Apelação Cível nº 1009670-61.2018.8.26.0019
Apelantes: Amancio Rodrigues de Oliveira e Maria Aparecida Segatto de Oliveira
Apelado: Oficial de Registro de Imoveis e Anexos da Comarca de Americana
VOTO Nº 37.782
Registro de Imóveis – Usucapião extrajudicial – Necessidade de instrução do requerimento com as certidões de distribuição em nome dos titulares tabulares do imóvel – Art. 216, inciso III, da Lei nº 6.015/73 e art. 4º, inciso IV, alínea “b”, do Provimento nº 65, de 14 de dezembro de 2017, da Corregedoria Nacional de Justiça – Alegações de desnecessidade das certidões e de impossibilidade de sua obtenção – Exigência legal e normativa que não pode ser afastada, em procedimento de natureza administrativa, pelos fundamentos apresentados pelos apelantes – Dúvida julgada procedente – Recurso não provido.
Trata-se de apelação interposta por Amâncio Rodrigues de Oliveira e Maria Aparecida Segatto de Oliveira contra r. sentença que manteve a recusa do Sr. Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil de Pessoa Jurídica da Comarca de Americana em promover o registro da aquisição da propriedade de imóvel por usucapião porque o procedimento extrajudicial não foi instruído com as certidões negativas dos distribuidores da Justiça Estadual e da Justiça Federal, expedidas nos nomes dos proprietários tabulares do imóvel usucapiendo.
Os apelantes alegaram a existência de contradição na r. sentença porque na manifestação sobre a dúvida impugnaram todas as exigências formuladas na nota de devolução. Ainda, teceram comentários sobre as exigências realizadas pelo Oficial de Registro de Imóveis para o início do procedimento administrativo de usucapião extrajudicial, asseverando que são indevidas. Esclareceram que pretendem o reconhecimento da usucapião extrajudicial, o que dispensa a apresentação de certidões dos distribuidores em nome de seus antecessores na posse. Afirmaram que o imóvel usucapiendo tem como proprietários tabulares pessoas que estão precariamente qualificadas nas transcrições nºs 22.594 e 12.932 do 1º Registro de Imóveis de Campinas e que não é possível a obtenção de certidões dos distribuidores porque não conhece os números dos documentos de identidade. Aduziram que a exigência de apresentação dessas certidões caracteriza burocracia desnecessária e não impede o reconhecimento da aquisição do domínio pela usucapião porque os requisitos ficaram comprovados pela Ata Notarial que mostra o exercício de posse mansa e pacífica por 26 anos. Diante disso, as certidões de distribuição não alteram o seu direito ao registro da aquisição da propriedade pela usucapião, que é forma originária de aquisição do domínio, constituindo a negativa de registro violação do direito fundamental à propriedade e caracterizando sanção política. Ademais, as transcrições não contém notícia de ações relativas ao imóvel, o que deveria ocorrer diante do princípio da concentração das informações na matrícula introduzido pela Lei nº 13.097/2015. Além disso, os proprietários serão notificados, ainda que por edital, o que permitirá a impugnação ao pedido. Asseveraram que as atas notariais são suficientes para a comprovação da posse e observação dos requisitos legais, independente do fato das atas retificadoras não estarem assinadas pelas testemunhas e requerentes. Requereram a improcedência da dúvida, com o afastamento das exigências formuladas.
A douta Procuradoria Geral da Justiça opinou pelo não conhecimento do recurso, por estar a dúvida prejudicada em razão da impugnação parcial das exigências formuladas, ou, alternativamente, pela manutenção da r. sentença que julgou a dúvida procedente (fls. 226/231).
É o relatório.
