Dados têm como base informações do IBGE e estão no estudo intitulado ‘Tirando o véu’. Cenário de três cidades baianas foram analisados por pesquisadores
 
“Quando pensam em casamento infantil, as pessoas acreditam que a situação está bastante distante de nós e não está”, revela Viviana Santiago, gerente de gênero e incidência política da organização não-governamental Plan International, que apresentou, na manhã desta terça-feira (30), no Centro de Cultura da Câmara de Vereadores de Salvador, dados do casamento infantil no Brasil e na Bahia.
 
O casamento é considerado infantil quando ao menos um dos cônjuges tem 18 anos ou menos. A Plan teve como base de estudo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do Ministério da Saúde. Em 2016, na Bahia, o instituto registrou 60 mil casamentos. Destes, 7.770 tinham entre um dos cônjuges crianças e adolescentes.
 
Desse total, 6.371 foram casamentos de meninas e 1.399 de meninos. Esses dados fazem parte do “Tirando o véu – Estudo sobre o casamento infantil no Brasil”, que traz informações sobre a união infantil no país.
 
“O enfrentamento ao casamento infantil é uma das nossas principais bandeiras, porque a gente acredita que esse tipo de casamento é uma violação de direitos, e, aqui no Brasil, ele é um processo muito invisível. Toda vez que a gente fala do casamento infantil, as pessoas dizem: ‘Mas aqui [Brasil] isso não acontece’. No entanto o Brasil é o quarto país do mundo em número de casamentos infantis”, disse Viviana.
 
A pesquisa traz também dados do Maranhão. O estado e a Bahia já são territórios analisados pela ONG e, por isso, foram escolhidos para o estudo.
 
“Os meninos não casam na mesma proporção das meninas. Precisamos fazer estudos como esses para mostrarmos os casos e assim, criarmos políticas públicas que possam ajudar na redução desses números”, disse Viviana.
 
Na Bahia, a ONG escolheu três cidades para fazer o levantamento e análise de dados: Salvador, Camaçari e Mata de São João, as duas últimas fazem parte da região metropolitana da capital baiana. Segundo Viviana Santiago, eles decidiram por essas cidades por considerá-las de grande, médio e pequeno porte, o que resultaria em cenários diferenciados da pesquisa.
 
Conforme dados do IBGE compostos na pesquisa, em 2016, das 13.080 uniões e casamentos que ocorreram em Salvador, 667 foram de adolescentes: 135 foram de meninos com idades entre 15 e 19 anos, e 532 de meninas da mesma faixa etária.
 
Em Camaçari, foram 151 casamentos entre adolescentes e em Mata de São João, 10. Nem na capital baiana, nem nas cidades analisadas, houve casamentos com crianças menores de 15 anos.
 
Os dados nacionais também se destacam. De acordo com a Plan, conforme informações da Unicef, o Brasil está em quarto lugar (2,9 milhões de uniões precoces) no mundo no número de casamentos infantis, atrás apenas da Índia, Bangladesh e Nigéria.
 
Estima-se que 7,5 milhões de meninas se casem precocemente todos os anos no mundo. O Brasil também está entre os cinco países da América Latina e Caribe com a maior incidência de casos.
 
De acordo as estatísticas de Registro Civil ainda de 2016, de 1,09 milhão de casamentos no Brasil 137.973 incluíram meninos e meninas menores de 19 anos. Nos dados gerais, assim como na Bahia, o que surpreende é o número de garotas que casam.
 
A taxa de casamentos das meninas é 386% maior quando comparada com as uniões dos meninos (109.350 mil meninas e 28.375 mil meninos).
 
Conforme a pesquisa, todos os entrevistados para o estudo, sem exceção, não gostariam que seus filhos e filhas se casassem antes dos 18 anos.
 
Durante a apresentação da pesquisa na manhã desta terça-feira, também estiveram presentes representantes da Prefeitura de Salvador, do Ministério Público da Bahia, da Unicef e Polícia Militar.
 
Causas e consequências do casamento precoce
De acordo com a gerente de gênero e incidência política da Plan, Viviana Santiago, o casamento infantil é um fenômeno de múltiplas causas. Nas cidades baianas da amostra pesquisada, os casamentos e as uniões foram motivados por quatro causas principais: gravidez, perda da virgindade, saída de lares conflituosos e desejo/amor.
 
“A questão da gravidez, que por si só já é uma gestação de risco, a questão do stress que elas são submetidas, de se ver responsável por uma casa. Essa relação de organização da casa é o que gera, muitas vezes, a violência nos casamentos. Embora as meninas não enxerguem como violência. Elas dizem: ‘Ele gritou comigo, mas é que eu não sabia fazer. Eu estava aprendendo’. No começo do casamento elas romantizam muito, não conseguem trabalhar, estudar, não conseguem planejar filhos porque essa decisão nunca é delas. É um processo de violação de direitos”, disse Viviana.
 
Conforme o estudo, de forma geral, é possível afirmar que as meninas se casam com homens mais velhos, com melhores perspectivas econômicas, o que, muitas vezes, as coloca em posição de desigualdade, sujeitas a violências.
 
“O casamento precoce é uma violência de gênero e é muito importante dialogar sobre o assunto”, destacou Denice Santiago, a major baiana que criou a Ronda Maria da Penha, de combate a violência contra a mulher.
 
Entre uma fala e outra, durante a apresentação do estudo, o que se destacou entre os participantes foi o questionamento de como as pessoas acham que não existe união infantil no Brasil. A maior parte relatou que ao abordar o tema para o público ou até mesmo representantes políticos, a pergunta era: “Existe casamento infantil no Brasil?”. Conforme apresentado no estudo, sim e os índices são altos.
 
“Quando levamos o assunto [casamento infantil] para alguns vereadores parecia que eu estava descendo com uma nave extraterrestre. Me perguntaram: “Vamos debater temática do Oriente Médio?”. Levei para eles o que é uma realidade triste do nosso Brasil. Com um estudo como esse podemos ter políticas públicas mais eficazes”, disse Rogéria Santos, secretária Municipal de Políticas Públicas para Mulheres, Infância e Juventude. O lançamento do estudo foi uma parceria da Plan com a pasta municipal.
 
A Major Denice Santigo disse que o cenário foi semelhante na PM, mas que entre os objetivos do estudo está mostrar dados para que situações de violência de gênero sejam reduzidos.
 
“Quando nós fomos provocados a pensar sobre a relação do casamento infantil e a violência doméstica, uma policial que trabalha conosco falou: ‘Mas isso não tem nada a ver com o que a gente faz’. Aí ficamos lá na ronda discutindo o assunto para que ela percebesse que tem tudo a ver com o que a gente faz. Quando veio esse estudo pra gente, foi como uma luz de que precisamos dialogar”, concluiu a major.
 
A Plan
Organização humanitária, não-governamental e sem fins lucrativos, a Plan promove os direitos das crianças e a igualdade para as meninas através da realização de projetos, programas e ações de incidência e de mobilização social.
 
A ONG trabalha em conjunto com uma rede de parcerias construídas há mais de 80 anos e que se encontram hoje ativas em mais de 70 países, em prol de crianças em situação vulnerável. A Plan International chegou ao Brasil em 1997.
 
Foram implementados projetos da ONG no Maranhão, no Piauí, na Bahia e em São Paulo.