica negocial. Assim, ao se vislumbrar que “nas relações contratuais privadas, prevalecerá o princípio da intervenção mínima do Estado” surgem indagações pertinentes ao Direito das Famílias, conforme se verifica nos exemplos a seguir expostos.

Na atualidade, muito se fala sobre a validade, a eficácia e os eventuais limites do contrato de namoro, sobretudo quando cotejados com situação em que haja provas de que a relação declarada pelas partes como de namoro apresenta contornos fáticos de uma união estável, preenchendo os requisitos do art. 1.723 do Códex. A incidirem as diretrizes da Medida Provisória nº 881/19, torna-se possível antever uma apriorística predominância da força da declaração engendrada pelas partes, o que pode não se apresentar como a solução mais fidedigna ao caso concreto, e terminaria por resvalar na perda dos direitos aos alimentos, à meação e aos direitos sucessórios, dentre outros.

Já no âmbito do regramento do pacto antenupcial (e do contrato de convivência) a proposta parece apontar para uma abertura autorizadora de novas discussões que podem, se não forem muito bem dimensionadas, transbordar os limites de direitos tidos como indisponíveis pela doutrina familiarista, ou mesmo violar a dignidade dos contraentes.

Por isso, é crucial perceber que embora a ampliação da liberdade no âmbito da celebração desses negócios jurídicos possa representar um ganho para a autonomia de cônjuges e companheiros, ela não pode sobrepor-se a seus direitos e garantias fundamentais, nem suporta a dispensa da incidência de normas cogentes, cuja aplicação não está sujeita ao arbítrio das partes.

Igualmente, a Medida Provisória nº. 881/19 fomenta a ampliação dos debates sobre os limites, a responsabilidade e as barreiras patrimoniais do empresário casado.

Observe-se, ainda, que em uma análise mais adstrita aos termos introduzidos pela MP, tornar-se-ia também possível debater a possibilidade de se estabelecer, por meio contratual, indenizações fundadas no vetusto pretium carnis,reconhecidas, em passado não muito distante, no âmbito das reparações civis fundadas no rompimento das relações simultâneas ou paralelas- consideradas, nos termos do art. 1.727, relações concubinárias.

No âmbito testamentário, as incertezas também se adensam; afinal, qual o limite da autonomia de vontade do testador acerca do seu patrimônio? Essa questão reveste-se de relevância ainda maior, na contemporaneidade, quando discutida no domínio empresarial, por meio do planejamento sucessório arquitetado, dentre outros instrumentos, na forma de uma holding familiar e os limites patrimoniais manejáveis para tal fim.

Diante de tudo quanto exposto, conclui-se que a “intervenção subsidiária, mínima e excepcional do Estado”, ditada pela nova MP, deverá ser aplicada na seara sucessionista e, sobretudo, na familiarista com especial atenção e cautela , vez que a gama de direitos indisponíveis que compõe o direito das famílias é sensível, além das peculiaridades que grassam as relações de família e que são refletidas no arcabouço axiológico que sustenta sua tutela normativa.

Nesse sentido, por exemplo, as questões referentes à guarda de filhos e à pensão alimentícia, em função das suas idiossincráticas características e dos quadrantes que exibem no ordenamento jurídico brasileiro, não autorizam que a revisão dos acordos acerca desses direitos seja excepcional, como direciona a nova norma para os negócios em geral. Ao revés, é da essência deles que possam ser revisados a qualquer tempo, se não mais refletem as reais necessidades das partes ou se mudanças na situação fática dos atores envolvidos demandam essa revisão.

Portanto, nesse ambiente de consagração do princípio da “intervenção mínima do Estado”, torna-se necessário realizar um acompanhamento bem próximo das mudanças práticas e teóricas que estão por vir, para que elas sejam absorvidas de forma positiva e equilibrada pelo direito das famílias e sucessões, sem descuidar dos vetores de que se revestem esses ramos da civilística pátria.

[1] SCHREIBER, Anderson. Alterações da MP 881 ao Código Civil – Parte I. in Jusbrasil. Disponível em: https://flaviotartuce.jusbrasil.com.br/artigos/703475518/alteracoes-da-mp-881-ao-codigo-civil-parte-i?ref=feed. Acesso em 07.mai.2019

[2] FRANÇOIS, Anatole apud RIZZARDO, Arnaldo. Contratos.17ª. ed. São Paulo: Editora Forense 2018, p.21

[3] TARTUCE, Flávio. A Medida Provisória 881/2019 e as Alterações do Código Civil. Primeira Parte. Desconsideração da personalidade jurídica e função social do contrato. in Jusbrasil. Disponível em: https://flaviotartuce.jusbrasil.com.br/artigos/703994479/a-medida-provisoria-881-2019-e-as-alteracoes-do-codigo-civil-primeira-parte-desconsideracao-da-personalidade-juridica-e-funcao-social-do-contrato. Acesso em 07.mai.2019

[4] PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios Fundamentais Norteadores do Direito de Família. 1. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 157.

*Fernanda Carvalho Leão Barretto – Advogada, Mestra em Familia na Sociedade Contemporânea pela UCSAL, Professora de Direito Civil da Universidade Salvador(UNIFACS) e Membro da Diretoria do IBDFAM.

**Frederico Martos – Advogado, Doutor em Direito, professor de Direito Civil da UEMG e da FDF.