Cuida-se de procedimento extrajudicial de usucapião de imóvel urbano, processado perante o Oficial de Registro de Imóveis, em que foram formuladas as seguintes exigências:
a) apresentação de procuração, com firma reconhecida, que contenha poderes especiais e expressos para o procedimento extrajudicial de usucapião, pela modalidade extraordinária, do lote 27-B da quadra 16 do loteamento Jardim Brasil, Comarca de Americana;
b) requerer a notificação da co-proprietária Líder Brasil Imobiliária e Incorporadora S/A e dos confrontantes tabulares que apesar de intervirem na Ata Notarial não assinaram a planta e o memorial descritivo do imóvel;
c) a Ata Notarial não contém ressalva de que não tem valor como confirmação ou estabelecimento da propriedade, na forma do § 3º do art. 5º do Provimento CNJ nº 65/2017;
d) o projeto, o requerimento e a Ata Notarial devem ser retificados no que se refere aos confrontantes, porque não identificam os proprietários tabulares do lote 26-B, mas apenas as pessoas indicadas como possuidoras, não foram instruídos com prova de que Maria de Fátima Marsoli Justi é proprietária do lote 27-A, e não foi identificada e requerida a notificação de Edna Fátima Kokol Boer, cônjuge do proprietário do lote 09 da quadra 16;
e) não foram apresentadas as certidões dos distribuidores da Justiça Estadual e da Justiça Federal nos nomes dos proprietários tabulares do imóvel e dos possuidores no período aquisitivo da usucapião (fls. 143/149).
O procedimento extrajudicial de registro de usucapião comporta requisitos que podem ser atendidos ao longo de seu processamento, como, por exemplo, a apresentação de cópias para a complementação das notificações e a publicação de editais.
Contudo, a recusa do apresentante em atender exigência que impeça o curso do procedimento, por dizer respeito a requisitos indispensáveis à formação ou à continuidade do procedimento administrativo, importa na impossibilidade do registro da aquisição do imóvel por usucapião extrajudicial e, em consequência, acarreta a procedência do procedimento de dúvida.
Neste caso concreto, os apelantes constituíram advogado com poderes expressos e específicos para o requerimento de usucapião extrajudicial do lote 27-B da quadra 16, por meio de procurações com firmas reconhecidas (fls. 38 e 129).
Essas procurações, embora não indiquem a alteração da modalidade do requerimento que inicialmente era de usucapião ordinária e depois passou a extraordinária, são suficientes para o procedimento administrativo de usucapião e para a regular representação processual na dúvida que foi suscitada.
Para afastar a discussão sobre a caracterização de justo título os requerentes, atendendo exigência formulada, alteraram a modalidade do requerimento para o de registro de usucapião extraordinária.
Essa alteração não demanda reconhecimento das firmas dos requerentes no pedido de alteração da modalidade da usucapião, porque estão representados por advogado constituído por procurações com firmas reconhecidas e porque é inequívoca a identificação dos requerentes e a natureza e conteúdo do registro que pretendem obter.
A omissão da advertência, na Ata Notarial de fls. 52/59 e nas retificações de fls. 131/134 e 39/42, de que não têm valor como prova ou para o estabelecimento da propriedade (art. 5º, § 3º, do Provimento CNJ nº 65/2017), não as desqualificam para efeito de instruir o procedimento de usucapião extrajudicial.
Assim porque o requerimento de registro da aquisição da propriedade pela usucapião deixa claro que os apelantes estão cientes de que a Ata Notarial é modo de prova, não produzindo o efeito de constituir ou de confirmar do domínio do imóvel.
A apresentação de cópias necessárias para a notificação da co-proprietária Líder Brasil Imobiliária e Incorporadora S/A e dos confrontantes tabulares que não assinaram a planta e o memorial descritivo do imóvel (art. 4º, inciso II, do Provimento CNJ nº 65/2017), que restou como pendência indicada na suscitação da dúvida (fls.11), poderia ser atendida no curso do procedimento extrajudicial de usucapião que, nesse ponto, somente seria obstado se houvesse expressa recusa ao seu fornecimento, impedindo as notificações necessárias.
