(O registro de imóveis e os títulos materiais inscritíveis: a hipoteca – parte 21)
 
814. Consideremos agora, e muito brevemente, mais alguns outros temas relativos à hipoteca, assim os da
 
(i) hipoteca administrativa,
(ii) hipoteca testamentária,
(iii) hipoteca tácita,
(iv) hipoteca por terceiro,
(v) hipoteca de segurança,
(vi) hipoteca de tráfico,
(vii) hipoteca cedular,
(viii) hipoteca de proprietário,
(ix) hipoteca reversa,
(x) hipoteca de obrigação sujeita a condição resolutiva,
(xi) pluralidade hipotecária,
(xii) processo de especialização da hipoteca,
(xii) remição da hipoteca e
(xiii) perempção da hipoteca.
 
815. Da hipoteca administrativa: por três modos pode entender-se esta expressão “hipoteca administrativa”.
 
O primeiro, relativo a uma hipoteca voluntária ajustada por um particular e a administração pública, tendo por objeto um imóvel privado, no âmbito de atuações não judiciais da mesma administração pública.
 
O segundo, suposta sua admissão no ordenamento positivo (assim se dá, p.ex., em Portugal, relativamente às execuções de dívidas tributárias), consiste na constituição, já agora no curso de um processo executório judicial, de hipoteca prestada pelo executado, seja com o fim específico de garantia da instância para a viabilidade de oporem-se meios defensivos (os nossos embargos de devedor), seja para a satisfação do valor exequendo. Essa hipoteca se designa administrativa, nada obstante sua constituição no espectro de um processo judicial, porque cabe ao órgão administrativo avaliar a eficácia da garantia e, pois, aferir se aceitá-la é conveniente à administração pública.
 
O terceiro modo com que se pode entender o termo hipoteca administrativa diz respeito a uma garantia prestada ou ao menos admitida pela administração pública e que recai sobre bens públicos. Definiu-a, entre nós, Affonso Fraga, a hipoteca “que recai sobre bens de domínio privado ou público da União, Estados e Municípios”, averbando que, para sua validade, o objeto dessa hipoteca administrativa não pode estar em ato afetado ao uso público.
 
Se, quanto aos dois primeiros modos, nos quais as hipotecas têm por objeto material imóveis de propriedade privada, não se avista mais que uma variação nominal de garantias comumente previstas e utilizadas –e que, a propósito, podem tanto ser voluntárias, quanto legais–, já a terceira das acepções do termo hipoteca administrativa envolve efetivamente um problema real, pois o objeto dessa última categoria hipotecária é um bem público.
 
Aqui ingressamos no campo dos direitos reais administrativos, segmento de um mais amplo ramo, o do direito administrativo de bens, este último abarcando também o direito das entidades públicas cujo objeto sejam seus poderes jurídicos (i) acerca de pessoas e (ii) sobre bens, desde que com caráter obrigacional (cf., brevitatis causa, Ana Raquel Gonçalves Moniz, “Direito do domínio público”).
 
Por sua vez, os direitos reais administrativos compreendem (i) os bens próprios da administração, a saber: os de uso comum do povo, os de uso especial e os bens dominicais (cf. o art. 99 do Cód.civ.bras.); e (ii) o regime jurídico que lhes corresponde quanto à formação (publicatio, dicatio), à classificação, à utilização –quer pela entidade administrativa, quer por particulares– e à extinção (vidē Paulo Otero, in Direito administrativo -Relatório).
 
Devemos reconhecer a tendencialidade de os bens públicos se subtraírem do comércio privado (ou seja, a circunstância prevalecente de estarem esses bens públicos fora do comércio, o que se diz ser sua predominante incomerciabilidade –cf. Bernardo Azevedo, “O domínio privado da administração”). Isto, porém, não importa em que, secundum naturam, os bens públicos não possam ser objeto de disponibilidade. Reduplicativamente, os bens públicos são, com efeito, insuscetíveis de alienação, de usucapião, de penhora, de oneração pelos modos jurídico-privados: ou seja, são insuscetíveis de tudo isto enquanto bens públicos. Mas essa tendência não implica, por natureza, a inviabilidade de esses bens suportarem a transferência dominial e até mesmo “a criação de direitos reais administrativos ou de natureza obrigacional em benefício de particulares (concessões)” (Bernardo Azevedo). Diz acertadamente o vigente Código civil brasileiro: “Os bens públicos de uso comum do povo e os de uso especial são inalienáveis, enquanto conservarem a sua qualificação, na forma que a lei determinar” (art. 100; equivale a afirmar: enquanto não forem legalmente desafetados, de sorte que a clave da incomercialidade desses bens está na afetação, assim já o dissera a doutrina clássica de Maurice Hauriou).
 
Daí que, podendo ser transferidos (veja-se, ad exemplum, o que o Código civil brasileiro de 2002 prevê em seu art. 101: “Os bens dominicais podem ser alienados, observadas as exigências da lei”), seriam, em dadas hipóteses, ao menos por sua natureza, suscetíveis de hipoteca os bens não afetados (i.e., os bens dominicais, ou seja, bens do domínio privado da administração) e os desafetados (ou desconsagrados). Todavia, a doutrina brasileira apoia-se –como já o vimos (cf. n. 777 retro)– sobretudo no atributo da alienabilidade condicionada desses bens (é dizer, alienação condicionada ao processo licitatório) para concluir inviável a constituição, entre nós, da hipoteca sobre bens dominicais e desafetados.
 
816. Denomina-se hipoteca testamentária a que se admita, in legē, possa instituir-se por meio de testamento ou de codicilo (cf. arts. 1.881 et sqq. do Cód.civ.bras.).
 
Embora não seja, em princípio, inviável considerar a possibilidade, no ordenamento jurídico do Brasil, de admitir-se a constituição testamentária da hipoteca, é, entretanto, da tradição de nossa doutrina o rechaçá-la.
 
Ao tempo das Ordenações filipinas, diz Affonso Fraga, pode mesmo dizer-se incomum o tratar-se desta modalidade hipotecária, silentes, a propósito, Ouro Preto, Teixeira de Freitas, Lafayette e Carlos de Carvalho, entre outros.
 
Afirmou Dídimo da Veiga que “à hipoteca testamentária não estamos obrigados a fazer referência, porque o nosso legislador não a consagrou no regime hipotecário de 1890; (…) ela foi repelida pela maioria dos códigos e parece-nos uma modalidade de hipoteca condenada, como o estão todas, à exceção da convencional”.
 
Por sua vez, sentenciou Affonso Fraga: “… com ser uma instituição caduca, não pode ser [a hipoteca testamentária] admitida no direito pátrio, porque o Código não a contempla expressamente, nem é possível compreendê-la na convencional, não só porque o direito não permite interpretação extensiva às disposições da hipoteca, senão ainda pela razão muitíssimo ponderosa de a hipoteca testamentária, mesmo no direito romano, nunca ter constituído espécie da convencional”.