(O registro de imóveis e os títulos materiais inscritíveis: a hipoteca – parte 27)
 
832. Tratemos agora, ainda que de maneira sucinta, da hipoteca de proprietário, de que é modelar o disposto nos §§ 1.144., 1.145 e 1.167 do BGB alemão.
 
Consiste a hipoteca de proprietário na aquisição da titularidade da garantia pelo próprio dominus do imóvel garante, de modo que, haja ou não a extinção do débito correspondente (p.ex., mediante pagamento, compensação, renúncia etc.), preserva-se vago o lugar registral da hipoteca, e, portanto, a garantia −até então direito real sobre imóvel alheio− pode converter-se num direito real sobre coisa própria e ser suscetível de livre disposição pelo proprietário. Trata-se de uma faculdade do proprietário, que pode eleger entre o cancelamento da hipoteca ou a retificação do registro (§§ 1.144 e 1.145, aos quais remete o § 1.167 do BGB).
 
A possibilidade de subrogação da hipoteca, i.e., de que, saldando o débito de outrem, o terceiro, substituindo-o em todos seus direitos e ações (para o direito brasileiro: inc. I do art. 347), adquira a posição de credor hipotecário (art. 349) pode, já teoricamente (à margem, pois, da previsão expressa que há no direito alemão), empolgar a hipótese em que o proprietário do imóvel garante queira ocupar o status do terceiro. Trata-se, pois, de um exemplo em que não se daria confusão entre crédito e débito hipotecários, na medida em que se admitisse assumisse o proprietário-devedor a situação jurídica de um terceiro.
 
Em resumo, admitida que seja essa hipótese, o proprietário adquire o crédito garantido e, com ele, a titularidade dos direitos e ações correspondentes. Ou seja, a hipoteca não se extinguiria.
 
No direito alemão anterior a seu Código civil, adotou-se o sistema hipotecário do lugar fixo ou lugar aberto, de sorte que o proprietário, se saldasse o crédito objeto da garantia, preservava em seu favor o locus registral da hipoteca, podendo valer-se de novo crédito sob a mesma garantia primitiva, limitado ao montante especializado à origem (cf. Nussbaum).
 
O Código civil da Alemanha, firmando-se em que a hipoteca, uma vez constituída possui existência jurídica autônoma, admitiu que possa ela ingressar no patrimônio do próprio devedor (scl., proprietário do imóvel garante), de maneira que a hipoteca possa não se absorver –ou se consolide– no domínio do prédio, se, em vez do cancelamento da garantia, o proprietário preferir a retificação de registro.
 
Hedemann aponta a similitude desta situação com a de um título bancário que regresse ao banco emissor sem que, com isto, fique fora do comércio, e sublinha o relevo desta possibilidade de subsistência da garantia –vale dizer, da hipoteca de proprietário– como instrumento eficaz de crédito, permitindo que, sobretudo quando se trate de hipoteca de primeiro grau, a obtenção de novos valores creditórios.
 
Não parece injusta a instituição. É verdade que a hipoteca de proprietário impede o progresso ou avanço das garantias hipotecárias de graus posteriores. Mas não menos verdade é que os credores de segunda, terceira, quarta ou não importa qual gradação hipotecária sabem, com a instituição de suas hipotecas, exatamente os graus em que elas se encontram, e nenhum é seu prejuízo com a conservação do locus registral da constituição originária da garantia. Diz acertadamente Hedemann que a abertura de um lugar hipotecário preferencial (p.ex., o de uma primeira hipoteca) não justifica o enriquecimento de quem tinha uma garantia com gradação inferior.
 
Ainda que Nussbaum tenha observado a inconsistência do conceito de “fração do valor do imóvel” como representativo da hipoteca, cabe admitir que os credores com garantia hipotecária de grau inferior não se prejudicam, ipso facto, com a circunstância de essa fração preferente conservar-se não importa sob qual titularidade: do credor originário, de um terceiro ou do mesmo devedor dono do prédio, pois a clave está na quantidade do valor garantido e na posição assumida com a instituição originária da hipoteca (segundo grau, terceiro, quarto, etc.), porquanto a progressividade nos lugares registrais sempre se tem como contingente quando se ajustam as várias hipotecas.
 
A hipoteca de proprietário –onde ela se admita– pode ser indicada no registro, averbando-se a conversão da hipoteca primitiva (o que é uma hipótese de retificação –diz o BGB alemão: Berichtigung des Grundbuchs –§§ 1.144 e 1.145) atribuindo-se a garantia ao proprietário do prédio, que, pois, pode, na sequência, dela dispor como lhe parecer.
 
A pouca referência à hipoteca de proprietário na doutrina brasileira atual parece confirmar a inclinação de que essa modalidade hipotecária não se admita entre nós. Assim parece a Afrânio de Carvalho (como já o deixamos dito no item n. 628 do tomo III destes Registros sobre registros). Disse ele que, sem embargo de a hipoteca de proprietário não conflitar com os fundamentos de admissibilidade da permuta, da postergação de grau e da reserva de gradação da hipoteca −fundamentos esses que podem sumariar-se na liberdade de contratação e na autonomia de vontades−, o fato é que a reserva de lugar no registro tem sempre um potencial de colisão com a segurança jurídica, ao dar preferência a um valor separado, correspondente à dívida objeto −que no direito brasileiro já estaria extinta−, em benefício do próprio devedor.
 
Com efeito, falta ao ordenamento jurídico brasileiro –mal ou bem, bem ou mal– um preceito, como o do § 889 do BGB alemão, que, por si só, já viabilizaria a hipoteca de proprietário. Lê-se nesse § 889: “Um direito sobre um imóvel alheio não se extingue pela circunstância de que o proprietário do imóvel adquira o direito ou o titular –do direito– adquira a propriedade do imóvel”. Esta norma, “verdadeiramente excepcional” (Morell y Terry), impede que se extingam os direitos por meio da confusão, ou seja, “não se extingue a hipoteca por unir-se com a propriedade em uma mesma pessoa” (Martin Wolff).
 
Mas há um ponto adicional a referir: trata-se de uma ocorrência peculiar, mas que não é nada rara no direito alemão, qual seja a da renúncia não do crédito garantido, mas da própria hipoteca, quando, de comum, o proprietário ofereça ao credor uma outra garantia equivalente ou até mais vantajosa a esse credor (Hedemann). Lê-se no § 1.169 do BGB alemão: “Se o credor renunciar à hipoteca, adquire-a o proprietário”. E prossegue o dispositivo: “A renúncia deve declarar-se perante o Registro e diante do proprietário, sendo necessária a inscrição registral”.
 
Ora bem, nesta hipótese, não havendo renúncia do crédito, não cabe já, entre nós, o argumento de que a confusão extinguiria a dívida garantida (arg. do art. 381 do Cód.civ.). De toda a sorte, não nos falta a indicação expressa de que a renúncia do credor à hipoteca é causa de sua extinção (inc. IV do art. 1.499).
 
Ad summam, no direito brasileiro vigente, parece, com efeito, não caber a hipoteca de proprietário (arg. dos arts. 381 e 1.499, incs. I e IV, do Cód.civ.), mas, de lege ferenda, não seria demasiado considerar sua adoção.