Diante da nota de exigências de fls. 143/149 os apelantes apresentaram requerimento de processamento do pedido de registro da usucapião extrajudicial, com solicitação de adoção de providências para atendimento dos requisitos indicados pelo Oficial de Registro de Imóveis, com exceção da apresentação das certidões dos distribuídos da Justiça Estadual e da Justiça Federal do local do imóvel, em nome dos proprietários e dos possuidores no período da prescrição aquisitiva (fls. 122/130).
Todas as exigências foram impugnadas pelos apelantes quando de sua manifestação sobre as razões apresentadas pelo Oficial de Registro de Imóveis na suscitação da dúvida, com exceção do fornecimento de cópias para notificações (fls. 156/175).
Diante disso, e das peculiaridades deste caso concreto, a forma como os apelantes se manifestaram sobre essas exigências não caracteriza impugnação parcial e não torna a dúvida prejudicada.
A r. sentença, por sua vez, afastou as exigências de natureza procedimental que eram passíveis de suprimento, mantendo a negativa do registro em razão da recusa da apresentação das certidões dos distribuidores da Justiça Federal e da Justiça Estadual nos nomes dos titulares do domínio e dos anteriores possuidores do imóvel, bem como de seus cônjuges (fls. 146).
O requerimento de registro da usucapião extrajudicial diz respeito ao lote 27-B da quadra 16.
O imóvel usucapiendo é formado por parte do lote 27 da quadra 16 que para efeito de cadastro municipal foi desmembrado nos lotes 27-A e 27-B.
Os apelantes não identificaram o registro e os proprietários do lote 27-A da quadra 16, que confronta com o imóvel usucapiendo, limitando-se a indicar como possuidora Maria de Fátima Marsula Justi (fls. 73).
Porém, as certidões de fls. 64/70 e 106/121 mostram que a totalidade do lote 27 da quadra 16, com área total de 250,00m², com 10,00m de frente por 25,00m nos fundos, tem iguais proprietários, pois não há notícia de que houve averbação do desdobro no Registro de Imóveis.
Por essa razão, as notificações dos proprietários do lote 27 da quadra 16 decorrerá tanto da condição de titulares do domínio do imóvel usucapiendo como de proprietários do imóvel confrontante identificado como lote 27-A.
Por essa razão, a ausência de indicação do confrontante tabular em relação ao lote 27-A da quadra 16 não impede o processamento do requerimento de usucapião extrajudicial.
Por sua vez, na usucapião extraordinária a boa fé é presumida, com dispensa da apresentação de justo título, o que afasta a necessidade de intervenção dos antecessores na posse e a apresentação de certidões a eles relativas, sendo nesse sentido o art. 4º, inciso IV, alínea “c”, do Provimento CNJ nº 65/2017.
Igual não ocorre, entretanto, com as certidões dos distribuidores da Justiça Estadual e da Justiça Federal nos nomes titulares do domínio do imóvel usucapiendo.
O art. 216-A, inciso IV, da Lei nº 6.015/73 prevê que o requerimento de usucapião extrajudicial será instruído com certidões dos distribuidores da comarca da situação do imóvel e do domicílio do requerente:
“Art. 216-A. Sem prejuízo da via jurisdicional, é admitido o pedido de reconhecimento extrajudicial de usucapião, que será processado diretamente perante o cartório do registro de imóveis da comarca em que estiver situado o imóvel usucapiendo, a requerimento do interessado, representado por advogado, instruído com:
(…)
III – certidões negativas dos distribuidores da comarca da situação do imóvel e do domicílio do requerente; (…)”.
A obrigatoriedade da apresentação dessas certidões também é prevista no Provimento CNJ nº 65/2017 que especifica que devem ser expedidas pela Justiça Estadual e Justiça Federal, em nome do proprietário do imóvel usucapiendo e seu cônjuge, ou companheiro, se houver:
“Art. 4º O requerimento será assinado por advogado ou por defensor público constituído pelo requerente e instruído com os seguintes documentos:
(…)
IV – certidões negativas dos distribuidores da Justiça Estadual e da Justiça Federal do local da situação do imóvel usucapiendo expedidas nos últimos trinta dias, demonstrando a inexistência de ações que caracterizem oposição à posse do imóvel, em nome das seguintes pessoas:
a) do requerente e respectivo cônjuge ou companheiro, se houver;
b) do proprietário do imóvel usucapiendo e respectivo cônjuge ou companheiro, se houver;
c) de todos os demais possuidores e respectivos cônjuges ou companheiros, se houver, em caso de sucessão de posse, que é somada à do requerente para completar o período aquisitivo da usucapião; (…)”.
O inciso IV do art. 4º do Provimento CNJ nº 65/2017 esclarece que essas certidões se destinam a comprovar “…a inexistência de ações que caracterizem oposição à posse do imóvel“.
Assim ocorre porque a usucapião extrajudicial é reservada às hipóteses em que não existe litígio em relação ao imóvel, ou seja, àquelas em que é dispensável o ajuizamento da ação judicial que for a via adequada para a solução de controvérsia sobre o domínio do bem.
Havendo litígio sobre o imóvel, ainda que caracterizado a partir do oferecimento de impugnação ao pedido, torna-se indispensável a intervenção judicial para a solução da controvérsia, como disposto no § 10 do art. 216-A da Lei nº 6.015/73:
“§ 10. Em caso de impugnação do pedido de reconhecimento extrajudicial de usucapião, apresentada por qualquer um dos titulares de direito reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo e na matrícula dos imóveis confinantes, por algum dos entes públicos ou por algum terceiro interessado, o oficial de registro de imóveis remeterá os autos ao juízo competente da comarca da situação do imóvel, cabendo ao requerente emendar a petição inicial para adequá-la ao procedimento comum“.
E compete ao requerente do usucapião extrajudicial fazer prova da inexistência de litígio apresentando as certidões dos distribuidores da Justiça Estadual e da Justiça Federal em nome do proprietário do imóvel e de seu cônjuge, ou companheiro se for conhecido, como previsto no art. 216-A da Lei nº 6.015/73 e no Provimento CNJ nº 65/2017 que na esfera administrativa tem força normativa e vinculante.
A obrigatoriedade da apresentação dessas certidões não se afasta pelo conteúdo da Ata Notarial que consiste, apenas, em uma das provas do exercício de posse, nem pela afirmação dos apelantes de que exercem posse mansa e pacífica sobre o imóvel por período superior ao da prescrição aquisitiva uma vez que constitui ato unilateral insuficiente para o registro da propriedade.
Cabe lembrar, nesse ponto, que a propriedade é presumida em favor dos titulares indicados no registro imobiliário, como previsto no art. 1.245, §§ 1º e 2º, do Código Civil e no art. 252 da Lei nº 6.015/73:
“Art. 252 – O registro, enquanto não cancelado, produz todos os efeitos legais ainda que, por outra maneira, se prove que o título está desfeito, anulado, extinto ou rescindido“.
Destarte, equivocam-se os apelantes quando alegam que a exigência das certidões é ato burocrático desnecessário e que a recusa do registro da usucapião extrajudicial, pela falta dessas certidões, constitui sanção política.
A negativa do registro da usucapião extrajudicial também não implica em violação do direito de propriedade, porque cabe às pessoas que tiverem legitimidade comprovar o preenchimento de todos os requisitos previstos para o procedimento que preferirem adotar.
A concentração na matrícula dos direitos e ônus incidentes sobre o imóvel, por seu lado, não altera o resultado da dúvida porque a propriedade é presumida em favor dos titulares que figuram no registro imobiliário, não havendo que se falar em averbações e anotações premonitórias para assegurar direito que já detém por força do domínio.
Por fim, não se comprovou a impossibilidade de obtenção dos dados de qualificação dos titulares do domínio que permitam, por meio extrajudicial ou judicial, a obtenção das certidões de distribuição da Justiça Estadual e da Justiça Federal.
Ante o exposto, pelo meu voto nego provimento ao recurso.
GERALDO FRANCISCO PINHEIRO FRANCO
Corregedor Geral da Justiça e Relator.